NO BEIJO ESTAVA O SILÊNCIO LOQUAZ

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

O cangaceiro Abô acaba de ser preso! correu a notícia na cidade sertaneja. O Liberdade de Expressão fez um número extra. O cego, que cantava na feira, no sábado, parou de cantar; depois refletiu, enamorou-se da poesia de seus versos, arrastou o pandeiro e meteu-lhe a mão com gosto; foi versar sobre a sua época de poeta no cangaço; percebeu, pelo alvoroço no povo, que o assunto era rentável e o assegurava o almoço, talvez o jantar. O padre Velho passou pelo cego e deixou cair um óbolo em sua bacia; a moeda tilinta. O dono de farmácia Polissíndeto, que acompanhava o padre, fez esta glosa: Tilintar moedas em ouvidos avarentos, corrói firmamento. Era o mote que o poeta esperava; e começou:
XX – Comi, bebi, e quase me matei, tocava e cantava o cego na feira de sábado, e fiz um mergulho dentro do prato. E no beijo encontrava-se tanto silêncio loquaz. Era a violência transnacional dos cangaceiros, que em cada geografia recebeu os nomes mais diversos, que atravessaram colinas, morros, serras, rios estreitos e largos. Cantava o cego Ómiros na feira os versos, neste faz de conta de suas contas, ele as pegava e pagava a repetição dele – com sutis mudanças – através das eternidades. Enquanto guerreava, atirou de parabélum, que já foi Parabellum, a cangaceira Cantilena, no Bando de Conveniência, vulgo, nas vogais dos aliterantes jornais, de O Valente Cangaceiro do Rei, o primeiro sem segundo, o que foi sem ter partido, o inventado e o inventor em um só sangue, o sortido por cartucheiras de balas cruzadas ao peito seco e forrado de pedras brilhantes, ouro, prata, e o escambau. Pipocou o mundo pipoqueira com tiros de tudo o que foi arma inventada. Seguiu a cangaceira o canto que cantava, o canto sobre as pedras semeadas na serra como grãos de feijão, na Serra Desvanecer, eram miúdas as pedras, eram miúdos os grãos, sortidas as pedras, grandes pedras e bem fornidas, as pedras soltas e mal dormidas, pedras-mãe de todas as pedras, lajes, lajeados, blocos, cavernas, grutas, lajedos, pedregulhos que quebravam ossos, que escondiam mocós, preás, cobras jararacas, jiboias, pinturas, cascavéis. Dos escondidos, correram ratos, ratazanas, tatus, taturanas. O dedo coçava no gatilho da espingarda, e se ouvia o pipoco do mosquetão, e o ferrolho do rifle desaferrolhava-se depressa e zunia o projétil. Avoa zangada a balinha ligeira, buf! e quebrava canela, buf! rádio, costela, derrubava o adversário baq! Cuidado com a moça! alertou Zétungue. Um foi atingido, foi? Foi. E três fora de combate. Que alumiação sagaz faz o fogo da reiúna. Não era guerra, não era nada, era Cronos que devorava os filhos da cangaceira Reia. Era o jogo de cores, a arte da alfaiataria em peças de curtumes, de curtidas peças em macios couros. O coice da arma, a cabeça-de-frade, a panela de feijão, a panela de carne. Os povos de flecha, de arco, a pena, o penacho. Os tipos brasileiros no sertão, a origem doutro, a origem dum novo povo, a astúcia e a afobação, o enfrentamento e a devastação, a resistência e a marcha, marcha lenta, sertão. A seca, a sede, a desidratação, a secura, a língua, o suor, a tontura, a fraqueza, a légua. Na sede não havia rédeas, não havia estribos, não havia focinheira, não havia sela, não havia arreios, não havia relho, não havia parada. A sede, a seca, a sede da gastura. O cangaceiro Zétungue foi quem arranjou amigação com Cantilena. Ela era só uma mocinha. Zétungue fumava Havana com o cangaceiro Conveniência; ambos bebiam cachaça dos alambiques europeus. Nunca mais apeou do cavalo o Cangaceiro do Rei. Os recursos acabaram, os recursos nunca se acabaram. O Cangaceiro do Rei rasgou as cortinas do inferno, atravessou veredas, tomou rumo ignorado nas façanhas desconhecidas. O destino era traiçoeiro quanto à sombra do inimigo. Os caroços de feijão, quando se encontravam na boca, misturavam-se à farinha, mexia a língua, engatou a arma da fome, trituravam os dentes depressa, descia o bolo à briga, na luta com o sol dado sobre o costado da terra seca, pedras, espinhos-de-roseta. O cangaceiro alojava-se e nunca se aquartelou. E se ouvisse um quéquehá se sabia, pela ponta vermelha do chapelão de couro, logo chegava à descarga, e caía um, e caíam dois, e caíam três na luta feroz do fogo-fátuo que derrubava o homem guerreiro, e primeiro lhe rasgavam os fatos. Era o mundo do Cangaceiro do Rei que se ligava ao Morse, conhecia os obséquios e as presepadas. Morse à vontade no código das comunicações dos telegrafistas. Nunca fui perverso, disse o Cangaceiro do Rei, mas comigo o que era o certo era o certo, e não pisassem em