SANTANA INDIVIDUALIZADA COM O TOPÔNIMO SOLO SAGRADO

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

O carcará sobrevoou a quixabeira; subiu, planou sobre íngremes paredes de rocha arenosa. E num ponto minúsculo na trilha de areia, cercada por cactos e cobras, vinha o cangaceiro Conveniência no lombo de um cavalo roubado.
Pairou o carcará. O sol marcava o rosto dos cangaceiros no subgrupo do cangaceiro Conveniência. Todos trazidos por seus animais, na tropa lenta. Eram os novos mercenários que faziam rastros no Raso da Catarina.
Casais presos ao silêncio na areia solta sob as escarpas formadas pelo tempo que os observa indiferente; eles pesados de acessórios, como soldados da fortuna. Era gente longe de ter três décadas de vida, com chapelões de couro que refletiam o sol.
Outra tarde desvanecia. De quando em quando, as montarias arfavam. E um grasnar violava a paz na garganta ferida entre as escarpas arenosas.
Embornais competiam com as cores da catinga. Cruzadas armas no peito e cartucheiras. Mulheres com armas menores. Embornal de moedas e cédulas.
Cessou a temporada de chuvas. A catinga outra vez substituída pela cor esbranquiçada; perdeu os tons esverdeados. Crequelava-se a terra sem nuvens de pesadas chuvas.
Os açudes cheios, secaram. Secaram os estercos de caprinos, equinos, bovinos. Secaram as aves que eram carniças. Resistiam os umbuzeiros.
O Cangaceiro do Rei, apelido que o cangaceiro Conveniência ganhou nos jornais, lançava o seu olhar sobre o bioma na catinga. A luz atravessava o verde que alcançava longe o sagui: os olhos do cangaceiro atentos a tudo. Mudava o sol a cor da pele, que se protegia em tecido fino sobre os braços na camisa com botões de ouro.
O solo rachado, um tabuleiro onde o rei podia se movimentar em todas as direções. O cangaceiro Conveniência, no baio, livrava-se do suor na testa com o lenço preso ao pescoço por anel de pedra azul.
A pelagem amarelada do baio grudava de suor. No amarelo acobreado, o cangaceiro Conveniência transportava víveres, armas, munições.
Livre era a rainha que andava na Lua, ia aonde quisesse, fosse na vertical, diagonal ou horizontal. Olhava o cangaceiro a branca e gorda Lua. A rainha tinha livre movimentação. Via caminhar por lá a rainha, e também via São Jorge que pelejava contra o dragão.
O tabuleiro rachado. No solo seco, as pedras soltas, espinhos-de-roseta. O cangaceiro Conveniência acompanhado por um subgrupo de cangaceiros. No Raso da Catarina, este subgrupo encontraria outros subgrupos de cangaceiros.
Conveniência, em lenta montaria deixou Santana perseguido pelas forças volantes. Fugiu de Alagoas sob uma saraivada de balas, correu com o subgrupo, e foi esconder-se na Bahia onde alimentava coiteiros no Raso da Catarina.
Os peões do Cangaceiro do Rei à frente; atentos, atacavam na diagonal. Os cãeschorros farejaram, sumiram na mata branca, voltavam, tornavam a sumir em silêncio.
Avistava-se distante uma torre. O sertão estava cheio delas. Torres eram vistas à frente, à direita, atrás e à esquerda. Havia torres em todas as direções no solo semiárido. Os cangaceiros e as forças volantes onde estivessem havia uma torre que simbolizava a fé e marcava a terra.
O poder do bispo não tinha limite naquele tabuleiro, que ameaçava todos os subgrupos de cangaceiros com o xadrez. Embora o bispo só se movesse na diagonal, a sua presença naquela realidade era uma sombra presa ao corpo.
Lento o baio do cangaceiro Conveniência, que estava certo de que o ovo era o pai da galinha. Ele realizava movimentos em L com os quais confundia as forças. Avançava um trecho de mata à frente e outro perpendicular numa direção que lhe desse na veneta.
Entre escarpas, as araras-azuis-de-lear, os urubus-rei, as gralhas-cancã.
Forças volantes, cópias da estética do cangaço, raramente chegavam ao Raso da Catarina. Exceto o Ten. Polissemia, que possuía o dom da multiplicidade cada vez que se tratava de sentidos de uma mesma palavra. Era a sua arte. Ele usava a mesma grafia que ia além de um significado.
