O QUARTO DE DONA AURORA GUARDAVA UM AROMA DE QUINTAL

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

A mulher-raposa vaga nos sertões. Recolhe ossos à sua caverna! disse a lavadeira Cleobulina ao filho de D. Aurora.
É verdade? ele interessou-se.
É verdade! disse e o levou ao colo. Os rituais pagãos do canto da mulher-raposa dão vida aos desencarnados. E carece só dum piscar de olhos, assim ó! demonstrou. E logo os desencarnados se tornam feras novamente.
É verdade mesmo? insistiu; encolheu-se naqueles braços fortes e quentes de Cleobulina.
Sim, meu anjo! retribuiu-lhe o afeto com beijos. Fogem os desencarnados, os desencarnados fogem. É no mato onde a água, um simples pingo d'água, faz da fera uma mulher novamente.
Aproximava-se o Carnaval. No Farol, na casa azul de esquina com janelas amarelas mora D. Aurora. Neta de um decadente dono de engenho.
As noites lesmam naquela casa azul de janelas amarelas. O quarto de D. Aurora entupido de livros. 
Ficou lendo Edgar Allan Poe até o fim da madrugada. E ao levantar-se viu a porta morta, viu pela fechadura torta: estirada estava a morte.
Cadê a multidão de gritos, gritos expelidos das gargalhadas que faziam tremer o mundo inteiro? disse D. Aurora.
A lavadeira Cleobulina havia deixado a vida na Rua da Lama. A dona de casa, D. Aurora, simpatizou-se com ela ao conhecê-la na Igreja Nossa Senhora do Livramento.
Cleobulina saiu da Rua da Lama com severas marcas e árduo custo. Ela lavou, engomou e passou em diferentes residências antes de se tornar feirante na Feira do Passarinho.
A cidade de Maceió conhece a Rua da Lama. Está ancorada no centro da capital, rua que se dividia antigamente por trilhos paralelos de ferro pelos quais passavam os bondes de tração animal.
Falava-se em rua da lama cada vez que se referia ao Beco da Lama onde Cleobulina foi acolhida. Único teto encontrado depois que deixou Santana.
O preço da carne era o menor no mercado. A bebedeira e os cigarros que fumegavam nas portas de madeira invadiam a rua pontilhada de poças da última chuva e cheias de fétida lama e imundícies.
Os marinheiros com as suas línguas ébrias de cachaça. Quem entendia a língua que eles falavam? Aquele zunzunzum de línguas começou na Rua Boa Vista. Inglês? Francês? Alemão? Espanhol? Quem sabia! As vozes chegavam da Rua do Livramento e tomavam de assalto a Rua da Lama.
Os jornais sabiam que a data da Lei do Ventre Livre mudou o nome da rua. Isto não importava se a Rua da Lama estivesse registrada nos documentos oficiais como Rua 28 de Setembro. O que importava era a voz do povo. Este continuaria a reconhecê-la como Rua da Lama.
Cleobulina passava todos os dias, quando ia lavar, engomar e passar, na frente do Hotel Central. A mulher de véu prata entrava na Igreja do Livramento. O homem gordo abria as portas do Cartório.
Passava diante do hotel e lhe acompanhava a ideia de um dia a coragem ajudá-la a perguntar se tinha roupa suja que ela pudesse acaso lavar, engomar e passar. Passava, e outro dia o sonho a fazia olhar os degraus do Hotel Central.
Na primeira casa na qual Cleobulina trabalhou:
Havia diversas maneiras de dominar! disse o homem de bigode e facão. Quer vir morar comigo, Cleobulina? propôs o primeiro patrão a quem Cleobulina lavava, engomava e passava.
Quero não senhor, senhor!
Não quer sair da Rua da Lama?
Quero sim senhor, senhor.
Cleobulina, com roupas de doação, cabisbaixa e sem palavras, o senhor, forte, alto e narigudo, de bigode e facão, conversavam na frente de uma mansão próxima à Igreja do Livramento. Ele gesticulava com as mãos, ela com as mãos presas atrás das costas.
Venha morar comigo, Cleobulina! insistiu. Dou-lhe banho, dou-lhe roupa, dou-lhe teto, dou-lhe mesa, dou-lhe cama... Como eu estava a dizer-lhe. Dominar é como coçar. Primeiro, associam-se a deuses; segundo, se diz ser o semideus; e, por fim, exige ser adorado por quem se encontra sob a sua teia. Sabia?
Sabia não senhor, senhor.
Venha morar comigo, Cleobulina!
Quero não senhor, senhor.
Seguiu Cleobulina a vida naquela cidade que teve origem no alagadiço. E o homem sério de bigode e facão viu a sertaneja tomar a rua em direção ao mar.
