O NÃO-MÉTODO GEROU O ERRO DO CÓDIGO E A ALTERAÇÃO DA REALIDADE

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

No ponto em redor do qual estão as pedras, o mato seco, os espinhos-de-roseta, disse o narrador observador ao narrador consciente, na presença de um narrador personagem, o fígado dela é devorado dia a dia, todas as tardes e, durante à madrugada, ele se reconstitui. Quem vem devorá-lo?Às vezes,um carcará; às vezes,uma coruja.
O narrador personagem contava a partir do que via no cocuruto de um dos serrotes que circundam Santana, e falava em primeira pessoa. O observador não se envolvia de maneira direta com o narrador personagem; às vezes, sequer olhava-o e, por vezes, ignorava completamente a sua presença.
O observador, que contava o que via,na terceira pessoa,mesmo próximo ao narrador personagem, fazia de conta que ele não se encontrava ali. E a tudo observava o narrador onisciente, porque sabia cada detalhe pretérito e futuro da narrativa; sendo onisciente, falava ora na primeira, ora na terceira pessoa.
Cleobulina, ao chegar cansada em casa, tarde da noite. Zonza, sem saber o que a esperava no fogão, encontrou os três distribuídos nos degraus.
Os textos atemporais, disse o narrador onisciente, são atemporais porque falam sobre a condição humana.
E as sensações alheias motivam a gente a ouvir discursos que se fazem! disse o narrador personagem.
E as ideias vêm à tona qual a lâmpada que se acende sobre o texto! disse o personagem observador, porque não sabia ficar calado.
Cleobulina passou por eles como se não estivessem ali. Os três eram tão comuns, que ela já não os considerava gente.
Àquela hora, anunciou um galo, Autorreferência e Metalinguística tinham acabado de sair, quando Cleobulina chegou em casa. Cartas, que ganham o dia a ensinar a escrevê-las, indo com Metalinguística e Autorreferência.
O vendedor de pipocas, Jackobson, em casa. Cleobulina atravessou a nuvem de fumaça de milho-alho banhado em óleo, e lamentava não trazer na bolsa moedas.
Conhecimento Prévio e Inferência, que eram vigias noturnos, saíram do breu.Subiram, desceram, passaram por Cleobulina.
Boa noite! disse um deles.
Estilística ainda estava acordada. E não se ouvia mais os choros dos seus filhos Poesia, Dramaturgia e Narração. Estilística era abandonada pelo criador com quem teve os filhos; ele só reaparecia ao vê-los crescidos, e deixava outro no ventre de Estilística.
A tipologia textual é múltipla! costumava dizer Estilística.
Precisava dormir. Logo, logo, Maceió iria acordar, e o tipo jornalístico logo, logo iria espalhar as notícias; logo, logo, o senhor da padaria iria exigir do padeiro Injuntivo pães, mais e mais. Logo, logo, as ruas na capital iriam ficar repletas de tipos dissertativo-argumentativos.
No bonde, passaria o Emissor.
Bom dia! e o bom dia ficaria sem eco.
Passariam Receptor e Mensagem, mãos dadas. Apressados, passariam o Contexto Referente e o Canal do Contato. Não demoraria, o Código Usado.
Bom dia! e o bom dia seria outro bom dia sem resposta.
Chegou em casa com cansaço nas costas. Como um fardo de pecados.
Estava claro que o Criador não criou a criatura com o peso do trabalho e a responsabilidade do próprio sustento. Comprova-se por tê-la destinado ao Paraíso.
Abancada no gasto tamborete, Cleobulina suspirou. E com a expulsão do Paraíso, logo, logo lhe veio a Linguística com o estudo da língua, a Gramática com as regras, a Literatura com os discursos.
Avançava a noite dentro da madrugada. E, assim, o não-método gerou o erro do código e a alteração da realidade nos dias de Cleobulina.
Apitava a Great Western.
Por que não fiquei em Santana? Nas ruas escuras e cheias de mato, caminhos rasgados pelos pés dos caminhantes entre morros de barro vermelho, às noites ocultavam os assaltos à mão armada, as mortes bárbaras por motivos torpes.
Cleobulina atravessava a linha férrea da Great Western, antes de chegar em casa.Apressava-se em estreitas passagens ladeadas por urtigas, as picadas de areão; passava debaixo das cercas de arames farpados.
Sob a lua, num céu límpido, quase corria nos pastos. Era assim que ela compreendia a si mesma no mundo; dizia que pagava pelos erros cometidos dos quais se arrependia, mesmo que o arrependimento fosse só mais um de seus defeitos.