Voavam os cardeais-do-nordeste, gaviões-do-rabo-branco, surucuás-de-barriga-vermelha, as aratingas-de-testa-azul. No Raso da Catarina, brilhavam os cangaceiros com a sua estética única.
Nos tabuleiros rasos, profundos, o baio à frente com Conveniência. Atrás, o subgrupo em fila indiana. A vegetação rala e cinza ladeava os cangaceiros. De repente, na chapada a floresta surge pontilhada por gigantes adormecidos; seres paleozoicos e mesozoicos no cânion que atravessava as eras areníticas.
Corriam lagartos, cobras-cegas entre as touceiras de xiquexiques, cactos, bromélias. As folhas de pedras dissolvem-se nas mãos dos cangaceiros.
Numa faixa estreita e sem fim, os cangaceiros tinham um sem-fim de coisa à frente. Na catinga arbustiva, as pegadas eram abandonadas pela tropa.
As paredes de rocha deixavam os cangaceiros minúsculos, sem forças, e completamente frágeis. Sob o peso do calor, o cangaceiro Conveniência levava a sua cabroeira.
O vento alto, passava distante, esculpia as rochas, fazia nelas esculturas insólitas. Era como se o vento se comunicasse numa língua alienígena.
Os cangaceiros de Conveniência cercados por Glória, Jeremoabo, Santa Brígida. Na catinga de areia, os paredões de arenito eram figuras disformes.
Cifrão era o cangaceiro que conhecia em pormenores o bioma no Raso da Catarina. Avançava a cabroeira nas depressões daquele longo, plano e fundo vale. O cangaceiro Cifrão à frente do bando.
Preservava trejeitos do pai, andar da mãe; andar atento dela ao agachar-se e entrar no galinheiro de onde saía com balaio improvisado no vestido cheio de ovos. Cifrão era filho dos finados Moeda e Dinheiro.
Os pais de Cifrão mortos pelas forças que fizeram à Moeda e Dinheiro o que se praticava contra os coiteiros que davam guarida a bandidos; coiteiros que os munia de comes, munia-os de informações sobre as forças volantes, munia-os de bebes, de balas, de armas. De longe, escondido, Cifrão, menino ainda, testemunhou a sessão de crueldade praticada aos pais.
Cifrão ouviu deles os gritos, sem coragem de agir; e ouviu os apelos, sem força; ouviu os rogos de piedade, sem esboçar ação. Mais tarde, ouviu o silêncio, sem ânimo. O menino Cifrão ouviu comemorações e gargalhadas dos algozes que se distanciaram da casa.
No sítio, onde morreram os pais de Cifrão, ele havia sido ensinado por seu pai Dinheiro a ser proprietário de terra, pois quem não tinha terra não tinha nada, ensinado a sulcá-la de arado puxado por bois, e a despejar a semente, e a limpar a roça das pragas, e a colher o grão, e a alimentar-se do suor. Ensinado Cifrão menino por sua mãe Moeda a amar o sítio, ordenhar as cabras, zelar pelas galinhas, proteger a casa.
Há semanas, o cangaceiro Conveniência entocado no Raso da Catarina com a faminta cabroeira à espera do acordo feito com o Cel. Dr. Vil. Este lhe fez promessas, e indicou o alvo, e apresentou garantias a ele e ao seu povo. O Cel. Cordeiro da Paz Carneiro era desafeto do Cel. Dr. Vil, não era? Não era mais. E outros subgrupos vieram unir-se ao subgrupo de Conveniência.
O Cel. Dr. Vil despregou os joelhos do genuflexório, suspirou a boca cheia de vilipêndios contra o ladrão e assassino cangaceiro Conveniência e seu bando. Ele associava-o às falcatruas e aos morticínios recém-praticados, inclusive que trouxeram o luto à casa de seu padrinho Cel. Cordeiro da Paz Carneiro.
O cangaceiro Conveniência marcou encontro com gente do Cel. Dr. Vil na bodega de Mané Cachimbo? Ousadia de cangaceiro sem mãe e sem pai ia além dos limites da ousadia! o Cel. Etc., lado a lado com o Cel. Dr. Vil, obrigou o irmão a respeitar o voto de silêncio no lugar santificado.
Deixasse o padre Velho trabalhar! murmurou cabisbaixo o Cel. Etc. ao Cel. Dr. Vil. Envergou-se de rompantes de seu irmão na presença de outros coronéis, no templo de Santana.
Mané Cachimbo, amarrado à beira do Panema, severamente castigado.
...