O quarto de Dona Aurora guardava um aroma de quintal. O jardim amplo refúgio de lembranças e pássaros.
Debaixo dos caquizeiros, os beijas visitavam o seu orquidário. 
Gregor Samsa, na cama de D. Aurora, metamorfoseado em inseto, vinha circundar as orquídeas de D. Aurora. Os pardais no quintal se alimentavam de metamorfoses.
O tempo, de tanto correr, se cansou! disse D. Aurora à Cleobulina.
A enorme casa de D. Aurora começa numa rua e termina na outra. A casa de esquina fica cara a cara com a praça onde a Xepa, que chega do sertão, faz a sua primeira parada. 
A chuva parou? disse. Ah, que saudades do vovô!
Cleobulina ficou perdida. Não respondeu à questão sobre o tempo e as saudades evocados por D. Aurora. Cleobulina olhava a Xepa e se lembrava de Santana.
Um saudosista morreu empinando pipa! disse D. Aurora. E o pai nunca enricou, e não enriqueceu na vida porque não foi batizado Agripa.
Cleobulina perdida nas lembranças de sua terra maternal. Corria em seus olhos o tempo vivido na Rua da Lama. 
Morre o dia nas sombras. E quem irá ao enterro? não parava de falar D. Aurora com Cleobulina perdida com o olhar na rua. A noite que vem. O dia que vem. Vem a semana. Outra semana se vai. Volta outra semana, outro mês, outro ano, outra década. Não é mesmo, Cleobulina?
Correu entre os espaços vazios na casa de D. Aurora o grito familiar:
Mãinha!
Diga.
Mã!
Que foi?
Mãe!
Quê!
Mamãe!
D. Aurora falava com Cleobulina a respeito de mãe e filha, suas vizinhas, que, antes de socorrerem o filho, socorreram o pai. A mãe tinha medo de fazer o que sabia fazer, e a filha imitava a mãe pois também tinha medo de fazer o que sabia.
Por que fazem isto comigo? perguntou o pai de D. Aurora numa cadeira de roda que roía o piso com estranho ruído. Eu ouvi rir de mim!
Ninguém riu, papai! disse D. Aurora.
O que eu ouvi? zangou-se. Riu.
O barulho que escuta é o barulho do mar, papai.
Por menos do que isso, filha, um país declara guerra a outro país!
Ele passa e conversa com o espelho! comentou D. Aurora com a lavadeira Cleobulina, que trabalhava a domicílio.
Bons-dias! disse Cleobulina. Como vai o senhor?
Ele agora fala com o espelho! disse D. Aurora. Papai considera aquela imagem outro cavalheiro.
É, D. Aurora?
Conversa como se fosse outra pessoa. Ele quer fugir de casa. Reclama de fome. Ele agora reaprendeu a chorar.
Vi!
Quando tem sono, ele abre a boca e choraminga.
Eu quero abrir a boca e dizer que o dia foi de mormaço! reclamou o pai de D. Aurora.
Essa noite vai chover! disse D. Aurora.
Alguém tem um cordão? perguntou o pai de D. Aurora. Se todos estão de acordo é hora do acórdão.
Ele era um juiz de fora! disse D. Aurora à lavadeira Cleobulina. E não se surpreendesse, pois, se ouvisse papai fala brocardos em latim pelos corredores da casa. Quem não conhece essa mania do papai, Cleobulina, imagina coisas, acha que papai falar em línguas, recebe entes doutro mundo.
Outra noite, D. Aurora leu Poe até o fim da madrugada. Quando, de súbito, passos, passos lentos. A morte jazia morta.
Ali! disse D. Aurora. Estirada encontra-se a morte. É a morte?
Mais tarde:
É a morte quem chegou? disse com Edgar Allan Poe nas mãos.
A passos lentos, sem cochichos, sem lamentos, sem soluços embargados em choro espremido, estressado, revoltado, lúbrico e só.
Pouco antes de amanhecer:
Marcaram um encontro atrasado no velho cemitério abandonado! disse D. Aurora ainda na cama, ainda sob o mosquiteiro. 
Mas não se abandonam cemitérios. Abandonam-se livros e corpos nos cemitérios esquecidos e velhos! disse D. Aurora como se adormecesse sem ver as primeiras briluzes surgidas no sol de ouro de Maceió e trazidas pelo canto de sabiá-laranjeira.
Nas quintas-feiras, Cleobulina trabalhava na casa de outra família. Havia regra espartana naquela família que obrigava os filhos a não largarem os livros. O velho chefe de família era o primeiro a levantar-se; atravessava a quinta-feira com estas palavras que Cleobulina as sabia de cor:
O pai de todas as coisas ainda é o Substantivo. Dele, como se sabe, tudo é gerado. O tempo, que é o infinito, é fatiado e nominado pelas substâncias que mantêm a vida.
