NAU CATARINETA, NATAL E PRESÉPIO

Djalma Carvalho

Djalma de Melo Carvalho
Membro da Academia Santanense de Letras, Ciências e Artes.

O santanense que se interessa pela literatura de autores nativos, sobretudo pela leitura dos contos do conterrâneo Breno Accioly, sabe que João Urso, seu primeiro livro de ficção, no gênero, foi publicado em 1944.
Naquela época, a crítica nacional, por intermédio da própria editora do livro, assim se manifestou, como se lê na última capa: “Contos que devassam as camadas abissais da alma humana.”
Tristão de Athayde, autor do texto da orelha de João Urso (Ed. Civilização Brasileira, 4ª Edição, Rio, 1995), incluiu Seu Hermídio entre as “personagens estranhas e terríveis (...) que povoam estes contos como fantasmas misteriosos e sombrios”.
Nascido em 22 de março de 1921, Breno Accioly deixou Santana do Ipanema em meados de 1930, aos nove anos de idade, passando a morar em Maceió, com a transferência do seu pai, juiz de Direito Dr. Manuel Xavier Accioly, promovido para a Capital.
No conto Natal de Seu Hermídio, Breno Accioly inicia-o, dizendo: “Lembro-me numa memória que conta o meu Natal de nove anos.” E a seguir: “Não havia Nau Catarineta nem Banda de Música no Natal de Santana do Ipanema, tampouco aqueles cestos subindo pessoas na Roda Gigante. Havia, no entanto, o Presépio de Seu Hermídio, um artesão que obumbrava o prestígio de Pe. Bulhões, porque era ele o maior homem do Natal.”
Nau Catarineta ou Nau Catrineta, segundo Almeida Garrett (1799-1854), trata-se de poema ligado à tradição oral portuguesa, incluído no Romanceiro (1843), densa obra de grande envergadura literária, de composições poéticas, organizada pelo referido poeta e romancista lusitano. Narra aventuras e desventuras de navegantes de uma longa e imaginária travessia marítima. Poema épico. Eis a primeira estrofe:
“Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.”
No Brasil, especialmente no Nordeste, Nau Catarineta é uma dança folclórica, de época natalina, um bailado, com marujos brincantes, também chamada de Marujada e Fandango, embora com variações à moda e tradição de cada região. Cantos com adeuses e com danças à semelhança do balanço das ondas do mar.
Não me lembro de ter visto uma apresentação de Nau Catarineta, propriamente dita, de que tratou o contista, mas me fascinou e me encantou o espetáculo do Fandango, de marujos bem vestidos de branco, elegantes, quepes de marinheiro, galões dourados no ombro, em passos ritmados, cantos e o balanço contagiante. À frente da marujada, seu tenente-general.
Por ocasião do Natal em Santana do Ipanema, ainda criança fui ver o Presépio de Seu Hermídio. Da calçada da casa vizinha, lado esquerdo do sobrado do coronel Manoel Rodrigues da Rocha, via-se na sala iluminada o movimento daquelas figuras conhecidas no mundo cristão, a tradicional representação natalina de Belém. Por trás do presépio armado, via-se um homenzarrão, que me parecia mal-humorado, esquisito, a mexer em alguma peça, que dava movimento àquelas figuras mágicas.
Sobre o presépio, disse Breno Accioly: “Se se pusessem quinhentos réis no buraco de uma salva de papelão, colocada à direção do Norte, o Menino-Deus acordava e deixava ver-se-lhe o azul dos olhos sorrindo, enquanto N. Senhora balançava a cabeça, agradecendo liturgicamente. S. José levava a mão direita até as barbas (não sei por quê), enquanto os cavalos dos três Reis Magos faziam menção de galopar pela estrebaria adentro. O Presépio de Seu Hermídio estava cheio de molas invisíveis.”
Não se sabia onde e quando nascera Seu Hermídio nem quando chegara a Santana do Ipanema. Não possuía namorada ou companheira. Morava sozinho numa casa imunda, repleta de objetos velhos, de sapos e teias de aranha. Homem solitário, ele vivia distante da sociedade, arredio, escondido, “tão sozinho como um caramujo, tão impenetrável qual o mistério da morte”, no dizer do genial contista santanense.
Sabe-se, entretanto, que se tratava de um artesão de muita sensibilidade e qualidade artística. Durante o ano, fabricava e restaurava imagens de santo, preparando-as, também, para o Presépio do Natal. Ainda recebia encomendas de mané-gostoso. Para suas obras de arte usava madeira talhada.
Informa Tadeu Rocha, que fora morador do histórico sobrado, que seu último presépio – o 26º – foi armado no Natal de 1950. Seu Hermídio faleceu em meados de 1951.

Maceió, julho de 2018.

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