meus calos. Aonde ia o Cangaceiro do Rei apoderava-se de tudo o que os olhos alcançassem. No desertão do sertão, mãepai dos sertões, os telegrafistas conheciam os truques e o trote do Cangaceiro do Rei, a sua voz gravada, o seu procedimento. Foi cuspido do ventre em noite sem lua numa cama de vara, valei-me Cangaceiro do Rei! batia no couro do pandeiro o cego na feira de sábado, e a mão fazia os versos tremularem as pratinelas. Na trempe, as panelas-carvão. Ficava bem alojado o Cangaceiro do Rei, comia bem, bem bebia antes de São Jorge levar a sua Maria. Não havia cangaceiro sem bofes, onde todos as iras alimentavam-se. Ao delator, à delatora o sono não lhe negava o descanso breve e eterno. Na caatinga, homem nenhum entregava homem algum; quando a força estragava um homem, estragava a família, a vingança de honra lhe era concedida. Tudo começava por uma questão, uma cerca, uma rês, uma roça, uma água, um beijo onde repousasse o silêncio loquaz, tudo começava e não terminava mais. Batiam rápidos, batiam os dedos breves e eletrificados no couro do pandeiro. E caso a vingança derrubasse o agressor, caía a vingança, a morte não era do homem, a morte era permissão divina; só caía uma folha se o vento derrubasse, se o galho a expulsasse do paraíso na árvore. Quem autorizava o homem à morte, cantou o cego na feira, eram as forças no céu, não as forças daqui. Na lei da corja, lado a lado o cangaceiro Impunidade e o Cangaceiro do Rei, que matava por golpe de vista. Impunidade era o mais afoito; unia-se à afoiteza do cangaceiro Arquetípico e da cangaceira Arquétipa, que vivia grudada nunsenuoutros. Por esta longa época, o cangaceiro Arquetípico não largava o grude, apanhava sem largar o cocho, ela o surrava por gosto. Era a juventude vocacionada ao cangaço. Chegou ao bando o cangaceiro Élan, irmão dos cangaceiros Entusiasmo e Arroubos; época em que o Bando do Cangaceiro do Rei contava com 800 fora-da-lei. Sem parar aumentava o número de celerados. Élan tomava parte no subgrupo de Outrora, amigado com as primas cangaceiras Embora, Boa Hora e Aglutinação. Pitoresco, outro cangaceiro, era pai de Aglutinação, Embora e Boa Hora, irmãs de Fidalgo e Pernalta, que se mudaram e viviam no DF, Rio. Mórbido era o cangaceiro candidato à beatificação; vivia envolto em preces e rosários, patuás e simpatias. O sertão vivia sob a sombra dos cangaceiros. Antes de matar, o Cangaceiro do Rei rezava, e rezava depois de ter consumado; quem conhecia o seu apego à reza dizia que ele saía com orações no rosário sob a camisa, passava dias entregue às rezas após os seus crimes. Agora deu vontade de rezar! ele dizia; isto era sinal, véspera de seus ilícitos penais. Na perseguição à Lua, a fim de recuperar Maria levada no cavalo branco por São Jorge ao vê-la na feroz disputa à peixeira entre Conveniência pai e Conveniência, filho numa briga de camisas amarradas. Na bellum, o mundo soube, sobreviveu só Conveniência, o filho, o pai Conveniência morreu. Na colher de tempero no tempo, o cangaceiro Conveniência fez visita ao município de Recordação, último lugar de nome Memória; lá, o prefeito e o juiz de fora eram aparentados, na divisa entre Sergipe e Bahia. Em Recordação, o cangaceiro quis se encontrar com Mnemosine, a filha do finado Asclépio, um verdadeiro deus na cura das doenças, que transmitiu à filha a capacidade rara em curar a dor de corno. O Cangaceiro do Rei buscava cicatrizar a ausência de Maria levada a morar na Lua, cicatrizar o beijo no silêncio loquaz.
XXI – A curandeira Mnemosine vivia na casa de Escatológica, que conhecia sobre o fim. Com folhas verdes, ensinava Escatológica a Mnemosine como jejuar e livrar-se de Lete, filha de Eris, que não sabia fazer outra coisa no sertão senão arar terra seca, pedras, espinhos-de-roseta e semear discórdia. A caminho de Recordação, o Cangaceiro do Rei topou-se com as forças do Sarg. Escaramuça, que fez cerco ao Bando de Conveniência em Pedra Bonita de Ôidágua, município no agreste de Pernambuco; findou-se o conflito em Arame Farpados, Bahia, divisa com Espinhos-de-Roseta. No relatório do Sarg. Escaramuça às autoridades, poderia ser lido até o presente tempo, que o Cangaceiro do Rei era um criador de dificuldades que vendia facilidades. Este tal Cangaceiro do Rei, festejado em rádio e jornal, não encontrava canto no cento feito cinto num conto desde o cunto. In illo tempore, encontrava-se ipsis litteris, naquele combate de importância no relatório do Sarg. Escaramuça as ações. O Sarg. Escaramuça perseguia o cangaceiro Paradigmático, chefe de bando, rival do Cangaceiro do Rei; in illo tempore, o dito Paradigmático tornou-se parceiro do Cangaceiro do Rei.