05 – Os cangaceiros a cinco léguas de Poço da Lama. A cavalo viajava o bando ao Raso da Catarina. O cangaceiro Conveniência carregava nas costas o fardo do que fez ao Cel. Cordeiro da Paz Carneiro, comentou o Cel. Dr. Vil na varanda do casarão ao lado do padre Velho onde folheava O Liberdade de Expressão e o Jornal do Ser Tão. As mãos do Cel. Dr. Vil cheias de folhas de jornais de todos os Estados. Imagens de cangaceiros misturavam-se às estórias e às histórias. E o Cel. Dr. Vil agitava as folhas de jornais e pregava unificação dos editoriais antes que os cangaceiros tomassem o mundo com as suas patifarias.
06 – Aves de augúrio, segundo o gosto do sertanejo, eram anunciadoras prévias das tragédias vividas ultimamente. Morte também era prenúncio de vida; e morte conhecida anunciava-se em outra vida que ocupava o lugar vazio deixado por quem se foi. Quase tudo, como se sabia, sabia-se por presságios. E as estrelas ao cair, caíam por ordem do universo. Mané Cachimbo arrastado pelas estreitas ruas de pedras enormes que ligavam passagens entre as casas. Calçadas altas circundam o mundo desde que este mundo surgiu. As telhas vermelhas e velhas, qual chapéu de couro de vaqueiro, cobriam casas que espiavam umas às outras. Janelas rasgadas em paredes grossas nas casas iluminadas, janelas de folhas duplas de madeira rachada de sol viram o castigo atribuído a Mané Cachimbo.
...
O medo da morte, disse o padre Velho em seu latim cotidiano, era o que mantinha o vigor à vida.
Santana ganhou este topônimo Solo Sagrado, disse ufano e pio o Cel. Dr. Cicrano no genuflexório à frente da imagem de Santana, ombro a ombro ao do Cel. Bé do Algodão, pois em nossa terra bando nenhum de cangaceiro filho da... se arriscou a saqueá-la.
O Cel. Dr. Cicrano, rapidamente puxou o lenço branco na lapela e o levou à boca, brecou o filho da... Afinal encontrava-se em Solo Sagrado – topônimo de uso comum em correspondências e jornais; documentos emitidos pelos cartórios saíam já com o nome Solossagrado.
O Cel. Dr. Vil, no genuflexório ao lado, inclinou a cabeça, apertou os dedos na aba do chapéu ante a braguilha. O mano do Cel. Dr. Vil, pequeno e barrigudo Cel. Etc. concordou com o topônimo comentado pelo Cel. Dr. Cicrano.
A obrigação de Mané Cachimbo era avisar a presença do cangaceiro em seu estabelecimento, e não esconder essa pústula social! exalou o Cel. Dr. Vil ao irmão Cel. Etc.
O Dr. Sicrano, primo do Cel. Dr. Cicrano, ajoelhado no genuflexório, pedia perdão dos pecados e agradecia pelas conquistas. Depois contou ao primo que foi arrebatado por uma epifania.
Vi em êxtase o glorioso céu abrir os portões pesados de chumbo. Diante deles, chegou uma conhecida adiposa ao Paraíso; ela vinha acompanhada por três homenzarrões. O primeiro foi reprovado no reino celestial porque corria no Panema atrás de mulas a quem propunha conchambranças desavergonhadas; o segundo recusado por enganar os fregueses com o troco; o terceiro praticava o que sofreu Urias. Logo, chegou no corpo de uma criança um velhinho recém-falecido. E a epifania terminou como se fosse uma vertigem. Abri os olhos, primo, e estava aqui ao seu lado, e não na porta do céu.
Ao erguer-se, no genuflexório, o Dr. Sicrano cambaleou entre o primo Cel. Dr. Cicrano e o Cel. Bé do Algodão. O Cel. Dr. Vil evitou que o Dr. Sicrano caísse. O Cel. Dr. Cicrano permaneceu ajoelhado e ali refletia sobre o arrebatamento e a epifania do primo Dr. Sicrano.
No genuflexório, o Cel. Bé do Algodão fechou os olhos. Viajava na compra de títulos; ia mais frequentemente ao Recife e ao Rio, DF; buscava novos títulos. Planejou ir à Europa caçar anel e diploma. E se dizia pronto a desconstruir o dito que se ouvia de que quanto maior o anelão, mais parvo o exibidor. E aos poucos ergueu-se o Cel. Bé do Algodão de joelhos, no genuflexório.
