Entrando em outras dimensões

Contos

Por Goretti Brandão

Trouxeram a menina que adentrou na casa com um vestidinho azul-marinho, estampado com bolinhas brancas e de alcinhas vermelhas. Uma graça. Magrinha e dona de dois grandes olhos, os cabelos chegavam à cintura, escorridinhos pelas costas e bem escuros, foi logo esboçando um riso sem dentes à mostra, apertando os lábios numa falsa timidez, que se confirmaria em alguns minutos.

Entreolharam-se, ela e o menino, e se reconheceram amigos, praticamente inseparáveis, assim, unha e carne, comemorando o encontro em carreiras desembestadas. Ambos com cinco anos estavam dispostos a percorrerem o mundo da imaginação por eles conhecido. Eram cúmplices. Via-se pelas intenções que afinavam, para desembaraçar a realidade e construir outras, paralelas e prenhes de novidades, todas prontas a funcionarem, e muito bem, obrigada.

O corredor comprido e largo virou campo de futebol, onde os dois jogavam a bola para o gol dentro da rede fantasma, que só eles sabiam onde estava. Brigavam: ela insistia em fazer gols com as mãos: “pode sim, pode sim, a gente pode fazer gol de mão, não pode?” Nenhum acordo, desentendimentos postos aos gritos, até encontrarem uma forma de não estragar a amizade usando de uma estranha matemática que somava pontos e não gols que podiam sê-los ou não. Para continuarem brincando, criaram regras próprias. Aí... Empataram e empataram.

Um chute forte e, sumiu-se a bola no quintal o que os levou junto. Quando voltaram, avisaram que haviam tomado uma bebida. Uma bebida, não, consertou a menina com seriedade: um tônico, e viraram heróis que procuravam por diamantes, colares e pulseiras. Ela, heroína, foi logo trocando de nome. Era a Mulher Maravilha. Poderosa, catou nas calçadas, papéis brilhantes com que se enrolam os bombons e tentava, com jetinho de investigadora, descobrir o esconderijo da rainha-que-era-má. Deveria prendê-la. Ele, o Super-Man acrescentou-se o nome de Jesuíno. Super-Man Jesuíno.

Com pedrinhas e pequenos pedaços de madeira anunciou para a avó - impaciente com a vida e sempre colocando a culpa do seu indisfarçável mau humor na quentura do dia -, que tinha achado os diamantes, e abriu as mãozinhas sujas mostrando seus tesouros. Àquela altura a Mulher Maravilha já havia encontrado a rainha má e a punira com a prisão. “Jogue isso fora, menino. Vá lavar as mãos pra limpar essa sujeira” Ele foi. “Mas não é sujeira não, vovó. É diamante camuflado”. Tinham cumprido a missão.

No primeiro cômodo da casa, nem varanda nem sala, mas que pode ser chamada pelos dois nomes, visto a indefinição do local, a jovem fisioterapeuta encontrou a idosa senhora que a esperava, e sem demora deu início à sessão de exercícios. Cuidadosa, encorajava-a a levantar-se da cadeira de rodas: “A posição dos pés está excelente. Incline o corpo pra frente, dona Juciata. Juciata não, minha filha: Cacilta. Perdão. Cacilta. Dona Cacilta” ratificou a mocinha, meio sem jeito. O menino passou correndo, e sem parar, alertou: “cuidado pra não derrubar a minha avó!” e seguiu adiante, se sentido gente grande.

O efeito do tônico havia passado. Desfizera-se a identidade secreta. Menino e menina eram crianças de novo, mas assim que alcançaram a cozinha, foram mudando para temidos lutadores de Jiu-Jitsu. Ele, “Requebegue”, investiu contra “Loque” a lutadora, ainda se ajustando à transformação, o que a fez entrar no ringue à força e em desvantagem, franzininha que é, mas enfrentou a peleja que se fazia em apertos pra cá, empurra pra lá, levantamentos da saia do vestidinho e puxões de camisa. “Cuidado com essa brincadeira que ela é menina. Aguenta não”, protestados por um, eu-também-sei-brigar, que ela dizia pra não se entregar, os enormes olhinhos pretos cheios de lágrimas, de tanto levar safanões. Os lutadores alternaram derrotas e vitórias tantas vezes quantas quiseram, até que suados pararam de lutar. Tinham sede. Abriram o armário na ponta dos pés, mas não alcançaram os copos. O menino foi buscar ajuda e apontando para um, de plástico amarelo-limão, disse feliz da vida: “O meu é aquele ali, ‘Ó’!”.

Quando a tarde deu indícios de declinar, eram os dois, já Ricardo e Elisa, marido e mulher, irreconhecíveis e distantes das outras façanhas. Brincavam naquele instante de um amar leve e descompromissado de afagos, interessados apenas na procriação. Tinham filhos: um casal de gêmeos, e circularam com as crianças feitas com caixas de sapato, pelos ambientes da casa, como se estivessem passeando pelas ruas da cidade em dia de domingo, felizes, exibindo criaturinhas alienígenas. O menino teve uma ideia nova de ser outra pessoa, mas desapontado reclamava a falta de um ‘franguês’ para concretizar a experiência.

“O nome certo é freguês, corrigiu a empregada. Tá certo, tá certo” ele respondeu, procurando escova e pente no quarto da avó. “Ô menino o que você está fazendo aí? Venha pra cá!” Era seis da noite quando os dois resolveram ajustar alguns detalhes da imaginação para garantir que ela fosse sempre recíproca e agora, cabelereiros e fregueses um do outro, atendiam por Felipe e Luana, duas silhuetinhas miúdas, que sobre os restos do ocaso, mexiam no cabelo um do outro, enquanto projetavam compridas réstias, que invadiam a sala de jantar e a cozinha.

Quando a irmã mais velha veio buscar a menina, as duas crianças já haviam transposto, sem darem nenhum sinal de que o fizeram, a linha mágica entre os mundos que adentraram. Voltaram inteiros através dos portais que para eles se abrem em todos os cômodos da casa, contida em várias outras casas dentro de cada cômodo, e cada uma contendo histórias. Histórias de heróis com superpoderes, lutadores, jogadores, que esperam do outro lado sob a opacidade da rigidez que bloqueia a imaginação, poderem brincar conosco outras versões de nós mesmos. Só os que se fizerem flexíveis, podem ultrapassar dimensões. Acredito que, e não sei por quanto tempo, as crianças são quase as únicas que ainda conseguem fazer isso.

Para Khevyn e Emile, que em minha presença, constantemente, fazem essa travessia de ir e vir, entre os mais fantásticos mundos...

Comentários