Tropeçou Cleobulina na Linguística. Viu nela, viu através dela, como uma luz, toda a linguagem humana. A linguagem atravessava-lhe o peito. A estrutura não era a mesma com a Linguística. As expressões renovaram-se. A mudança da fonética era identificável por ela àquela hora sob a lua cheia.
Um sapo coaxou. Era como se ele quisesse compreender a evolução da língua pátria – uma paroxítona, que se conclui como ditongo crescente -ia.
Na sala,Cleobulina viu a uva-passa. E, na escola, viu a greve. Na igreja, ela viu a regra. No cemitério, viu a morte. No altar, ouviu a promessa. Em casa, viu a fome.
Amanhã seria domingo, Domingo de Ramos.
Minha irmã, Aspásia Doceira, ficou em Santana. Temistocleia, depois que conheceu o padeiro, levou com ela a filha, Asioteia, fugiu com Eufemismo. Onde andará Temistocleia e Asioteia? Elas adoravam ir à igreja.
O filho do cangaceiro Camundongo só sabia roubar e matar. Também, ele nunca aprendeu a fazer outra coisa; foi assim desde criança!
Minhas irmãsonde foram, aonde iam essa hora? O irmão Bé Carroceiro tornou-se coronel de anéis e mandos, formosura e riquezas desde quando uma menina da Camoxinga tomou gosto por ele.
Gabiru Lambujem, filho de Camundongo, nunca mais apareceu na banca de temperos, na Feira do Passarinho. Não apareceu mais com pedidos de que lhe guardasse o seu revólver. Aquele crime do homem gordo que abria as portas do Cartório ficou por isso, com uma pedra em cima.
Bazófia ficou de escrever; não escreveu a primeira linha. Desisti de querer saber se o carteiro trazia boas novas.
Na rua escura, por onde Cleobulina via o silêncio da noite através do breu na janela, a Linguística e a Língua conversavam como velhas amigas. Tentava uma compreender a outra.
Bazófia fez promessas que não poderia cumpri-las; mesmo assim, ele fez. Isso era o jeito dele ser. Vivia cheio de promessas, e nenhuma seriedade sobre os próprios compromissos. Responsabilidades? Nunca soube o que era isso e jamais quis saber! abancada no gasto tamborete, que não parava de gemer.
Dentro da noite escura, a Gramática tinha as suas próprias regras. Era ela quem, por meio de pronome pessoal do caso reto anafórico, é como se aprende na escola, fazia referência a Bazófia e a sua negação à honestidade; ele nunca quis cumpri-la.
Via através da janela sob a lua num céu de pedacinhos de giz. O que era aquele vulto? O cavalo manco pastava no campo. Esta oração parecia um verso.
O cavalo também possuía uma língua.
A estrutura da língua era do campo da fonologia, da sintaxe e da morfologia que mudavam de acordo com o vento da noite clara. Só a literatura compreendia o discurso. A linguística, ora a linguística!
Cleobulina tropeçou em pedras, machucou o dedão, perdeu a unha. Fez vigília em velório, acompanhou cortejos fúnebres. Agora, via o mundo através da janela.
Lá fora, a morfologia fazia das suas, a sintaxe aprontava o que lhe desse vontade, a fonética não parava de falar, a sociolinguística era bem atirada. Ficou a pragmática cheia de pantins.
E, por algum motivo, pela abertura da janela às cores da noite, Cleobulina viu a cozinha dos pais de Breno Accioly na noite de festa em que Santana recebia José Lins do Rego. Ela e a irmã Aspásia Doceira, que foi contratada naquele dia festivo porque conhecia os segredos da confecção de quitutes sertanejos.
Lá fora, andava o vulto da Morfologia; o aspecto dela, de longe admirada, demonstrava o seu gosto pelas palavras, por suas origens. Mais tarde, Sintaxe surgiu dentro da fumaça distante da queima da palha verde da cana-de-açúcar; a impressão que transmitia, emoldurada na janela da casa de Cleobulina, era a de estudava as palavras, não as elas em si, porém vivas nas frases cujos poetas alagoanos cantavam em noites assim.
Depois, foi a vez da Semântica. Ela apareceu na janela como espanto. E deu sentido à noite, deu sentido à lua, deu sentido à poesia. Em seu contexto, as palavras iluminaram-se.
