A ciência estava sob ataque. E ignorava-se que o rio da História só havia um: aquele que se enxergava desde a sua nascente. Neste debate, na sala onde O Liberdade de Expressão era gestado pelo padre Velho, o jornalista Lítotes e Polissíndeto, no solar do Dr. Cicrano, que vivia mais na Roída do que nas outras propriedades, a voz da professora Anistia informou:
Estão todos naquela sala onde os sábios e os saberes contidos em livros dormem em largas e sombrias prateleiras.
Na Xepa, não fazia muito, chegaram à cidade as efusivas jornalistas, ex-alunas do professor Pronome. Próclise, que enfiava o pronome antes dos verbos, a sua amiga Mesóclise, cujo hábito escolar a levou a meter pronome no meio do verbo, e a menorzinha, Ênclise, acostumada a usar o pronome pessoal átono só depois do verbo.
Jornalista Mesóclise, aprendeu com o professor de sua preferência, usava o pronome oblíquo átono entre o radical e a desinência em cada verbo no futuro do pretérito ou no futuro do presente. Isto a distanciava da empatia e lhe deixava grudada à antipatia.
Próclise, distante do viver monossilábico, divertia-se com grandiloquentes amarelos, vermelhos, azuis. Ênclise queria conhecer O Liberdade de Expressão, desde a sua época de escola, em sua nascente.
As três caçadoras de fenômenos sociais complexos, Mesóclise, Ênclise e Próclise ouviram falar que no solar do Dr. Cicrano perambulava de maneira absoluta a livre expressão sem limite. Vieram de longe as três vozes constatarem in situ aonde poderia ir a D. Ignorância e favorecer a D. Anarquia.
O dono do mundo era o dono da palavra, na voz do Oráculo? Não, disse Polissíndeto, que escrevia O Liberdade de Expressão, quando conheceu o trio periodista.
No mecanismo na sala do solar do Dr. Cicrano, visitantes viram o passado nas expressões do jornalista Lítotes, na lógica do padre Velho e na cara do dono de farmácia Polissíndeto.
Quantas crianças eram geradas em úteros doentes? a pergunta ficou sem resposta; Polissíndeto desconhecia e não soube explicar às visitas o porquê de gente sem nenhum respeito à vida humana.
Mesóclise, ao insistir com a pergunta de Próclise, ouviu de Polissíndeto:
Criança, far-se-á outra.
As três visitas que vieram ao solar do Dr. Cicrano, e acompanhavam a confecção do semanário O Liberdade de Expressão, cada uma ocupou um espaço na escancarada janela da qual se alcançava a metade da cidade. E viram dentro dum barril o famoso pedinte que tornou virtuosa a miséria de seu irmão.
Epimênides, o irmão e conselheiro de Diógenes, mendigava no semiárido sítio afora, de vila em vila, por cidades. Conhecido por Santana, conhecido pelos filhos de Santana, pelos pais, pelos avós.
Lá embaixo, o estranho Epimênides viu lá em cima as três. E dirigiu-se às três:
No Sítio Cthulhu, onde cangaceiros eram gestados, pairava uma espécie de horror que diminuía a humanidade. O cangaceiro não seria se não houvessem os coronéis! e ante o espanto de Próclise, Mesóclise e Ênclise, Epimênides não se conteve:
O cangaceiro, como ser incontrolável que reduzia o outro a pó, adotava o horror com o poder em destruir todo o mundo em sua volta. E o outro, vítima do horror, sucumbia-se e, sem ânimo e abatido, vivia com o pé na cova.
Em nome da sandice, Epimênides pregava a insanidade. Ele era o cavalo de Troia pelo qual a insanidade era normatizada.
O pedinte Epimênides dizia-se cretense. Como não se sabia o significado deste substantivo, considerava-se Epimênides um cretino e, portanto, eleva-o ao quadro dos insanos.
Naquela tarde, Santana se surpreendeu ao vê-lo alimentado pelas amigas Mesóclise, Ênclise e Próclise. Elas o alimentavam com palavras e ali, dentro do barril, Epimênides regozijava-se como nunca antes se regozijou.
Foi a partir desta tarde que Epimênides começou a concluir as suas frases com grunhidos curtos:
Ahgrrr! ele emitia.
A mágica de Próclise, Mesóclise e Ênclise era como hipnose. Ele as respondia com uma frase e, em lugar da pontuação, soltava um ahgrrr!