XXII – Na boca da lânguida morena adormeceu o beijo em silêncio loquaz. Ouviu-se o tropel aproximar-se sob os cascos dos animais. Exasperado era o Cangaceiro do Rei. Amoral. A empalar inimigos. O Cangaceiro do Rei era um feitor de mártires. Destruía os desafetos com um pulo sagaz. O cão na arma sequer faiscava; ia aos quintos sem isca, de lá arrastava Luissifede, o opulento Cel. Dr. Vil; logo trazia-o dos abissais nosinfas. As mulheres no cangaço desconheciam o medo, derramavam o chá das cinco se acaso ouviam falar no Cangaceiro do Rei. Um deveras desordeiro fátuo-fogo. Bebeu na bodega de Mané Cachimbo; ludibriou o jagunço do coronel, o estafeta com quem tinha apalavrado a palavra sem papel. O meu avô, disse o Cangaceiro do Rei, levado nu ao pelourinho na Rua do Basculho, onde o avô do Cel. Dr. Vil contratava chicote e chibata. Em tropel avassalador, o Cangaceiro do Rei. Em trote e de trote ouvia-se o Cangaceiro do Rei sisudo, olhos grudados em giro da Lua, em giro de São Jorge, em giro da vingança contra o santo, contra o dragão; acabrunhado por tirar-lhe de roubo a jovem lânguida morena na boca em que lhe foi depositado o silêncio do beijo loquaz. Jurava o Cangaceiro do Rei vingança. Era o seu mote. Sem esquecer por nenhum instante a lânguida morena da Terra levada por São Jorge a cavalo; levada ao distante a primeira e única mulher do Cangaceiro do Rei. Levada num zás pelo santo guerreiro, levada sem rugido do dragão que o cangaceiro prometia matar primeiro de único golpe, e recuperar a mulher que São Jorge veio sem peleja roubá-la. O Cangaceiro do Rei respirava pelo ódio, queria o amor da mulher que não vivia mais na Terra. Planejava saltar por cima da ligeireza, alcançá-la na Lua aonde ia. Luta constante. Bastava viver nas matas do Norte, sob o mando e a vontade do coronelato. Lânguida morena filha do coronelato foi parida dalguma flor de cacto, herança da mucama no afã da natureza. Ele gostava dela, e por ela chovia e ventava. Ele jurava mudar a sina. Corria. Galopava um raio preso à crina de seu animal Afã. Ruído de ciúmes no lombo suado de Afã. Por vezes, pela lonjura jurada entre o Cangaceiro do Rei e a lânguida morena de braços longos e pernas compridas, ele tentou arrancar primeiro os próprios olhos por se recusar a enxergar a Lua gorda, faceira. O Cangaceiro do Rei recusou-se ao risível da noite. E cada noite a Lua inatingível. Com punhal afiado na pedra de amolar, o Cangaceiro do Rei tentava alcançar a Lua. O peito quis esfolar o Cangaceiro do Rei, dele trazer o próprio coração feito romântico retardatário, jogá-lo ao alto e o ver cair na Lua; o cangaceiro romântico, ultrarromântico o Cangaceiro do Rei. O amor quis afogá-lo na lama das veredas, nas pedras das quebradas, na secura dos desertões.
XXIII – Era um legado aquela lânguida morena de fogo, tirada de casa, arrancada do controle paterno, sob a cama escondida. Roubada da família, sequestrada sob as ameaças de morte, de tortura, de sangue. A vítima confusa, a sina desorientada. A lânguida morena de sorriso branco da cor das flores do mandacaru, sem saber se era; disputada diante de fedidos chapelões, facões, punhais, espadas delgadas de cabo de prata decorado com anéis de ouro. E assim foi levada a menina levada, que era herança de alguma mucama bela, divina. Ai, quem duvidasse das juras do Cangaceiro do Rei! Ele, montado em Afã, queria alcançar a sua lânguida morena na Lua, queria alcançar a sua lânguida morena. Má sorte trazia o desmoralizado Cangaceiro do Rei por São Jorge, que cavalgava da Lua à Terra, de lança em punho, sobre o seu cavalo branco. São Jorge, que cavalgava na Lua, São Jorge que arrancou Maria das garras do Cangaceiro do Rei. Amuado não queria ficar mais o Cangaceiro do Rei. O comprovante de renda do cangaceiro era a morte, a vida por ele roubada num zás. Jamais descia de Afã o Cangaceiro do Rei protoquipóqui! póquiprotoqui! Praticou atroz parricídio na disputa ao decidir quem ficava com a lânguida morena de sorriso de flores de mandacaru. O matricida ao nascer ansioso era tudo menos medroso.