Passearam na noite a Fonologia e a Fonética, que eram inseparáveis. E a Sociolinguística surgiu mais tarde, como fazia todas as noites, enquanto comia Cleobulina e lutava em busca do sono. O cansaço a impedia de alcançá-lo.
E o dia quase voltava, quando Cleobulina teve a certeza de ter visto a sua amiga de infância Pragmática.
Cleobulina, durante as suas idas ao trabalho, via em profusão as ovelhas soltas, via bodes, vacas amarradas numa corda que ia de porta em porta vender o leite. E presenciou pedreiros que levantavam paredes, abriam portas, janelas. Currais forrados de esterco em ruas de casas miúdas, e sem reboco, e sem tinta. Os caminhos irregulares subiam e desciam as ladeiras de Maceió.
Por um instante, Cleobulina viu na moldura da janela de sua casa, naquela madrugada onde ela lutava contra o cansaço e a insônia, a amiga de infância,Pragmática, que trabalhava com a filha Cleobulina, em Mangabeiras, na pensão da filha da viúva de Cruz das Almas.
Pragmática sabia como ninguém interpretar as linguagens. Apenas ela ia além dos sentidos de palavras, frases e gestos. Identificava com facilidade cada comunicação.
Pragmática, Pragmática! disse Cleobulina. Pragmática! insistiu. Será que ela está bem? questionou-se como se tivesse recebido um aviso.
A gramática do tempo determinava as suas próprias regras. Ela tornou-se múltipla ao dividir-se feito Hidra de Lerna. Como não era uma, era normativa em um volume, noutro descritiva, e se apresentava comparativa em outra roupagem, e em outra impressão era histórica.
Gramática, do outro lado da janela, ora falava de uma língua que não se falava mais, ora comparava língua com língua, ora se apresentava como a boa linguagem por ir à escola, ora combatia o preconceito linguístico e aceitava todas as variações da língua, ora se internaliza e sabia, de seu jeito, compreender a todos e todos a compreendia. A gramática aparecia como um pesadelo, aparecia e desaparecia na moldura da janela de Cleobulina.
Todas as manhãs, Cleobulina ouvia os pregões das crianças vendedoras ambulantes de jornais. Nos passos apressados, viu o Onde ao lado do Quando, e ela presenciou o Como de mãos dadas com o Que indo. Na volta do trabalho, Cleobulina encontrava-se com todos os Por Quês.
Tão amigos o Verbo e o Substantivo – cale-se, disse um, e outro no cálice. O verbo intransitivo e pronominal falava, o amigo bebia. E Cleobulina jura tê-los visto. O bar era sujo, quase desprezível; um lugar imundo, que fedia a um gosto azedo, que se misturava ao doce da língua.
Tudo era escuro, como estava escuro ontem e antes de ontem também; talvez, fosse essa mesma escuridão que a esperaria amanhã. Voltava Cleobulina do trabalho em direção ao cheiro de sua casa.
Ela ouviu tiros distantes; voltou-se e viu o lampejo de breves luzes como se fosse fogo de um palito de fósforo que tentava ser acesso. Tiros no bar onde bebiam o Verbo e o Substantivo.
Cleobulina voltava à sua casa por lugares escuros e estranhos, cheios de morros. Numa esquina, ouvia:
Ne me faispasça, s’il te plaît! gemia uma trabalhadora da Rua da Lama.
Entrava Cleobulina em um beco, escutava o miado:
Don’t do that, youidiot!
Os estrangeiros estavam sempre em Maceió.
Cleobulina viu, nos becos escuros de Maceió, a Gramática Contrastiva de boca pintada, de unhas pintadas, minissaia. Acompanhava-se ela de Linguística, uma amiga inseparável. Contrastiva comparava línguas à procura de diferenças e semelhanças. Elas fumavam na esquina com Estruturalismo.
Outra noite, de volta do trabalho, Cleobulina passou na velha rua sem luz que a levava à sua casa e viu o barbeiro sentado à porta doganha-pão. Ouviu a sua voz fraquinha quão um adjetivo, os sonhos que ele guardava dentro daquela casa iluminada por tocos de velas.
Mais tarde, Cleobulina viu o barbeiro, que chegava da rua, suado, com os instrumentos de trabalho. Escutou a sua voz reclamar porque vivia sozinho. Por que vivia sozinho? Vivia sozinho por quê? Qual o porquê de uma vida assim, não sabia explicar.
Os discursos, sempre eles. E quando não era o discurso indireto livre, era o discurso direto, ora o discurso indireto. O direto era adepto às aspas; indireto tinha a mão do narrador; o livre não sabia o que fazer, se liberava a voz alheia ou a censurava.