Depois de um tempo em Maceió, Cleobulina tropeçou na sorte. Deixou a Rua da Lama, começou outra vida, experimentou outra substância que Santana não lhe havia proporcionado.
Aos sábados e domingos, Cleobulina estava em outra casa onde lavava a roupa suja, a secava sob o sol de ouro de Maceió, a engomava e passava. Ela chegava à casa dos Proust, em Jaraguá, antes de anoitecer a sexta-feira.
Rimbaud, que vive mundo afora, veio passar uns dias em nossa casa. Foi quem mais nos deu trabalho, comentou o pai ao acender o cigarro. Rimbaud saiu tão diferente dos irmãos. Mas todos apanharam, insistiu a mãe, e Rimbaud não fugiu à regra. Ele não tinha que levar boas pancadas de vez em quando? Se não fosse assim, ele não virava gente.
Cleobulina trabalhava na cozinha nos fundos da casa. O casal não parava de conversar:
Chegou à hora de dormir, Rimbaud não chegava. Daquela vez do tobogã, Rimbaud não tinha mais do que 12 anos. Não, mãe, não tinha. Tinha? Não, não. Não tinha. Ele chegou aqui com aquele bigodinho ridículo, disse o pai. Ele quem? a mãe quis saber. Ora quem! o pai explodira. Quem poderia? O teu Rimbaud. Vi, a mãe respondeu ao pai, e não gostei do que vi. O que aquele Rimbaud pensava, que a vida era festa ou que a vida era poesia?
O cãochorro do casal, que não largava o pé de Cleobulina, procurou outro saco de pulgas onde se enfiou.
Rimbaud achava-se homem só por causa daquelas penugens. O dia em que papai viu nascer cabelo em minha cara mandou rapar; ou rapava ou saía da casa dele. Papai não tolerava outro homem no mesmo espaço dele.
O cãochorro gemia e grunhia. O pai chutou o cãochorro, a mãe protestou sem êxito.
Andiamo avanti, per favore, figlio mio! disse o pai e o cãochorro levantou-se e foi aninhar-se no quintal sob uma jaqueira coberta de flores.
O que de fato e de direito precisava entender era a natureza ontológica de seu ato! disse a mãe em protesto à atitude reprovável do pai.
Antes que me esquecesse, disse o pai à mãe ao levantar-se do sofá, não se esquecesse em revelar também a epistemologia do significado.
Cleobulina, eu perdia o sono com Rimbaud! disse a mãe. Ficava enredada nas ontologias parmedinianas do ser e heraclitianas do devir.
Todas as segundas-feiras Cleobulina lavava, engomava, passava na casa paroquial. Contratada pelas Filhas de Maria Auxiliadora.
O senhor, que era padre, perguntou Cleobulina, o pecado que ameaçava com o inferno, também lhe fazia medo?
Resmungava o padre um trecho em latim.
Não acreditava que o senhor padre nunca teve medo do inferno. Ouvi falar que o padre bebia todo o estoque de vinho do mês numa sentada. Mas não levei isso em conta.
Outra passagem selecionada em latim. Cada verdade não era descoberta, Cleobulina, mas construída.
Após horas de silêncio:
O que o senhor padre está lendo, aí, senhor padre?
Le Bâteau Ivre! disse.
Falasse sobre essa leitura, senhor padre, e assim, quem sabe, senhor, eu pudesse aprender sobre um assunto tão sério.
Cleobulina, Cleobulina, Cleobulina, disse o padre enquanto se balançava no ranger da rede e recebia a brisa que soprava do mar, entre as mãos Le Bâteau Ivre aberto ao meio. Eu preferia, Cleobulina, falar sobre o fim do mundo, energia quântica, partículas subatômicas, vidas paralelas, vida fora do sistema solar.
Cruz credo!
Evitasse ser anatemizada, mia cara figlia!
O senhor padre fala cada coisa, senhor padre.
Mia cara figlia, não fosse mais um anátema.
Não, não, senhor padre, não, não, não...! disse mesmo sem entendê-lo.
Às terças-feiras, Cleobulina trabalhava num ancionato. Imperava silêncio em todos os cômodos.
Soturnos corredores. Janelas fechadas. Pouca luz. Nos fundos, as sobras das árvores formavam nas paredes túmulos de um velho cemitério particular.
Cleobulina, que ficava tempo a fio dedicada às roupas amassadas e ao calor do ferro à brasa, erguia a cabeça e via coisas. Não ouvia nada. Uma jovem nua. Uma capela. Morcegos.
