Velar e enterrar os seus mortos

Adriano Nunes

É costume antigo enterrar os seus mortos, independentemente das crenças acerca do que isso significa ou a que fins tal ato se destina. Há povos que até comiam os próprios mortos! Todavia, no geral, o que percebemos é que aos vivos é dada uma chance última de contato com os seus, como se houvesse nisso uma lei maior (vide Ἀντιγόνη, de Sófocles, bem como as interrupções na guerra de Troia e a devolução do corpo de Heitor a Príamo, ambos relatos contados em Ἰλιάς, de Homero) que ditasse que essa respeitabilidade e amabilidade com os seus mortos estavam acima de ideologias, partidos, políticas, Estados, conflitos.

Enterrar ou velar mortos não é uma tradição cristã a priori. As finalidades são múltiplas e distintas. O que vem fazendo o covid-19 (como fizeram outras pestes e pandemias letais)? Ditando uma lei maior ainda: a lei da Vida. Tal lei se sobrepõe àquela lei metafísica (que se traduz em amor e respeitabilidade aos mortos), pois se traduz em amor e respeitabilidade à vida. Evitando os rituais ou a proximidade com os seus mortos por coronavírus, as pessoas (parentes e amigos) promovem um luto distinto e mais doloroso, todavia impregnado de uma ética humanitária, por amor não apenas à sua própria vida, mas a de todos, por amor mor à vida em si.

Em Antígona, de Sófocles, o Coro diz: "νόμος ὅδ᾽, οὐδὲν ἕρπει/ θνατῶν βιότῳ πάμπολύ γ᾽ ἐκτὸς ἄτας." (Nada que é vasto vem/ À vida dos mortais sem desventura). A pandemia veio alterar significantemente a vida de todos e todas, modificando instituições, atos, práticas, discursos, questões morais e éticas, problematizando a vida, a morte, o sistema de saúde, o sistema farmacêutico e químico, o sistema educacional, o sistema midiático, o sistema político, o sistema jurídico, enfim, pondo o todo social em uma mobilização antes, talvez, não mesmo vista. Entre aventuras e desventuras, entre fake news e ideologias, entre a mercantilização da vida e da liberdade e os instintos primitivos de sobrevivência. Fez com que ressurgissem novas teorias conspiratórias racistas e perniciosos messianismos. Também desmascarou potências de primeiro mundo: nunca estiveram mesmo preparadas para guerra nenhuma! O discurso armamentista mostrou-se ainda mais falacioso e nefasto. Bilhões gastos em defesas de Estados nacionais, e o que vemos é falta de protetores individuais, respiradores mecânicos, leitos hospitalares em CTIs e UTIs.

Em “Entre o passado e o futuro”, Hannah Arendt lembra que “quando Sófocles (no famoso coro de Antígona) diz que não há nada mais inspirador de temor que o homem, ele prossegue, para exemplificá-lo, evocando atividades humanas propositadas que violentam a natureza por conturbarem o que, na ausência dos mortais, seria a eterna quietude do ser-para-sempre que descansa ou oscila dentro de si mesmo.". Nisso, deparamo-nos com um aparato do devir de posturas políticas no mundo quase todo, posturas, atos e práticas empreendidos por Chefes de Estado que tentam, primeiramente, salvar os seus concidadãos e concidadãs da morte. Um gesto sábio, ao que tudo vem indicando. Alguns estadistas, que inicialmente criticaram a ou debocharam da pandemia, mudaram as suas posições e deixaram de menosprezar ou relativizar a situação que é mesmo grave. Sófocles constata que "ἀλλ᾽ ἄνδρα, κεἴ τις ᾖ σοφός, τὸ μανθάνειν/πόλλ᾽, αἰσχρὸν οὐδὲν καὶ τὸ μὴ τείνειν ἄγαν." (“Não, mesmo quando um homem é sábio, não lhe traz vergonha aprender muitas coisas, e não ser tão rígido"). Essa é verdadeira sabedoria: sempre estar disposto a aprender! Aprender com os que estão agindo corretamente, aprender com a comunidade científica, aprender com os que estão abertos a compreender o que está acontecendo, para, assim, tentar proteger a humanidade de um colapso mais grave e funesto.