Adiante, nas noites em que Cleobulina deixava o trabalho e ia por lugares ermos e perigosos, rumo à moradia, escorriam em gotejo as horasno calendário, e ela viu o mesmo que fazia barba, cabelo e bigode. Ele conversava com uma jovem de risos tímidos; ria sempre com os olhos grudados ao chão.
Não demorou, outra das noites em que voltava do trabalho, Cleobulina viu a jovem pronta a dar à luz naquela rua escura, cheia de animais soltos, pedras, mato, buracos. Ela viu a jovem mãe. Viu a jovem com uma criança de cola. Vi a mãe outra vez grávida.
A mãe, que era magra, ganhou corpo. A mãe cercou-se dos filhos, que não tinham roupas e viviam nus, noite e dia. Cleobulina via como era a vida daquele homem que tirava o ganha-pão do cabelo alheio, da barba, do bigode.
O dia todo em pé em torno de uma cadeira, nelabigode, barba e cabelo. As crianças cresciam. A rua continuava escura, os animais soltos, mato, pedras, buracos. Os gritos da mãe, que zelava pelos filhos. Os filhos ganharam cabelo na cara.
Cleobulina voltava do trabalho, noite alta, longe, via a luz de velas em torno da barbearia. O barbeiro ganhou barriga. O dia todo em pé, reclamava de dores nas pernas. Os filhos em pé, ágeis, como são ágeis as forças na juventude;cada qual em torno de uma cadeira de barbeiro.
Cada um deles molhava, secava, tornava a molhar a barba, o cabelo do freguês, mostrava-lhe no espelho a torto e a direito, puxava assunto e distribuía conversa, ria, loroteava, contava piadas, falava as últimas novidades em Maceió. As noites de Cleobulina acompanharam a saga da família do barbeiro.
A gramática geral, na família do barbeiro, não parava de multiplicar-se. A fala e a escrita seguiam as convenções da tesoura e da navalha.
As frases orientavam-se pela Sintaxe. As palavras formavam uma banda e, sendo um conjunto, seguiam a Morfologia quanto à flexão, a nota, a estrutura, o ritmo, a formação do grupo, a classificação. E Fonologia e Fonética, que eram os vocais, se deixavam estimular pelos diferentes sons; cabia-lhes os acentos e a pronúncia na escrita. Era como a Música e a Poesia em Maceió ganham às ruas.
E, de manhã, quando Cleobulina ia trabalhar, passava na casa do homem encostado, o acendedor de lampiões, que não acendia mais. Abancado na porta de casa, esquecido um palheiro entre o indicador e o médio.
Bom dia, Beltrano! cumprimentava-o Cleobulina. Como vai Fulano?
À noite, quando Cleobulina voltava do trabalho.
Fulano vai bem, Cleobulina!
Cedinho, o sol sequer sonhava em levantar-se, ia Cleobulina outra vez ao trabalho. Noite alta, tarde, hora de corujas caçarem ratos e morcegos irem atrás de frutos, Cleobulina regressava.
Tremulava a luz opaca na tapera de Beltrano. Fugiam pelas frestas raios amarelados e finos de luz.
Nessa hora, disse Cleobulina, Fulano reúne os trapos, procura o sono.
Na gramática universal, Fulano e Beltrano, iguais a toda a humanidade, dominam a linguagem independentes da escola. Eles sabem quando usar o verbo, mesmo sem identificá-lo. Eles usam adjetivos, advérbios, artigos, numerais, sem jamais saber que convivem com eles. As consoantes e as vogais e substantivos estão presentes nas falas de Beltrano e Fulano sem que saibam.
O marceneiro cortava tábuas, batia pregos. Cleobulina fazia uma viagem a Santana, revia o pai, que não existia senão em suas lembranças. Ouvia o toc-toc do martelo na madeira, que aceitava o prego sem reclamar.
Dona Diacrônica era a mulher do marceneiro com a qual Cleobulina falava sobre o que era viver em Maceió. Dona Diacrônica ainda usava vossa mercê em lugar de você, e ela imitava a pronúncia implosiva do -s usado por Dom Pedro II, que navegou no Rio São Francisco. Dona Diacrônica era também uma adepta de alofones oclusivo e dental ao pronunciar -t.
