O PÃO DE CADA DIA

Djalma Carvalho

No interior, no sítio, onde a noite caminha preguiçosa, os galos costumam amiudar pela madrugada, comunicando-se, pelo canto, com outros galos dos sítios vizinhos. Pela lei natural do universo, lentamente começa aí o amanhecer. Raios do Sol começam a derramar-se, ainda que de forma difusa, nas serras, montes, montanhas e, bem longe dali, no trêmulo multicor do mar em rebuliço. Lindo crepúsculo matinal.
Antes do dia luminoso, será manhã muito cedo.
Na cidade, despertando a clientela muito cedo, começava o trabalho diário do pãozeiro, entregando ou vendendo pão em domicílio. Balaio na cabeça, buzina na mão e, no ar da manhã tropical, sentia-se o cheiro gostoso de pão novinho, há pouco retirado do forno da padaria. Trabalhador caprichoso, atencioso, paciente.
Relendo o livro O Cavaleiro do Escorpião, do médico português, Dr. Luís Lourenço, vejo na página 201 o que disse o escritor sobre a paisagem matutina de sua aldeia: “Na aldeia tradicional, hoje como ontem, é o padeiro que inaugura a manhã. O paciente madrugador removeu o pano branco, único elemento a aproximar duas épocas bem distintas, e pôs a nu uma infinidade de merendeiras e cacetes dos mais variados tipos e formatos.”
Para o escritor português, padeiro é quem “inaugura a manhã”, fabrica e entrega pão em domicílio. No Brasil, no Nordeste, por exemplo, quem faz entrega ou vende pão em domicílio chama-se pãozeiro.
O pão de cada dia é fabricado com farinha de trigo ou de cereais, alimento sempre presente na mesa do homem desde os tempos imemoriais. Há mais de 12 mil anos, portanto. Acredita-se que o pão tenha surgido na Mesopotâmia, onde hoje se situa o Iraque, no Oriente Médio. Outros registros assinalam que o pão fabricado em forno de barro tenha surgido no Egito no ano 7000 a. C. e chegado à Europa em 250 a.C.
Curiosamente, diz-se que o pão francês não surgiu na França, mas no Brasil. Trata-se, na verdade, de produto aqui fabricado após a 1ª Guerra Mundial, na década de 1920, inspirado em “pão curto, miolo branco e casca dourada”, servido na França, cuja receita foi trazida para cá por gente rica em viagem pela Europa.
Há uma infinidade de nome de pão: pão ázimo, pão da alma, pão de fôrma, pão de sangue, pão integral, pão-carteira, pão crioulo, pão-canoa, pão-bengala, pão- careca, pão de ló, pão sírio, pão de véspera, pão doce, pão de queijo, e vai por aí.
Pão, como feijão e arroz, é o principal alimento a chegar à mesa do pobre, aqui e em qualquer lugar do rincão brasileiro. O pão, como que sacramentado, objeto sagrado, milagroso, ameniza a fome de milhões de almas no mundo inteiro.
O vocábulo pão está em todo lugar, até em gíria: “A moça era um pão de gostosa.”
Também está em reza, no padre-nosso: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje...”
Igualmente, nos sacramentos da Igreja Católica, o pão está presente, seja na celebração da Eucaristia, seja na presença de Jesus Cristo, no simbolismo divinal do pão e do vinho.
Padeiro, segundo mestre Aurélio, é o fabricante ou vendedor de pão, assunto que me faz recordar Santana do Ipanema de tempos de outrora, notadamente lembranças da minha juventude. Lembro-me, por exemplo, das poucas padarias ali existentes nas décadas de 1950 e 1960. A mais antiga, a meu ver, teria sido a padaria do Sr. Álvaro Granja, na Rua Rio Branco, na descida, abeirando-se do rio Ipanema. A padaria do Sr. Isaías Vieira Rego, também bem antiga, era situada no Largo do Mercado, no início da Rua Tertuliano Nepomuceno. Finalmente, a padaria do Sr. Raimundo Melo, mais moderna, situava-se na Praça Senador Enéas Araújo. Depois daí, outras padarias foram surgindo de acordo com a demanda da população da cidade que crescia. Fiquemos, apenas, com essas três padarias de longa existência na cidade.
Todas elas tinham revendedores de pão em vários pontos ou bairros da cidade, além dos pãozeiros de todas as manhãs, que vendiam em domicílio, indo até ao interior do município, a povoados e a distritos.
Para encerrar o assunto pão, padaria, pãozeiro e galos das madrugadas, Lourival Amaral, há muito falecido, era emérito contador de histórias, casos e causos em Santana do Ipanema, sua terra natal. Contava que, certa vez, lá para a década de 1940, se perdera no centro de Maceió, com o dia amanhecendo. Após memorável farra com seus conterrâneos moradores na capital alagoana, ficara areado, desnorteado, à procura da pensão onde se hospedara na Praça dos Martírios.
Fora salvo por um pãozeiro, velho negrão, bondoso.
Lourival, sem perceber, já se encontrava na própria Praça dos Martírios. Perguntou, então, ao pãozeiro: “Onde fica a Praça dos Martírios?” Antes de completar a pergunta, o pãozeiro já apontava o dedo para o calçamento, dizendo: “Aqui.” E a pensão? Estirando a beiçola, o negrão indicou: “Olhe ela aí!”
Acanhado, Lourival retirou-se, esquecendo de agradecer a gentileza do velho pãozeiro, também madrugador.

Maceió, abril de 2019.

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