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07 – Quebrou-se o galho seco, no chão. Na copa do umbuzeiro, os passarinhos voaram. Só deixei que subisse até aqui, me encontrasse nesse lugar, porque era inocente de crime. Nunca fui de fazer o que foi feito sem que não merecesse ser. O vento nos cajueiros espalhava maturis, escreveu a reportagem nas mãos do Cel. Dr. Vil. Abelha jandaíra acordava cedo, transformava o bioma. Os bezerros iam-se e mugiam atrás das vacas. Cabras baliam. Na paisagem geomorfológica no semiárido, as pedras brancas uniam-se em extensos lajedos: breves oásis; encontrava-se no meio deles caldeirão d’água. Próximo a um, uma caverna onde o cangaceiro Conveniência foi ouvido. Chegou com o cangaceiro Camundongo. Na boca da caverna, Menino, Miúdo e Cifrão. E a duas braças, um subgrupo do bando de Conveniência observava. Às mulheres não foi dada permissão para serem ouvidas. E todo este circunlóquio, disse o Cel. Dr. Vil ao padre, estava escrito aqui. E agitou outra vez as páginas dos jornais. Veja, padre Velho, a cara da pústula social. Veja, veja como é que o monstro surge. O jornal escreveu que a manhã se apresentou num arco-íris de fogo. Queria ouvi-lo, senhor, escreveu o jornal, porque ouvi que lhe prevalecia o homem humanizar o desumanizado.
...
Era nisso que dava, padre Velho, alfabetizar o povo analfabeto! vociferou o Cel. Dr. Vil diante dos convidados no casarão do padre. O maestro ao piano. A irmã do padre, Prequência Prequela, servia Porto.
Todos afogavam-se em bebes e comes. Com as folhas dos jornais nas mãos, o Cel. Dr. Vil as agitava enfurecido. E jurava não ter conchambranças com cangaceiros. Era inocente em todas as acusações.
O pai do pai de meu pai, disse o Cel. Dr. Vil, não aceitava menina em casa que lesse, senão se tornava leitora de cabra desavergonhado na moral e avesso de ética e intransigente defensor da impertinência, que não respeitava nem moça direita, nem pai de família; e a elas expunha as suas vergonhas em público, igual aos cavalos no beiço do Panema.
Todos iguais ao Cel. Dr. Vil espalhados no casarão do padre Velho. Não cabia tanto Porto em tantos cristais.
Esse povo que lia, padre Velho, gesticulava o Cel. Dr. Vil, em nosso tempo, padre Velho, era leitor e letrado nessas coisas de cangaceiros do inferno. Se nós não cuidássemos, padre, um estilo de vida cangaça acabava por influenciar a nossa vida beata.
O padre Velho tossiu. Trouxe do bolso da batina preta um lenço encardido à boca; tornou a guardá-lo de onde veio.
Recorda-se, padre Velho, a variação Diatópica, que se foi meter a falar a fala que se falava no Sul, e passou a chamar jerimum de abóbora, e macaxeira ela ia à freira e pedia aipim. Senão, padre Velho, disse o Cel. Dr. Vil, recordasse a variação linguística na qual se meteu Diacrônica, que voltou cheia de palavras que caíram em desuso de tão velhas. Ou o caso de Diafásica, que veio outro dia lá em casa e foi formal comigo e informal na cozinha; e quando eu lhe perguntei por que todo aquele palavreado, a resposta de Diafásica foi de que a ocasião fazia o ladrão; e Diafásica aprendeu a usar palavras da malandragem, vícios de fala, estrangeirismos, fala de médicos, e a fala com ela, padre Velho, dependia do contexto na comunicação, porque a pessoa é a pessoa sendo pessoa dentro das circunstâncias da pessoa.
O padre Velho coçou a cabeça, tornou a coçá-la. A freira Prequência, que vivia no casarão do irmão, ofereceu-lhe mais Porto e encheu outra vez a taça do padre Velho.
Concluía, padre Velho, com a linguagem de nossa amiga Diastrática, que subia e descia ladeiras na cidade como se convivesse desde cedo com todos os grupos sociais. Entre lavadeiras, ela falava na linguagem delas, no açougue era a língua de açougueiro. E se falasse com o Dr. Habeas Corpus, Diastrática falava de acordo com o grupo social do doutor. Não era, Dr. Habeas Corpus?
Era, Cel. Dr. Vil! confirmou o Dr. Habeas Corpus.