O sapateiro cortava o couro, molhava-o, tornava a cortá-lo. IaCleobulinaligeira, atrasada de novo ao trabalho porque só sabia sair de casa em cima da hora. Ela via o homem gordo, sob o sol de ouro de Maceió, passar a lâmina da faca na palmilha. Ele cantava alto, cantava uma oitava acima dos sapateiros, na Rua dos Sapatos.
Cleobulina não sabia como veio parar em Conceição do Roçado, Terra do Teatro-Feijão-Com-Arroz. Era como se ela não estivesse acordada. Ninguém sabia se estava realmente dormindo; sabia ao acordar. Quando se dorme, não se sabe; e se descobre ao acordar.
Não é um sonho apenas sonhá-lo. Cleobulina vê-se em Conceição do Roçado onde o sonho acontece por ser compartilhado.
Conceição do Roçado é um entre os inúmeros povoados em Santana – o maior município alagoano. Personagens espalharam-se em torno de Cleobulina; alegres padre Piau, delegado Severo Açoite, D. Farinha, S.Afobadim, Dastarrafa e Dosanzói. Todos na primeira situação do que Cleobulina sabia ser as bodas juninas dos brincantes Dastarrafa&Dosanzói. O primeiro a falar foi o Padre Piau ao Delegado Severo Açoite.
PADRE PIAU
Primo delegado Severo Açoite,
Eu lia nessas folhas de jornal
As notícias que me chegavam
Aqui em Conceição do Roçado.
DELEGADO SEVERO AÇOITE
Me arrependo não ter estudado
Pra ser padre assim que nem tu.
PADRE PIAU
Por que delegado Severo Açoite?
DELEGADO SEVERO AÇOITE
Na delegacia, tudo o que faço: peleja
E dar conselhos que nem tu, na igreja.
PADRE PIAU
E veio aqui com que propósito?
Se não possui o que fazer agora,
Eu vou lhe dar serviço e aposto,
Se não fizer o que eu lhe ordenar,
Eu vou lhe aplicar um belo castigo.
É melhor a delegacia você voltar.
DELEGADO SEVERO AÇOITE
Na igreja, o primo não grita fraco.
Na igreja, expulsa os vendilhões
E ainda o primo quebra barraco?
PADRE PIAU
Que barulho é esse lá fora?
Logo daqui eu vou embora.
DELEGADO SEVERO AÇOITE
Nem pra ler há mais sossego.
Talvez, eu aconselhe seu ego.
PADRE PIAU
Não quero os seus conselhos
Nem de Antônio Conselheiro!
DELEGADO SEVERO AÇOITE
Em Conceição do Roçado, primo padre,
o povo é apressado e só anda correndo.
Na língua dos padres, irmão não é frade?
Somos todos irmãos, primo padre Piau.
PADRE PIAU
Essa conversa faz doer o dente.
Primo delegado Severo Açoite,
Você me pede pra ser paciente?
Era a situação derradeira. Como se fosse uma fase única. Nela, adentrou uma animada turba de brincantes.
DONA FARINHA
Quê! O padre ainda não está pronto?
Ich, padre Piau! Homi, o casamento
É nesse instante. Solta já esse jornal.
As bodas! Esse povo quer carnaval.
TODOS EM FESTA
Vamos às bodas, padre Piau. As bodas!
As bodas! Vamos às bodas, padre Piau.
SEU AFOBADIM
Essa turba grita e ri um bocadim.
Acalme esse povo, meu padrinho.
DONA FARINHA
Cale-se, ó Seu Afobadim.
Você, sendo pai da noiva,
Não devia causar motim.
SEU AFOBADIM
E tenha respeito pelo lugar, Dona Farinha.
Senhora é mãe do noivo. Isso não é rinha.
DONA FARINHA
Ó Seu Afobadim, e não me chame de Dona Farinha!
Não venha com pantim pra me deixar com farnizim.
SEU AFOBADIM
Dona Farinha, a senhora reuniu essa turma assim
Porque a senhora tava planejando talvez um butim.
TODOS EM FESTA
Vamos às bodas, padre Piau. As bodas!
As bodas! Vamos às bodas, padre Piau.
SEU AFOBADIM
Cale-se, turba mal-educada!
Isso não é hora de batucada.
DASTARRAFA
Pai, eu não quero casamento. Amigos! se vão.
Não pedi bodas. Pai, tudo isso tirou meu chão.
DOSANZÓI
Não faça isso ao meu coração aflito.
Dastarrafa, sem seu querer, eu grito.
TODOS EM FESTA
Vamos às bodas, padre Piau. As bodas!