XXIV – Era a índole do Cangaceiro do Rei: vidas tiradas aos poucos, unha por unha até à orla do pescoço. Padeciam inocente e pecador ao ouvirem o tropel de Afã. E eh, e eh, saíssem todos de perto! ameaçavam os cascos de Afã. Sequer a terra era poupada por bandos de cangaceiros, que sumiram um período e ameaçavam voltar. Os subgrupos de bandoleiros na caatinga a cavalo ou a pé, que se multiplicaram em progressão geométrica, atraíam mais e mais facínoras.  A sombra do medo em cada gemido da noite, em cada pio do dia montado nas atrocidades de Afã. Ele comandava bandos armados de falácias, de atrevidos, de sofismas, e isto era típico do Cangaceiro do Rei, que era trazido por rapadura batida e as pás de moinho que transformavam em pó casas, taperas. Desde as antigas eras, bandos de cangaceiros invadem o Brasil a balaço, liderados por Xi Bio. Nunca ouviu falar? Lesse sobre o homo scelerum criado pelo Cangaceiro do Rei. Eram apenas os cíclicos históricos ficcionais das ilíadas que cercavam o homo scelerum na índole do Cangaceiro do Rei.
XXV – Acocorados, um subgrupo de cangaceiros sob as folhas de umbuzeiro. O Cangaceiro do Rei tomava rapé, outros picavam fumo; havia quem molhasse a goela com caroços de cana. Beuzuinha tinha cartucheiras de cima a baixo; Bilunga, o pai, diacho, fugia das garras com as forças, deixou tombados cinco macacos. Bilunga dera tiros de clavinotes e furos de punhais, sangrara quem, deitado na terra seca, dura e quente, agonizava sobre as pedras, os xiquexiques, dera-lhe três talhos na cara e um no pé. Outro cangaceiro novo no Bando do Cangaceiro do Rei era o azougado Fu Lerage, com alpargatas às avessas, que inspirou as estratégias de guerrilhas no cangaço. Depressa, o diabo atirou a esmo. Puf! puf! puf! todos os dias eram dias de ira ao Cangaceiro do Rei. Puf! puf! puf! recarregava a arma o Cangaceiro do Rei. A cada mês aumentava a roubalheira. Puf! puf! puf! cavalgava o Cangaceiro do Rei. Afã vencia as distâncias. A cada semana, a cada dia, puf! puf! puf! o Cangaceiro do Rei em busca de sua Maria. Descia dos montes de pedras, dos morros de xiquexiques, e passava em meio a volante, que se jogava ao chão de pedras, terra seca, espinhos-de-roseta ao ouvir o pipocar dos parabéluns. Com licença, cangaceiros, cangaceiros, com licença. Ouvia-se o ribombar: paf! pef! pif! pof! puf!  Fu Lerage às avessas fazia bazófia. Atacavam famílias os cangaceiros do Rei. À frente ia Afã, que levava o Cangaceiro do Rei, que chutava a pachorra sem tendência à calma, à paciência. O Cangaceiro do Rei assolava no lombo suado de Afã. Reuniões nas fazendas promoviam o avesso, cantava o povo, lia o povo na poesia do poeta Cor Del Delgado. O Cangaceiro do Rei abriu a porta da servidão, das conversas nos cercados, na roça de frutas numa chuva de cajus, mangas, jacas, pinhas, bananas, laranjas. Afã afoitou o bando atroz do Cangaceiro do Rei. A história foi privativa do Cangaceiro do Rei. Dum pinote, não ficava aceiro, cerca ou coivara, labirinto ou avelós no aveloz azougado, que se entranha. Morada de coruja. Era um maranhão de emaranhados em talos verdes e lisos. Afã passava por baixo, por cima Afã pulava na tulha com o Cangaceiro do Rei. O tropel da corja do Cangaceiro do Rei sobre as pedras, terra seca, espinhos-de-roseta. Vazou no vaso do mundo Afã indo ao oco. Pelecotéco! petéco! peteleco! pelecotéco! peteco! sobre a cama de pedra Afã ticoticoterereco! ticoticoterereco! o tropel do Cangaceiro do Rei a perseguir São Jorge, na tentativa de recuperar Maria, a morena lânguida refém da luz da lua. O Cangaceiro do Rei não habitava às sombras, vivia atrás das portas. Afã em desabalada carreira tentava alcançar a Lua. Nem as cangaceiras Mancomunada e Empolvorosa, amigadas com o cangaceiro Esdrúxulo, conseguiam tranquilizar o Cangaceiro do Rei. 
