MEMÓRIA DA FLOR

Crônicas

João Neto Félix Mendes

Maria sem vergonha, 2019. (Acervo João Neto F. Mendes )

No meu pequeno jardim o canto solene de um bem-te-vi anuncia o alvorecer. Contendo os meus gestos para não o afugentar busco sua presença no florido e perfumado pé de jasmim para vê-lo chilrar entre as folhagens. Alçando voos rápidos ouço seu cantar disperso pelo ambiente. Sagaz, pousa no fio energizado da rua, emitindo gorjeios, ao mesmo tempo em que se agita num abrir e fechar as asas, exibindo garbosamente suas habilidades pássaras.

No amiudar do dia investigo as plantas com assaz argúcia para lhes conferir o vigor. Jardineiro por acaso, exercito diálogos silenciosos com as plantas que se traduz em paz interior, além do exercício da paciência. Entender os mistérios da terra e das plantas é tarefa diletante.

Taciturno, no caos do pensamento, consciente da minha senescência, busco no labirinto das memórias as raízes do meu apego à jardinagem. Nas lembranças, há muitos fragmentos soltos. À medida que o tempo vai passando e de tanto recorrer às parcas memórias, juntamos partes que nos revelam um pouco de quem somos.

Contudo, não é fácil, *“lapsos de memória com hiatos não permitem que as ideias sejam completas. Recordações da infância nem sempre surgem de maneiras integrais visto que a inocência nos impede de enxergar as árduas camadas da vida. Desavisados do seu valor, normalmente vivemos essa fase da vida em um breu, cercados por um universo infantil onde as dores e as lutas vividas por adultos são aventuras alegóricas, fantasias inusitadas”. *(Rafaela Gomes, crítica de cinema)

Muitas vezes, algumas recordações são recorrentes. De tempos em tempos nos inquieta, assombra-nos, recusando o esquecimento. Teimando em aparecer, revelam-se e nem sabemos o porquê. Independentes, com autonomia e significado afloram por si mesmas a despeito do querer. É impossível se desvencilhar.
Recordo nossa casa à Avenida Nossa Senhora de Lourdes, em Santana, nos anos 60. Embora o espaço fosse miúdo havia um pequeno jardim. Minha mãe, uma guerreira cabocla, afora o trabalho de serviçal no Grupo Escolar Padre Francisco Correia e tantos trabalhos domésticos, ainda encontrava tempo para cuidar do jardim. E me levava junto. No jardim, recordo; tinha roseiras, crótons, jasmins, lírios, dálias, hibiscos, papoulas e maria sem vergonha.

Atualmente, quando as identifico, diálogos se intensificam na simbiótica interação, como se fosse um reencontro de velhos conhecidos. Imediatamente se faz uma dobra no tempo e o viajante ermo retroage décadas em segundos. Reminiscências do jardim também favorece a sobrevivência das espécies que lá existiam.

Uma visão holográfica se descortina e projeta o cenário do jardim diante de mim. Com minha memória associativa vejo minha mãe cuidando dos exemplares.
Assisto ao meu próprio filme. Vejo-me ali, embora não soubesse, ou não tivesse consciência da importância daquele momento espontâneo. Tudo ficou guardado nos recônditos dos arquivos existenciais para mostrar que aprendemos muito mais pelo exemplo do que pelas palavras. Devemos dar aos filhos mais experiências do que coisas.

“Uma parte importante da aprendizagem no jardim é a tentativa e o erro. A jardinagem é um meio simples e indolor de aprender algumas lições para a vida, como compreender que, quando uma planta morre, ficam nutrientes no solo”, explica Renata Brow, autora de livro sobre jardinagem para ao público infantil.

“Jardinagem ensina a crianças a ter paciência”, disse Jenny Hendy, uma especialista no assunto que escreveu mais de vinte livros. E continua “...isso ensina a meninos e meninas a nutrir as coisas, a entender que é errado matar insetos indiscriminadamente, apenas porque não os entendemos ou porque temos medo deles. Na direção certa, crianças vão desenvolver uma noção melhor da natureza e do nosso meio ambiente.”

Várias amendoeiras castanholas enfeitavam a Av. Martins Vieira. Em toda a cidade era a árvore mais comum nas ruas. Excelente sombra para os automóveis. Árvore favorita para servir de esconderijo nas brincadeiras de esconde, esconde. Na época da colheita os frutos eram saborosos. Tinham uns insetos cabulosos e malcheirosos, mas tudo bem! Tolerava-se. Defronte à casa de Seu Domício Silva tinha uma enorme. Que fim levaram todas elas? Cadê as amendoeiras das ruas? Por que as destruíram?

Cultivar plantas também me rendeu aprendizados e situações inusitadas.
Certo dia, estava num almoço, como convidado, na zona rural de Santana. O sítio dos anfitriões era muito florido. Então, interessado em variedades diferentes fiz um pedido de uma muda de planta. Enquanto a dona da casa gentilmente me atendia, seu marido, pensativo, nos acompanhava meio cabreiro, querendo falar, mas se reprimindo. Ao final da entrega das mudas, na sua simplicidade, verbalizou o que já estava engasgado: - Vote! Um home prantando flô... Olhamo-nos, surpresos e caímos na gargalhada...

Noutra ocasião, desejei plantar uma Craibeira(Tabebuia aurea) na porta de casa à Rua Benício Mendes Barros. Sua florada primaveril é espetáculo visual singular. Não é à toa que a árvore é “símbolo de Alagoas” desde 1985. A árvore é facilmente encontrada às margens do Rio Ipanema em toda sua extensão e às margens de pequenos riachos. Árvore de grande porte, suas floradas encantam pelo esplendor do amarelo vibrante.

Então, fui até o rio Ipanema e coletei uma muda nas areias da margem. Percebi que sua raiz era muito grande. Diz-se que o tamanho da raiz equivale ao tamanho da planta no nível do solo. A cada ano, eu esperava ansiosamente a florada e nada! Passados dez anos a florada ainda era acanhada e sem vigor, nada obstante o exemplar tivesse quase sete metros de altura. Contudo, um detalhe chamava atenção: seu tronco estava pendendo para um lado e raízes despontando na pavimentação.

Certo dia, casualmente, chamei um cuidador de árvores para limpar a base da raiz que estava com ramificações expostas. O serviço não pode ser concluído de pronto, havendo um intervalo para a sesta. Nesse ínterim, árvore vergou sob o peso e deitou suavemente no meio da avenida, sem barulhos e sem testemunhas, tomando-a de um canto a outro. Ficamos pasmados quando vimos.

Por sorte, não provocou nenhum acidente, nem estrago, exceto minha frustração. Sua raiz estava toda enrolada como uma rodilha. Eu, inadvertidamente, para facilitar o plantio porque a raiz era longa, dei umas voltas antes de aterrar. A árvore cresceu sem firmeza no solo. Um erro crucial e lição aprendida. Foram dias para retirada dos troncos e galhos.

Craibeira, Riacho Camoxinga, S. Ipanema, 2000. (Acervo João Neto F. Mendes)



Do alto da goiabeira do quintal de casa, entre flores e frutos, eu via estradas e horizontes. No meio dos galhos tinha um lugar pra recostar e sonhar. Na primavera, dezenas de ipês floridos apensos ao pé da serra estendiam suas flores ao deslumbramento de olhares distraídos.

João Neto Felix Mendes/Verão 2019

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