Sílvio, o filho de Corisco

Crônicas

Érico Abreu (*)

Quando ele chegou, caía um temporal brabo. Parecia que o céu estava desabando. As águas desciam carregando tudo. Uma barraca de campanha do Exército, recebida de presente do irmão do governador de Sergipe, protegia a mãe e a parteira, que lutavam para trazer o menino ao mundo.

Corisco e seu bando, uma dúzia de homens perigosos, fugiam da polícia sergipana desde o início da manhã daquela quinta-feira insólita, 29 de agosto de 1935. Os cangaceiros caminhavam a passos largos, quase correndo. Os policiais, mais de 50, também. Os cangaceiros levavam vantagem, mas não muita. Não podiam parar. Dadá reclamava.

As primeiras dores do parto começaram a incomodá-la ainda durante a travessia do rio São Francisco, de Sergipe para Alagoas, nas imediações da cidade de Pão de Açúcar.

Agora, quase oito horas da noite, estavam distante da sede do município, em terras da fazenda Beleza, em direção às Emendadas dos Biés, mais próximos do núcleo urbano de Piranhas, numa localidade onde existe uma grande pedra que os moradores hoje chamam de Pia de Corisco.

A volante se aproximava perigosamente.
Cansado, o comandante do bando, o capitão Corisco, estava preocupado com a mulher, Dadá, e o filho que ia nascer no meio de um confronto.

Os cangaceiros trocavam tiros com os macacos. Rajadas de metralhadoras e disparos de rifles e pistolas cortavam o ar. A volante tinha alcançado o grupo. Alguém havia aberto os portões do inferno.

Junto com a explosão dos tiros ouve-se um barulho mais forte, um trovão e um raio que rasga a escuridão iluminando tudo. Uma chuva forte começou a cair, foi crescendo e virou temporal. O céu repentinamente escureceu e tudo parecia imerso num líquido viscoso e escuro. Raios e trovões e uma verdadeira tromba água dispersaram os soldados e os cangaceiros que procuravam abrigo para fugir das forças da natureza. As águas desciam o morro desembestadas, cavando e arrastando o solo vermelho do Sertão.

Não demorou muito e logo se ouviu o choro e o grito de alegria do pai.

- É homem! É homem!

A chuva parou e, como encanto, apareceu um céu cheio de estrelas. Era um céu magnífico. Os olhos do menino brilharam enxergando o mundo pela primeira vez.

Os olhos do pacato Sílvio Bulhões brilham sempre quando ele fala dessa cena, do seu próprio nascimento no meio das caatingas, no Sertão alagoano, e do temporal salvador que barrou a volante e permitiu sua vinda a este mundo.

Estou na casa de Sílvio Bulhões, o professor aposentado que é filho do casal de cangaceiros Corisco e Dadá. Dadá, era a única mulher do bando que atirava na polícia e tinha uma mira mais certeira que a do próprio Corisco.

Fico emocionado todas as vezes que eu vejo aquele brilho intenso nos olhos de Sílvio, enquanto ele lê, de memória, pela enésima vez, o bilhete que o pai enviou ao padre Bulhões pedindo para “criar o menino”, seu filho.

“... Peço ao bom vigário que crie esse menino da melhor forma que puder. O pai sou eu, Capitão Cristino Gomes da Silva Cleto, conhecido como Corisco. A mãe é Sérgia Maria da Conceição, conhecida por Dadá...”

“Fui cangaceiro por cinco dias, o tempo entre meu nascimento e a entrega ao padre Bulhões”, diz ele, e repete com orgulho:

— Fui cangaceiro do bando de Cristino, o Capitão Corisco, meu pai.

Obs.: Este texto foi pensado , inicialmente, como roteiro para uma história em quadrinhos.

(*)Érico Abreu. O Érico é professor da UFAL (curso de jornalismo), escritor, jornalista e bancário aposentado. Essa crônica foi publicada em um de seus vários livros, em 2018. O Livro tem um título longo: "Uma tarde fria com Lennie Dale na praia do Francês & outras histórias".

Comentários