XXVI – E no beijo estava o silêncio loquaz. Adversativa, jovem cangaceira roliça de olhos, que se amigou com o mais antigo dos cangaceiros entre toda a história do cangaço, viveu na cabeça de Queroá com quem se amancebou recentemente. O nobre monarca, que invocava a sua autoridade, o seu poder divino, era o dono do Cangaceiro do Rei? Queroá com o gérmen da vingança; ingressou no cangaço no dia em que, numa feira de sábado, um comerciante pisou em seu pé; a vingança foi ir atrás do comerciante e queimar o seu comércio, matar o seu cachorro, ameaçar a sua família. O Cangaceiro do Rei era do mesmo naipe. No palácio do Rei, o Sertão, reuniam-se aos magotes os cangaceiros a jogarem baralho no palacete; eles varavam noitadas em mesas, bancos que metrificavam as forças, compravam-se munições modernas, boas conversas. Como se matava amiúde: os cangaceiros do Rei impunes, não se sentiam culpados e a lei jamais os alcançava; e o bando fazia e desfazia. A cangaceira Adversativa não falava sem um porém, um contudo, um entretanto, um portanto, um mas. O estridente cangaceiro Queroá era uma metralhadora giratória; quando não estava lá em cima, encontrava-se no fundo do poço. Avançava o cangaceiro Queroá ao lado do Cangaceiro do Rei. Me falasse, gritava o Cangaceiro do Rei, uma notícia, um texto qualquer, uma imagem de jornal que acompanhasse as fases da Lua. Na sela de Afã, o Cangaceiro do Rei ora transformado herói ora em bandido-herói. Corria à boca miúda que o cangaceiro Queroá guardava a sete chaves o segredo da eterna juventude e negociava com o Cangaceiro do Rei que procurava com efusiva determinação viver com Maria.
XXVII – No beijo o silêncio loquaz feito gozo do Cangaceiro do Rei. Nem ave-maria nem sinal da cruz, um credo, uma reza braba. As forças volantes em seus encalços, no dizer dos coiteiros. No Afã viajava o Cangaceiro do Rei em direção à Lua. O calendário avançava. As forças no rastro dos cangaceiros. Os meses sem chuva. A seca. A sede. Perseguidos vaqueiros, torturava-se o pai do rastreador, prendiam, matavam. O vaqueiro rastreador deixou o curral de apartação e se foi atrás da rês desgarrada. Soldado da força pública estibungou nas águas turvas de um riacho. As forças na caatinga atrás de bandoleiros. O vaqueiro cercado por cangaceiros. A rês perdida no mato. O vaqueiro amarrado de embira e torturado. O Cangaceiro do Rei não era Rei, acho! não era Rei ancho! cantava o sapo.
XXVIII – E no beijo esperava-se o silêncio loquaz. Açacalado na procriação da luta na caatinga. Olhar de carcará do Cangaceiro do Rei. Corriam Josefa Dona Basílica e as crianças de peito; gritavam os cegos; tremiam criações e desgarram-se nos campos, na ficção das espécies em desabalada disputa. Só vencia quem escapava do jato de sangue lançado nos corredores de espinhos desse totem que matava em nome do Rei, em nome da Lua habitat de Maria. São Jorge, ligeiro, fugiu ao ver a poeira de Afã sobre o lombo do qual cavalgava o Cangaceiro do Rei. Foi morar na Lua com a lânguida morena do cangaceiro. O santo guerreiro e o seu dragão caçado pelo bando do aloprado. Matava em nome da mulher morena que habitava a Lua, que cavalgava em pelo o cavalo do santo, o seu desafeto. A barriga do povo havia de ser forte; a película rompia-se sem mora; mais desafios no útero e, fora, era uma guerrilha nos olhos do Cangaceiro do Rei.
XXIX – Vivia o Cangaceiro do Rei pelo único beijo que habitava o silêncio loquaz na lânguida morena com o sorriso de flores de mandacaru. O Cangaceiro do Rei não dado a fuga. Crianças nasciam em tulhas, sem mudanças preenchiam o mundo devastado. O Cangaceiro do Rei abrigou-se na casa da esposa do Caos, início de tudo, dormiu com a Noite em cópulas que deram à luz. Corria Afã sem alcançar a Lua. 
XXX – Os cangaceiros sedentos, riam no dia a dia da troca de fogo a rifle, fuzil. O ferrolho das armas fumegava, fumegavam os canos das armas atrás dos morros de pedras. Os cangaceiros a tiros, sanguinários ataques, ignorantes provocações. Mulheres, homens. Rudes. Incultas baraúnas, loucos mandacarus. Cavalgavam os cangaceiros do Cangaceiro do Rei. Amantes sequiosos, imprudentes deuses em ávidas buscas. No estouro dos cangaceiros, não ficavam casas, fazendas, cercas, vilas, povoados, cidades, lugar de culto, mesa, comida, rio sem água, açude seco, automóvel, trem, muares que transportavam numerários aos trabalhadores nos açudes estatais, nas estradas de ferro, estupros, homicídios, raptos, furtos, festas, ameaças, insultos, intimidações. Luxurientos selavam enfiteuses, caíam de boca e de pernas sobre presas sem pressa. Ora ligeiro ora céleres. Carnes nuas debaixo do sol na terra crua.