A pessoa antes de morrer ahgrrr! fazia. Bastava estar vivo ahgrrr!
Epimênides contava com 130 anos porque o viver sertanejo era garantia à vida saudável e longeva. Como as aves rumo às árvores mais altas.
Ele reivindicava ter criado o paradoxo da mentira como uma verdade. Elas riram e acreditaram nele mesmo assim, porque era um privilégio estar cara a cara com Epimênides.
Ó meu Deus!
Como isso era possível?
Vamos ouvi-lo.
A vida na cidade ou fora dela, ele disse, era solitária e vazia ahgrrr! E não importavam as ruas ahgrrr! e seguiu. As casas ahgrrr! e se foi. As pessoas ahgrrr! quando não se tinha aonde ir nem onde ficar ahgrrr! e só era compreendido por um cãochorro de rua ahgrrr!
Ênclise, Mesóclise e Próclise entenderam, como disseram a Polissíndeto, que Epimênides soltava aquele som porque era criatura da natureza quais outras eram e repetiam por diferentes motivos ahgrrr! Polissíndeto, que molhava a pena no tinteiro, concordou sem concordar com Próclise, Mesóclise e Ênclise.
Ahgrrr! ele emitiu.
No solar, Quiasmo invertia a ordem das palavras de forma cruzada e com isto se divertia, Queísmo omitia preposição de antes de conjunções integrantes, Parônimo falava palavras com iguais pronúncias e com significados diferentes. Paronomásia, que visitava a professora Anistia, dizia palavras de sons idênticos e diferentes sentidos.
Durante o encerramento daquela edição do jornal, Homônimo Homófono imitava a comerciante Paronomásia, por quem arrastava a alma, com palavras de sons iguais e diferentes significados. E Homônimo Homográfico soltava palavras cujas escritas eram iguais e significados diferentes.
O sentimento de Homônimo por Paronomásia teve início com os pesados balaios de pães despejados nos caixotes, e o irresistível aroma o atraía feito ímã; e ela no caixa. Nas horas vagas, Paronomásia era professora e ele aluno.
Era assim que se gestava O Liberdade de Expressão no solar do Dr. Cicrano. O padre Velho sepultava os olhos em seu latim:
Homo sacra res homini! repetia homo sacra res homini igual a um estoico.
Polissíndeto negava a existência de cangaceiros no sertão de Alagoas. O jornalista pernambucano Lítotes admirava o magnetismo de Mesóclise, Ênclise e Próclise.
Na janela de casa, Polissemia sonhava acordada. Com a sua cabeça nas conchas das mãos repetia Dio, come ti amo. Assim demonstrava a multiplicidade de sentidos.
Por íngremes morros rastejavam almas de mundos desconhecidos. Descia no lombo de Esperança-de-Nunca-Mais-Empacar o padre Velho.
No caminho, os casebres reivindicados pelo mato, a invasão de cactos, caibros tomados por morcegos. O tempo corria em capoeiras quais mocós em diferentes tamanhos de pedras, terra seca, espinhos-de-roseta.
O padre Velho montado em Esperança-de-Nunca-Mais-Empancar descia, subia pequenas elevações no sertão com declives suaves como se andasse nas nuvens. Dizia orações:
Finalmente, vivemos um tempo de brevidade. Somos gerados por isso.
Distanciaram-se as pedras, os espinhos-de-roseta grudam-se ao padre Velho e ao pelo do asno Esperança-de-Nunca-Mais-empancar. Via-se o vulto, não se via o bicho tempo passar.
Visitava o padre Velho o Sítio Cthulhu. A ele trazia a boa-fé presente nas boas-novas.
Próximo ao meio-dia, pregava o padre Velho com a vista que se espraiou no mar de sertão. Aonde ia o olhar do padre e do povo em sua frente via-se as figuras rochosas. E o sertão era um monolito que parecia imitar o homem.
A visão trêmula enxergava um mar d'água onde não havia. Quando a vista tocava a terra seca, nas pedras, nos espinhos-de-roseta, a visão tremulava.
O primeiro habitante, segundo se contava, era frio, não apenas de alma, também na temperatura do corpo. O toque na pele deste primeiro a ocupar o ambiente no Sítio Cthulhu demonstrava incompatibilidade com a temperatura local como se fosse acometido por algo que lembrava poiquilotermia.