As bodas! Vamos às bodas, padre Piau.
DASTARRAFA
Ó pai faça alguma coisa.
Por que você não ousa?
Me afaste desse suplício.
Não quero o tal mosquito.
DOSANZÓI
Dastarrafa, você fez minha mãe chorar.
E o que eu fiz ontem pra lhe acalentar?
DASTARRAFA
Dosanzói, eu não gosto de você.
E esse teatro é só pra turma ver?
DONA FARINHA
Reparem minha roupa encharcada desse choro;
Roupa cara dessas se foi todo o meu salário.
Delegado Severo Açoite, mude essa história.
É casamento sério com testemunhas e vigário.
Não paro de chorar e molhar minha memória.
DELEGADO SEVERO AÇOITE
Posso aconselhar vocês?
E esse livrão que carrego
Mostra o signo mês a mês.
DOSANZÓI
Vamos ficar nessa lenga-lenga até meia-noite.
E aconselhar o que, delegado Severo Açoite?
TODOS EM FESTA
Vamos às bodas, padre Piau. As bodas!
As bodas! Vamos às bodas, padre Piau.
PADRE PIAU
Vamos às bodas. Ok, pessoal!
Ocês digam a palavra mágica,
E, assim, conclui o padre Piau.
DOSANZÓI
Sim!
DASTARRAFA
Não!
PADRE PIAU
É sim ou não?
É não ou sim?
DONA FARINHA
Diga aquelas palavras, padre, em latim:
“Pacem! Absentia belli!” Elas são assim?
PADRE PIAU
Falar “Pacem! Absentia belli!”
Ou paz e ausência de guerra?
DONA FARINHA
Pra eles terem sorte no casamento
Numa casa, não de tábuas, palhas,
Mas uma casa sólida com cimento.
PADRE PIAU
Sorte em quê?
SEU AFOBADIM
“No casamento”, foi o que ela disse.
Meu padrinho padre, não permitisse...
DONA FARINHA
Isso era verdade, Seu Afobadim,
o que disse ao padre padrinho?
SEU AFOBADIM
Dona Farinha, se eu tivera mentindo,
Tomara que as minhas calças caiam. (Elas caem).
DONA FARINHA
Isso era mentira, Seu Afobadim,
o que disse ao padre padrinho?
DOSANZÓI
Ocês não ouvem o noivo?
DASTARRAFA
Ocês não ouvem a noiva?
SEU AFOBADIM
Ele é do exagero;
Ela é da fantasia.
Isso tudo é farsa.
Ó padre não faça.
Deixe ficar pra titia.
DASTARRAFA
Pra titia, não quero,
Meu pai Afobadim.
Isso eu não espero.
PADRE PIAU
Ó Dastarrafa e Dosanzói,
Vocês aceitam as bodas.
Vamos à festa todos nós?
DOSANZÓI
Nosso querer é verdadeiro?
Me abrace forte, Dastarrafa.
Pois nem tudo é por dinheiro.
TODOS EM FESTA
E, assim, as bodas foram realizadas, padre Piau.
Vamos à festa, à dança. Cada um pegue seu par.
Se dormiu, Cleobulina não sabia dizer se era só um cochilo. Como chegou ali, não compreendeu. Viu ter sido sonho ao tocar os pés, quentes e descalços, no chão frio.
A vida talvez fosse isso, disse dentro do bocejo longo e gemido. Os braços espreguiçam-se. A boca seca.Ela, seminua, levantou-se e foi em direção ao pote. Alegre, não triste.
Ainda tinha todos os dentes; logo não os teria; eles começaram a cair de trás até à frente. As maçãs do rosto faziam justiça à beleza; elas não tardariam a perder o viço. A rigidez dos músculos fiéis ao corpo; mais um dia e menos um dia, ela seria substituída por uma pele enrugada sobre a carne flácida sem brilho.
Estibungou a mão pesada. Blum! ouviu, outra vez, a voz dos brincantes que estivam com ela enquanto dormia, cochilava ou sonhou acordada talvez.
Sepultou os cansados pés no calçado de couro,viu, pelo sol na janela, que estava atrasada.Correu à labuta diária,e foi carregar pedra na cabeça morro acima. Tombava, tropeçava...
Caia, não caia. Mesmo que aconteça o que acontece, e opesoa faça cairmorro abaixo. Ela juntava o destino com as mãos, outra vez, outra vez e outra vez, levava-o à cabeça, ganhava caminho, venciaos olhos de outroserrote em Maceió.

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