XXXI – E no beijo estava o silêncio loquaz. Inúmeras trapaças. O crime de uma mulher pobre aconteceu ao lado de seu amante, parente de rico fazendeiro, no alpendre; sentada, cosia a mulher a sua fazenda; em cascos de animais tísicos, uns vinte ou trinta cangaceiros traziam muitos outros tantos; a pé cercaram as cercanias da mulher que cosia; deram-lhe lapadas de relho, arcaram a mulher – vulpt! – ferraram-lhe de pé; perdão; um dos amantes a marcou no rosto com ferro quente. O marido às pressas surgiu do roçado; tentou conter a fúria; derrubaram-no a coronhadas e mosquetão.
XXXII – Cangaceiros com dentes de ouro intimidavam as estrelas e o sol. Prisões em Olho-D’Água-dos-Lírios, bagaceiras em Santana-Sem-Lua, torturas em Pedrita, intrigas em Porto da Folha Miúda, traições em Lagoa do Mijo Dourado, renúncias em São Marcelo de Santa Bárbara, denunciados em Pedra Bonita. Coiteiros fujões, coiteiros briguentos, coiteiros valentes, covardes coiteiros de situação, e coiteiros desde Portugal. Cangaceiros com dedos forrados por anéis, riqueza ostentada no chapéu de couro com abas largas quebradas na testa se unia a tiras de couro dependuradas que coroavam os cangaceiros e o seu espólio. Era as cartucheiras de prata, com prata de ouro e dobrões que luziam ao sol e sob o luar no desertão. E assim cangaceiros iam lutar em nome do Cangaceiro do Rei. Reluziam de longe os chapéus.
XXXIII – No beijo o silêncio loquaz. Armas de último tipo e munições à vontade. Os cangaceiros aos gritos na selva caatinga: Fidapeste! Viesse, diabo! Desgraça! Uai! Oxente! Valei-me nossa Senhora! Fui atingido? Fui furado... e nos furos corriam a vida! ultimava-se o cangaceiro diante do fim. Passava diante da morte a casa das quengas, festas, beberagem. Cortavam os tiros, as punhaladas em Porto da Folha; os cangaceiros em luta e volantes avançavam. Companheiro, com licença! Adiante avistava-se Piranhas, mais adiante avistava-se as barrancas do rio São Francisco, e longe desses adiantes algumas braçadas Alagoas virava Sergipe e o cangaço qual formigueiro ia ao risco de Pernambuco e chegava ligeiro ao Cariri... Avançava o cangaço do Norte de Minas Gerais ao Sul do Ceará, corria ao Rio Grande do Norte e descia à Paraíba. Na escala planetária, os cangaceiros em ação. Lá e cá avançava o cangaço; abria a muque, a balaço; reescreve a História com a estória; comia carne agasalhada na farinha dentro dum embornal; água fresca de quartinha sob as ordens e a obediência ao Cangaceiro do Rei. As informações químicas dos cangaceiros espalhadas pelos perfumes usados, quais plantas que se utilizavam de rizobactérias que viajavam pelo vento e alcançavam novos mundos. Vibrações por balas dos cangaceiros cortavam vilas, povoados, cidades, mundos estranhos e, em viagem atroz, alcançavam outras cidades, outras vilas, outras ruas, montoeira de casas espalhadas pelo mato. Os cliques das armas engatilhadas, os estampidos das balas.
XXXIV – E no beijo estava o silêncio loquaz. Na estrada, cangaceiros do Rei viram um passante meio-dia passado. Assobiava um assovio animado. Entreolharam-se os cangaceiros. O sanfoneiro do grupo de cangaceiros, ligeiro, sacou a sanfona e começou a folia. Os cangaceiros do rei principiaram a dançar. O passante não parou de assobiar por semanas. Os beiços do passante, disse um cangaceiro, era uma flor inchada. Mal podiam os lábios soprar as ventanias no assovio do assobiador; passava no orifício da boca um fio fraco de ar.
XXXV – Num sítio velho desses de melancia, na casa principal, o dono dormia. E chegou uma tulha de cangaceiros do Rei. As forças feito vento chegavam numa casa suspeita de habitar coiteiros, quebravam os potes de barro, comiam os sacos de farinha, levavam as rapaduras, bebem as águas guardadas e as aguardentes.
XXXVI – O beijo estava no silêncio loquaz do rés do chão aos telhados. As terras em sesmarias, retalhadas capitanias hereditárias. Iniciou-se o latifúndio senhorial. Cavalgava em Afã o Cangaceiro do Rei. Na Idade Medianeira passavam em brancas nuvens os capitães com os seus soldados a expulsarem os povos originários. E cavalgava em seu Afã o Cangaceiro do Rei ao encontro de Lourenço do Caldeirão, do Padre Cícero Romão, de Antônio Conselheiro.
XXXVII – Os fanáticos afiavam o seu fino aço. Amancebados em seus mancebos tocavam oboés. Esbravejam os santos em santas missões: Ó hereges incrédulos amancebados, vosmecês... Vosmecês se não sabiam, saibam vosmecês!