A vegetação esbranquiçada, como casas de aranha, e espinhosa. Galhos retorcidos em árvores retorcidas em solo de diversidades morfológicas.
Na miragem d’água se espalhavam as pedras quais edifícios altos. O vento soprava a areia branca. Os cajueiros bramiam qual o ataque de mil guerreiros sedentos por vingança. Os umbuzeiros farfalhavam como uma invasão de um exército inimigo.
No confessionário improvisado:
Plantei roça de melancia lá no baixio, depois dos cajueiros em direção ao açude; as melanciazinhas encontravam-se desse tamanho. Veio o espírito do mal, que acompanhava o bando de Conveniência, o Cangaceiro do Rei, e furou as melancias, no chão, na rama. Nenhuma ficou sem furo; bastou o espírito do bando chegar, destruiu toda a plantação.
Não tinha receio em viver sozinho nesse lugar tão ermo?
Não.
Não planejava voltar a morar na rua?
Eu tinha casa na rua, onde deixei que morasse um compadre e a família dele.
Tinha? perguntou o padre Velho.
Morrer aqui era um compromisso que fiz ao beato e não queria quebrá-lo.
Próxima confissão:
Nunca imaginei que fosse viver tanto tempo assim! disse a camponesa. O beato veio alertar que o mal de viver tanto tempo assim se encontrava na folha de jurema molhada em gordura quente de carneiro capado.
Numa casa de taipa plantada no centro do terreiro onde foi improvisado o confessionário, o ancião dos anciões no Sítio Cthulhu falava de coisas de velho, de coisas que existiram numa época irrecuperável onde tudo era igual sendo diferente. Ele às vezes falava na segunda pessoa do singular:
Tu saísses daí!
Às vezes, na segunda pessoa do plural:
Vós deixássemos de azucrinar!
Dentro da casa, a velha do velho dormia. Na casa segura por varas cujas aberturas preenchidas por barro vermelho e marrom trazidos de um barreiro que vertia água vez ou outra, o telhado recebera telhas do mesmo barro e as telhas tortas e irregulares na largura roídas de tempo, equilibradas em caibros murchos e sem prestígio.
O ruído do vento era o mesmo. Uma agricultora cantava. O fogão a lenha interrompia o canto.
A mulher falava como de costume, na terceira pessoa do singular:
Ela era uma inocente de Cristo!
Logo falava na terceira pessoa do plural:
Elas todas, repetia, todas elas!
Na confissão ao padre Velho, um jovem:
Todos vaqueiros, padre, nessas terras!
Nenhum cangaceiro?
Aqui, padre, ninguém nunca ouviu falar nesse tipo de gente!
No alpendre curto, onde ficava a rede, um homem de cócoras:
Todos só vaqueiros nas terras do Cel. Zeugma!
A juventude era cercada por insistentes tragédias. A juventude era uma pedra que viajava no espaço cósmico em sua viagem de lugares ignotos a lugares ignorados.
Esse era o tempo da guerra do liso! na rede, o ancião balançava-se.
No alpendre, os anciães, que eram muitos, fingiam cochilar. Os filhos dos anciões, outros anciãos, se sentaram em cima das pernas, de cócoras, na calçada alta de pedregulhos que ornavam a casa de taipa com quatro águas.
Os anciões picavam fumo de rolo enquanto ouviam as preleções do padre Velho. Esperança-de-Nunca-Mais-Empacar, sem arreios, ia dum lado a outro em busca de alimento.
Uma vaca parida só apareceu uma semana depois, sozinha! falavam um ancião só. Eu era só um menino vaqueiro, quase rapaz. Ouvia dizer que eu era homem feito; pai falava que eu tinha que aprender antes de ser homem. A minha responsabilidade só era recuperar a rês desgarrada.
Outro ancião dizia:
Fui rastejador desde os cueiros! acocorado, fazia o cigarro em palha seca. Conhecia os segredos da mata aprendidos nas lições do tempo.
Pai me perguntou por que eu ainda não fui atrás da rês.
Tava jurado de morte, pai, eu disse-lhe outra vez.
Desde quando foi isso? ele quis saber.
Tinha uns dias.
Jurado com essa idade? a voz do pai escapava entre dentes estragados e barba grossa.
As galinhas ciscavam com fé em tesouros. Os bodes ouviam conversas.
O pai disse que menino de 14 não era ainda homem de 20. Idade em que o pai entrou de cabeça e a contragosto.