À noite, ao sair do trabalho, batia onde pudesse e, aliviada, descobria que ainda escutava. Era o alívio que Cleobulina queria ouvir, sentir o cheiro do alívio, ver a cor da tranquilidade nas ruas escuras de Maceió, ouvir o ruído das águas.
Toda a mudez na casa de repouso de grã-finos lhe dizia ter ficado surda. Cleobulina odiava as terças-feiras.
Uma tarde, na cozinha de D. Aurora, Cleobulina engomava e passava com o ferro de passar à brasa.
Tem uma formiga ali! explodiu D. Aurora.
Onde, D. Aurora? assustou-se Cleobulina.
Ali! exasperada. É cega?
Não! assustada, Cleobulina interrompera o trabalho. Não, não senhora.
Tem uma formiga aqui.
Onde?
Aqui em meu braço!
Não tem.
Tem!
Uma mosca!
Uma mosca ou uma formiga, D. Aurora?
Um mosquito que aparece e desaparece em meu rosto.
Não há nada em seu rosto, D. Aurora.
Outra formiga aqui, outra ali, uma acolá, lá tem formiga. Não tem?
Não senhora, D. Aurora.
Meu Deus! pulou. São formigas. Uma mosca, duas... Não, não! São três. Não. Mais. E mosquitos também. E moscas. Tire essas coisas nojentas daqui ó Cleobulina!
Na semana seguinte:
Não me lembro! reclamou. Não consigo me lembrar. Por mais que eu tente lembrar-me, não me lembro.
Não se lembra de que, D. Aurora? disse Cleobulina.
Não consigo.
Não consegue?
Não, não consigo. Por mais que tente, e olhe que eu tento, eu não consigo me lembrar. É como se uma porta se fechasse em mim.
Não consegue lembrar-se de quem, D. Aurora?
Não consigo lembrar-me da fisionomia da mamãe.
Não é essa senhora no retrato na parede ao lado do pai da senhora?
Não tenho certeza. Talvez, Cleobulina, essa seja uma tia moça, a irmã de papai. Foi papai quem, num acidente de automóvel, matou o meu marido. Papai ficou sem o movimento das pernas, foi isto?
Após breve silêncio:
Foi o Vargas o responsável pelo acidente de automóvel. Quem deveria ter ido àquela vez à fazenda era eu. O Vargas teria me matado.
No final daquela tarde, D. Aurora falou de maneira acelerada:
Olha, Cleobulina, esse mundo irá mudar. Acredita? Pois acredite! disse D. Aurora. Cleobulina prestava-lhe atenção com exagerado respeito. O mundo irá mudar, sim. Irá mudar de maneira radical, Cleobulina. Ninguém espera por isso. Não é verdade? Aliás, até mesmo a sacrossanta verdade, Cleobulina, irá perder terreno. Assim como aconteceu aos antigos impérios, a verdade perderá a sua força. Roma perdeu, a Pérsia de Xerxes resumiu-se a um capítulo nos livros de História. O mundo será muito diferente deste mundo que se conhece hoje. Olha, isso não irá demorar. Nos próximos anos, acredite. Aliás, o sertão não sabe o que acontece no litoral e vice-versa. Isso é só uma pequena ilustração. Olha, eu prefiro não estar aqui quando as mudanças começarem. Prefiro. Cleobulina, os lugares ficarão diferentes; olha, eles ficarão irreconhecíveis. Eu não ouvi isso da boca de profeta nenhum ou santo. Eu vi. Olha, Cleobulina... Sim, senhora, sim! disse Cleobulina. Olha, será diferente do que estamos acostumadas a comer, a vestir, a dormir, a acordar, a sair, a comunicar-se, a viajar, a gostar, a escolher, a viver.
Cleobulina tentou acalmá-la em vão.
Não, não quero estar aqui.
Que houve, D. Aurora?
Nasci na França, Cleobulina, tu nasceste em Santana. Nasci em Paris, e tu na Rua da Cadeia. Eu queria ter uns olhos assim iguais aos teus. Tu queres trocar os teus pelos meus? Como alguém que nasceu no sertão poderia ter olhos assim, meu Deus! Não aceitava nisso. Na idade em que me acho em Maceió, não acreditava nisso. Eu falava francês, Cleobulina. Sabia? Francês. Sabia o que era falar na língua francesa? Todos esses livros espalhados em minha casa eram escritos em francês. E neles se encontravam poetas, ensaístas, filósofos, romancistas, contistas, arquitetos, engenheiros, gente de teatro, biografias de pintores, de políticos, escultores, dramaturgos... Era tudo, tudo, tudo em francês, Cleobulina. Francês! Não gastava os olhos em outra língua. Já teve utopias, Cleobulina? Não. Sabe o que é? E a igualdade provavelmente não a conhece também. Tenho certeza. Conhece o que é utopia?

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