XXXVIII – Lançou-se a semente. Os cangaceiros antes bons vaqueiros por alguns contos de réis. Cangaceiros de canga a mando dos bacharéis, repetiam as notícias nos jornais.
XXXIX – O Cangaceiro do Rei alienado por natureza pouh! pouh! atirava a esmo e no tombo ouvia-se o grito, a dor no balé. Vítima caía à bala. Mitificado o Cangaceiro do Rei.
XL – Seguiu a galope Afã; galopes corrupnantes. Tiros cortavam os ar. Soldados, cangaceiros. Esquipava Afã, o cavalo do Cangaceiro do Rei.
XLI – As abelhas e os favos. O cipó ao zunir vincava a pele. Surra que o homem levava lavava a alma eterna. O ferido botava sangue ao chão; era o cangaceiro ferido à bala no Raso da Catarina. Voavam as borboletas de flor em flor, competiam elas com os colibris? Fornicadores do Cangaceiro do Rei gozavam após surrados pela mulher com quem dividia a luta. Ébrios. Bilros de renda. Cada bala onde pegava ficava o caroço. 
XLII – Buscava-se em Juazeiro do Norte a proteção divina do santo que vivia entre os homens quão homem igual. Separavam os cangaceiros dos coronéis os contos, o ouro, a prata esterlina, cidades, padres, heróis trágicos. Só nas penas dos poetas de cordéis os cangaceiros eram louvados em bacanais mágicos, selvagens. Eu era um reles morador das Panelas, nas Panelas fui criado, era eu um filho de Panelas, confessava-se nas orações o Cangaceiro do Rei ao santo de Juazeiro. Padre sento, ó padre santo, falasse com o santo guerreiro, padre santo, de santo a santo, que era hora de devolver Maria a Panelas. E no beijo estava o silêncio loquaz. A vida sexual dos cangaceiros, sob a luz dos lampiões, dançava velhos e novos em pelo, cantava o cego na feira de sábado, tocava pandeiro. No clarão dos candeeiros as sombras longitudinais. Nus fantasmas. No forró do sanfoneiro, os cangaceiros do Rei sem tom nem viola.
XLIII - O Cangaceiro do Rei vinha das famílias mais antigas da Paraíba, de Alagoas, de Sergipe, do Ceará, de Minas Gerais, de Pernambuco, da Bahia, das águas do São Francisco. Trazia com ele o beijo no silêncio loquaz. E os cangaceiros eram homens feitos pelas mulheres nas ribanceiras do Chico. Correu, deixou chapéu. Foi o Cangaceiro do Rei quem primeiro escreveu uma carta ao governo. Protestou na revolta de Quebra-Quilos. Eu vi, doutor bacharel, canecas, linhas, cestas, panelas, potes de barro, faca de ponta, farinha, feijão, redes, selas, gaiolas, chapéus e gritos de horror, peles de cabras e arroz quebrado, um metro de madeira em pedaços. Eu vi, senhor doutor bacharel, voavam vendilhões misturados a mascates. Na cabeça, balanças atiradas, medidas e pesos. Fogo, senhor doutor.
XLIV – O assombro era geral, e tomava o povo de surpresa. Abrisse bem o olho! asseverou o coronel, neto de Comendador, em meio às fumaças de seu cigarro de palha, cortado o fumo de rolo a canivete amolado. Um padre passou, passou outro padre em viagem de canoa. Era celebração em Olho D'água dos Lírios. Os caixões d'água desviaram os padres da jornada; eles foram parar em Pedra Bonita. Olhasse com cuidado, cabra, porque o barco era grande, e qualquer dia ou qualquer noite levava tiro. Sertão de curtumes numa pré-revolução industrial que engatinhou terras secas, pedras, espinhos-de-roseta.
XLV – No beijo, foi o silêncio loquaz quem redescobriu o Nordeste brasileiro. Charges, desenhos, retratos, reportagens. O cinema trazia a imagem do Cangaceiro do Rei. Desenhistas faziam as peripécias do Cangaceiro do Rei, que fumou cachimbo com o Saci, e aprisionou lobisomens, e chutou uns curupiras, trocou tiros com boitatás. Enquanto o Cangaceiro do Rei fumava, admirava a sua Lua, em Gramas, onde se refugiou, na relva ao lado do fogo, cercado pelo bando. E a imaginação imaginava que imaginar era igual a coçar, bastava só imaginar.