Volto à questão de velar e enterrar os seus mortos. Volto à tragédia Antígona. Nesta passagem, Antígona diz para Ismênia que Creonte (o Estado) não tem o direito de afastá-la dos seus, por isso enterrará o seu irmão: “Ἀντιγόνη: εἰ τὸν νεκρὸν ξὺν τῇδε κουφιεῖς χερί. Ἰσμήνη: ἢ γὰρ νοεῖς θάπτειν σφ᾽, ἀπόρρητον πόλει; Ἀντιγόνη: τὸν γοῦν ἐμὸν καὶ τὸν σόν ἢν σὺ μὴ θέλῃς/ἀδελφόν: οὐ γὰρ δὴ προδοῦσ᾽ ἁλώσομαι. Ἰσμήνη: ὦ σχετλία, Κρέοντος ἀντειρηκότος; Ἀντιγόνη: ἀλλ᾽ οὐδὲν αὐτῷ τῶν ἐμῶν μ᾽ εἴργειν μέτα.”(“Antígona: Tu juntarás a tua mão à minha para erguermos o cadáver? Ismênia: Tu planejas enterrá-lo - quando é proibido pela cidade? Antígona: Sim, ele é meu irmão e teu também, mesmo que tu desejes de outro modo. Nunca serei condenada por traí-lo. Ismênia: Ousada! Mesmo quando Creonte tem proibido isso? Antígona: Não, ele não tem o direito de afastar-me dos meus”). Antígona apoia-se numa lei maior do que a lei estatal, a lei que se traduz em amor e respeitabilidade aos mortos, porque, de acordo com essa lei, os vivos não são afetados enquanto vivos, de modo letalmente. A tradição, o respeito, o amor aos mortos e a religiosidade do ato transcendem as leis estatais, neste sentido, não podendo o Estado impedi-la, portanto, de velar e enterrar, com dignidade, o seu irmão.

Com a pandemia do coronavírus, o que se tem visto? Mortos sendo cremados, enterrados sem familiares e amigos. Cadáveres sendo levados para serem depositados em valas comuns até. Caminhões transportando corpos como se transportassem dejetos. Há uma inversão consentida, aparentemente, de que o Estado parece poder fazer o que for melhor para a nação, para os cidadãos e cidadãs indistintamente, em nome da vida. Abrem-se, de algum modo, os portões do reino da indiferença e da dor. Nestes tempos sombrios, direito e moral precisam ser repensados. A época de regras e princípios rígidos se não acabou definitivamente tem o seu edifício ruído. Quem ainda sustentar tal tese poderá até ser tomado por arbitrário ou mesmo tirano.

A demora em tomar posições e medidas de ação políticas centralizadas fez com que estados e municípios agissem primeiramente e, talvez, rápido para tentar salvar a sua população. Normas e princípios constitucionais são postos em xeque. A vida passa a ditar o jogo in totum. Mas ela não afastou com isso o egoísmo e os ódios vários. Há a torcida de Θάνατος para que alguns morram, não duvidem. Os adversários políticos, se pudessem, manipulariam os genes do vírus para fins barbáricos, eugênicos , monstruosos. Apontar isso indica o sentido cruel que, às vezes, a política assume e traz à tona. Não podemos esquivar-nos de analisar tais questões, de expô-las cruamente. Alguns países não parecem cooperar mutuamente. Há um negócio capitalizado da vida. Os Estados Unidos, por exemplo, querem comprar todo o material de proteção e de respiração mecânica apenas para os seus. Os industriais chineses impõem novas regras comerciais: vendas à vista e ainda assim com restritas garantias. A Alemanha, todavia, mostra sinais de humanidade: traz para si a responsabilidade de cuidar e tratar de pacientes graves com covid-19 de outras nações. Nunca mais seremos os mesmos, num sentido mais abrangente.

Adriano Nunes

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