Um ancião escarnecia de outro ancião imaginário. A sua tosse seca era o que saía de sua expressão. A pele engelhada, os músculos flácidos.
Eu era um seco, ossudo; até ficar em pé era custoso, quanto mais segurar um papo-amarelo! a tosse seca voltou.
Os cigarros incensavam as palhas de milho. Voltou Esperança-de-Nunca-Mais-empacar, que fungava o chão à procura duma palha de milho solta.
O jumento olhava o cavalo de longe. As gargalhadas do ancião pareciam não parar nunca.
Voavam aves miúdas à frente do terreiro.
O coronel usava rifle de repetição. Só o coice derrubava e caía cabra sem sequer notar o estampido.
Os anciãos no Sítio Cthulhu por tanto imaginarem, por tanto verem almas penadas em cemitérios abandonados, por tanto enfrentarem na própria cabeça gigantes ciclopes que os ameaçavam, dormiam. O fogo do cigarro lhes acordava.
O sono visitava-os. Metiam-se outra vez em batalhas que nunca existiram. Narram conflitos imaginários. Ganhavam da Corte, no Rio, a instituição régia de coutado:
Era filho de coiteiro, neto de coiteiro. Um dia, pai de coiteiro; outro dia, avô de coiteiro. Nesta instituição real centenária vivia a família de coiteiros. Desde o período absoluto.
O ancião que se balançava na rede deixou um olho, fechou, tornou a abri-lo e espiou. Voltava o sono com o seu poder divino. Comia-se pamonha, comia-se mungunzá.
Talvez, depois que a humanidade deixasse de existir, disse o padre Velho, esta terra seca de pedras e espinhos-de-roseta continuasse. A sede de Santana ficava a sete léguas do Sítio Cthulhu, e foram vencidas uma a uma pela paciência de Esperança-de-Nunca-Mais-Empancar. E o estranho envolvia cada centímetro daquela área, e o padre Velho carecia descobri-lo. Os fenômenos eram como se algum mistério do espaço houvesse adormecido na terra seca, pedras, espinhos-de-roseta antes mesmo da humanidade existir.
O futuro era só imaginação. O passado era o devorador do presente.
O comércio ocupou o centro da cidade, que se dividiu em torno da praça e do templo de Santana com casarões assobradados. Os prédios ocupavam os espaços ladeira abaixo até o Panema de um lado e do outro as casas comerciais desciam até às margens secundárias do riacho tributário do único rio na cidade.
Os olhos, que tinham a oportunidade de alcançar longe, viam aqueles casarões assobradados de ricos fazendeiros no futuro e a memória borrada por visões opacas. O envelhecimento descuidado avançaria sobre os prédios e os descaracterizaria um a um; e a primeira praça seria a primeira vítima.
Neste ambiente de negócios encontrava-se um dos inúmeros filhos de Bé do Algodão. A mãe deles há muito havia morrido por complicações obstétricas em outra, que eram tantas, gravidez.
Bu, filho de Bé, era comerciante em Santana. Atrás do balcão de madeira, Bu atendia petitórios dos sabidos, acompanhava cada necessidade dos caboclos que se recusavam à nudez. Bu varava o dia com vendas de chitas aos matutos.
À noitinha, o asno Esperança-de-Nunca-Mais-Empancar trazia o padre Velho do Sítio Cthulhu. Ele voltava ao casarão ao lado do riacho tributário do Panema com um texto na cabeça sobre a entrevista com o Dr. Oswaldo Cruz, que estava em Santana.
O Liberdade de Expressão publicaria no próximo número sobre a Revolta da Vacina. Perguntaria ao sanitarista Oswaldo Cruz por que a ciência estava sob ataque.
Homo sacra res homini, disse o padre Velho que conhecia os segredos ocultos das almas cristãs em Santana. A humanidade é coisa sagrada à humanidade.
Os chocalhos anoiteceram o dia. Lua alevantou-se cedinho nas longas serras, disse a irmã do padre que se recolhia à camarinha sob a luz duma vela de sebo fabricada nas empresas de Bé do Algodão.
Vi o enegrecer, repetiu Prequência ao apagar com um sopro a luz da vela.
As corujas trouxeram a negra noite riscada de luar. E o balir das cabras esvaziava a imensidão.
Noutra camarinha, ouvia-se deixar pela boca da noite:
Inviam et beatam vitam!
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