XLVI – Na capa do jornal, na capa da revista a caricatura do Cangaceiro do Rei era distribuída. O Nordeste, o Brasil, o mundo conheciam o Cangaceiro do Rei. Lia-se nas coloridas reportagens em línguas estrangeiras que era leia com cré e creia com lé. Fim de tarde em Solossagrado, lia o padre Velho, no alpendre do casarão ao lado do riacho tributário do Panema, as reportagens sobre o Cangaceiro do Rei; lia sob o sol derramado na janela do solar, o Cel. Dr. Cicrano, primo do Dr. Sicrano, ambos primos e netos de quem subscreveu a Carta de 1891, a segunda Lei Magna Brasileira; atrás do balcão da farmácia, lia Polissíndeto; nas páginas do semanário O Liberdade de Expressão, lia o jornalista pernambucano Lítotes as notícias sobre o Cangaceiro do Rei. Arreava o cangaceiro o seu treteiro cavalo: último e primeiro, esbravecido Cangaceiro do Rei encolerizado feito jumento no cio. Gato na cumeeira miava, cães nas veredas ladravam. E o Afã do Cangaceiro do Rei a soltar popas ao vento. Cheio de alegria o Cangaceiro do Rei por se aproximar o dia em que ia duelar com São Jorge, cavalgar no Afã nas montanhas da Lua. Usava o cangaceiro mais de 800 braços armados, que recebiam treinamento na Serra Desvanecer. O zagueiro festejava o momento de atacar a Lua, e dela trazer a lânguida Maria de sorriso de flores brancas de mandacaru. Afiava o Cangaceiro do Rei os dentes de ferro e punhais finos cuja lâmina tinha 60 cm.
XLVII – Um

à
toa
de

em

quis
ver
a
lua,
mas
quase morreu de apanhar. Ficou um e. Porque o pequeno planeta era mágico; e ele influenciava o homem, a mulher, a plantação, as marés.
XLVIII – E no beijo estava o silêncio loquaz, cantava o cego Ómiros. Sobrevivia nas ações do cangaceiro a memória viva do opressor por ter sido o cangaceiro oprimido pelo opressor. E por ter sido oprimido, tornou-se o cangaceiro opressor. Desde a chegada das caravelas, espalharam-se os opressores contra a terra, contra o povo originário, cantava o cego Ómiros na feira de sábado. O sonho do cangaceiro não era libertar-se ou muito menos libertar o Sertão, cantava Ómiros, era ser temido, respeitado, guerrear na caatinga, nas vilas, nos povoados, beber cana como súdito do Cavaleiro do Rei, súdito do dono da terra. Os cúmplices da opressão também sonhavam, cantou Ómiros, sonhavam em oprimir. Vidas dedicadas à pilhagem, à quengança, à matança, à lei própria como uma abelha a flor. Se duvidasse, fosse ao Desvanecer. Eram 800 guerreiros bem armados. Houve época em que seguiam o Cangaceiro do Rei mais de 5.000 cangaceiros, obedeciam a ordens, prestavam contas. Quem quisesse ver a peste na enluarada Serra Desvanecer, onde se ocultavam os cangaceiros, experimentasse provocar o Cangaceiro do Rei; este bicava de punhal o arengueiro, dava-lhe resposta com rifle de repetição. Não duvidasse: Lua não perdia por esperar a fúria do Cangaceiro do Rei. Volantes queriam a riqueza à caça dos cangaceiros do Rei. Se tivesse bala no fuzil, corria a lugares onde homens não andavam, só cangaceiros; ouvia no sono rápido os gritos dos descarados. Eram estas brigadas dos cangaceiros: se não era morto à bala, era morto de sede, caso não encontrasse frondoso pé de umbu e cavasse a raiz, achava a sua batata, o seu alimento. O cangaceiro não era morto a punhal? Pegasse o mosquetão. E na casa das quengas, os cangaceiros dançavam xaxado; se antes agarradinho um ao outro, logo se dividiam entre as quengas num quengaral. Fora do quengaral ficava só o Cangaceiro do Rei. Na Serra Desvanecer, o Cangaceiro do Rei não tirava a mira da Lua; nela habitava a morena lânguida de sorriso de flores brancas de mandacaru levada por São Jorge em seu alado e ligeiro cavalo sobre o dragão espetado pela lança do santo. Na Lua fazia morada a morena dos olhos do cangaceiro levada no zás de São Jorge. E o Cangaceiro do Rei em seu niilismo amoroso e corrosivo, na Serra Desvanecer, na parte mais alta, entre pedras soltas, terra seca, espinhos-de-roseta, apontava o fuzil à Lua. Atirava, atirava. E se repetia. Na finitude no tempo, a finitude do homem. Atirava, atirava, e se repetia. As repetições abriam caminhos, provocavam mudanças na cabeça do Cangaceiro do Rei. Na eterna recorrência do Cangaceiro do Rei, na luta contra o santo guerreiro refugiado na Lua, na busca por Maria. Repetia-se o Cangaceiro do Rei em infinito número de repetições à lua, que se derramava sobre a Serra Desvanecer. Num zás, não queria o cangaceiro atacar São Jorge, atacar a Lua, atacar o dragão, só repetia tiros de fuzil à Lua. Essa guerra com o dragão, guerra com o santo, o Cangaceiro do Rei queria a meeira. Treinavam os cangaceiros. Tiros na Serra Desvanecer. O dragão urrava, fumegava. A função narrativa, cantava Ómiros, era fazer acreditar em papagaio narrador? Após o canto, o cantor passava a bacia de mão em mão e ouvia o tilintar de seu ganha-pão. Bem-dizia com os versos o tilintar moedas em ouvidos avarentos corroía o firmamento.

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