Acabo de ler o livro Para Amar Graciliano (Editora Faro Editorial, 1ª edição, São Paulo, 2017), de autoria de Ivan Marques, professor de Literatura Brasileira – USP. A mais completa análise da obra que li sobre esse artista alagoano, ícone da literatura brasileira, comentada por uma extensa lista de referências bibliográficas de respeitáveis críticos literários.
Bem possível que o doutorado de Ivan Marques tenha tido, como fonte de pesquisa e análise, textos extraídos de Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas Secas, romances publicados na década de 1930, com inúmeras incursões por Infância, livro de memórias de mestre Graça, que foi publicado em 1945.
Sente-se, de início, que o autor é, claramente, admirador de Graciliano ao escrever na Introdução do livro: “Graciliano é cada dia mais lido e admirado, em especial pelas novas gerações. Não é só um monumento de pedra das letras nacionais, mas uma força viva, incômoda, áspera como um sol estridente, que toca de maneira profunda os leitores.”
Há algum tempo, li Garranchos – Textos Inéditos de Graciliano Ramos, organizado por Thiago Mio Salla, bacharel em Português, Linguística e Jornalismo – USP, publicado em 2ª edição. Em 2013, pela Editora Record (Rio de Janeiro – São Paulo).
Como em Garranchos, leio o título “Ideias Novas”, peça teatral escrita em 1937 e publicada em 1938, aventura de Graciliano pelo teatro, espécie de comédia de costumes da vida sertaneja, que não passou do 1º quadro e sete cenas.
No meu livro Chuva Miúda no Sertão (crônicas), 2014, nas páginas 141 e 142, fiz referência e comentários sobre a inacabada peça teatral, em
cujo cenário nos deparamos com textos e caricatas personalidades de Santana do Ipanema, cidade perdida no interior alagoano, de costumes modestos, conservadores, retrógados, longe dos rumores ilusórios da vida civilizada da capital do estado. Era isso, a meu ver, o que a peça teatral desejava passar ao público do final da década de 1930.
Vejamos os personagens e alguns retalhos de diálogos, conversas.
Capitão Lobo, comerciante e delegado de polícia, tentando arrancar de um preso, acusado de ladrão de cavalo, confissão à base de “cacete e cipó de boi” e “comigo é no pau.”
Cabo Feliciano, comandante do destacamento, indeciso e covarde,
reluta em não obedecer às ordens do delegado para cometer a violência
recomendada. Destacamento que se compõe, segundo Feliciano, de “quatro figuras: um soldado velho, que possui uma ferida incurável no pé, um doente do peito, um menino amarelo e este seu criado.”
D. Aurora, esposa do delegado, do lar, considerada pelo próprio marido “uma professora jubilada que só cuida de galinhas”.
Seu Rodrigues, acusado leitor de romances impróprios, indecentes,
é “um oficial do registro civil em Santana do Ipanema que não tem direito de pensar demais”.
Mariana, principal protagonista, filha do delegado, é normalista, que fora mandada estudar na capital, trouxe de lá ideias novas, de comportamentos avançados.
Adelaide, dialogando, revela à amiga Mariana maldosos comentários na cidade: “Juram que você não é mais moça. Comprometeu-se namorando três rapazes ao mesmo tempo. Os três num dia.”
Mariana, que pretende sair da cidade, reage: “Bobagem. O ano vindouro findo meu curso e bato as asas. Se em seis meses não conseguir o que desejo, é porque só sirvo para ser professora em Santana do Ipanema.”
Adelaide conclui a conversa: “professora com uma reputação estragada!”
O saudoso escritor santanense/palmeirense José Marques de Melo, em seu livro Sertão Glocal, logo no início, página 22, disse: “Compreende-se também por que Graciliano Ramos descreveu Santana do Ipanema como “Terra Espinhosa”, cuja paisagem é dominada por mandacarus e cujos remanescentes populacionais condenados à barbárie resultante do isolamento, nas frequentes e prolongadas estiagens, eram induzidos a permanecer “fora da lei”.
Claro que “Terra Espinhosa” nada tinha a ver com mandacarus e facheiros, cheios de espinhos, mas com a violência regional da década de 1930, época de movimentação de cangaceiros de Lampião pelo extenso território do município de Santana do Ipanema, fazendas, povoados e cidades vizinhas, assaltando e cometendo crimes.
Também há de supor que mestre Graça tivesse algum prurido ou indisposição contra figuras da sociedade santanense, a julgar pela apresentação dos personagens e enredo de sua inacabada peça teatral, porém sem verossimilhanças percebidas pela crítica da época.
A literatura da década de 1930, a respeito do papel da mulher na sociedade de então, olhava-a de soslaio em razão da sua condição intelectual, de ideias avançadas, “vistas como transgressoras das normas sociais”, exemplo de Mariana, mulher de pouca reputação, certamente bonita, cortejada, como assim fora construída a protagonista por Graciliano Ramos.
Madalena, esposa do autoritário fazendeiro Paulo Honório do romance São Bernardo, “egressa da cidade, representava de fato valores modernos”. Vivia, por isso, em confronto com o marido.
Graciliano, certamente, criou Mariana em sua peça teatral inspirado, em parte, em Madalena.
O escritor Luís Bueno, autor de Uma História do Romance de 30, citado por Ivan Marques, página 130, comentando, disse: “Romances como O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz, trazem um novo tipo de personagem feminina, que escapa aos modelos convencionais da literatura romântica, na qual a mulher invariavelmente aparecia ou como santa ou como prostituta.”
De fato, é o que se deduz de parte do diálogo de Adelaide com Mariana, duas viventes, à época, de uma cidade do interior de Alagoas.
Disse Adelaide: “Você se inutilizou, meu bem.”
Afinal, a incursão de Graciliano no teatro não deu certo. Mas tornou-se ícone da literatura brasileira, amado, admirado, festejado e lido.
Sua obra literária tornou-se universal.
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