Senhores! disse o Cel. Dr. Vil. Volto aos jornais e ao enredo daquele cabra safado. Ouçam, senhores, o que os jornais de nossa época tinham a ousadia em tornar público:
I – Fugiu de Solossagrado em desabalada carreira o famigerado Cangaceiro do Rei em sua jornada, lia o Cel. Dr. Vil. Conveniência penetrou nas profundezas do inferno do clima sob o fogo de seus perseguidores.
Sente-se, Cel. Dr. Vil! sugeriu-lhe o Dr. Habeas Corpus.
Esses cangaceiros, Dr. Habeas Corpus, viviam em jornais com conversas e conversinhas de que o nosso povo mandava e desmandava fazer o que fazia o povo dele sob o seu comando. Os jornais, que não viviam sem isso (e esfregou o indicador no polegar), viu, noticiavam essas falcatruas sem pés nem cabeça, viu.
II – Ei-lo a esmo. Ele chegou ao invólucro, coxo, cego e revoltado com o mundo. Empinou montaria e cantou lucro em desembesto e sem trégua. Foi furioso: “Sou fidumaiégua, cangaceiro e louco”, disse o cangaceiro Conveniência em uma das terras, fazendas. Nos sítios, sobre rápidos cascos dos animais, átimo impulsivo, abelha sem favo, insano, sem alienista e sem cura, o Cangaceiro do Rei colérico, maldoso. Crescia na barriga desenxabida, o cangaceiro Conveniência arengava muitas vezes de faca atroz, e dava tiros de clavinote na barriga da mãe. Ele veio matricida. Nem assim uma lágrima verteu o malvado. O Cangaceiro do Rei foi, e cresceu mui, e mui veloz este pequeno daninho. E caiu do ventre. Na capoeira meteu-se a matar, a torturar, a ameaçar, a extorquir.
III – Ouviu o tropel aproximar-se num trot! sobre os cascos trot! trot! do estrupício. De quem é esse trote ligeiro, de quem? era o que temia o nosso povo, no sertão. Desabalado ao precipício, jogou-se. Eta, eta, eta! O Cangaceiro do Rei nasceu ranzinza, este franzino era rápido no clavinote. O pai tratava-lhe com castigo sob o relho, empurrões, croques, tapas n’orelha, beliscão. Namorar? Quem disse que o pai lhe permitia às filhas? Tinham os pais as suas filhas sob o chapéu, na cartilha de casa. Correr, brincar na roça, ao pequeno nunca lhe era permitido; só criar brincadeiras solo no cabo de chibanca, enxada, e brincadeiras na enxó, na pá, e no enxadeco. E numa tarde rouca surgiu uma morena lânguida, carregada de enxerimentos esguios, trepada em longas pernas, e alcançava o mundo com as canetas dos braços, o tempo desdenhava-lhe as curvas, e um sorriso de flores brancas de mandacaru.
IV – O pai do cangaceiro ao ver aquela morena já adoidescente – carregada de enxerimentos – fê-la tremer as pedras. E tremeu terra seca, espinhos-de-roseta. Estremeceu os alicerces do mundo do pai do cangaceiro ao vê-la nos braços, na boca, nos apertos, agrados, no palpo, nos cheiros, nos grudes, nos verdes olhos do filho Conveniência, outro adoidescente, partiu ao reino da ignorância. O pai cobrira o mundo com diversos vilipêndios; e o sol de longe testemunhou por trás da estaca. A língua do Sol foi petrificada entre muitos dentes. A lânguida morena, escultural e temerosa, naquela não registrada hora do dia, entre a briga de nó de camisa de pai e filho com peixeira em punho, no fura bucho, as camisas deles amarradas, o brilho na lâmina das armas, o corte profundo, o grito, o sangue que tinge o inesperado, o berro que se ouviu da Lua, da Terra se foi arrebatada pelas mãos do alado São Jorge, ficou sem vida na terra o pai do cangaceiro parricida, que era matricida. O santo socorreu a morena lânguida, escultural, da luta entre cangaceiros. Ligeiro, São Jorge foi, pulou da Lua. A morena lânguida – que veio amar o cangaceiro – se foi. Ficou o cangaceiro Conveniência, que vivia a pelejar e a matar, a matar e a pelejar, a pilhar e amedrontar com a pior arma de guerra – o medo – com o qual jurava vingança a São Jorge. O cangaceiro Conveniência perambulou no sertão; a morena lânguida, nua, perambulava pelas montanhas lunares. A morena lânguida, escultural e temerosa, sem conhecer o seu destino, atrás do amor seco qual graveto, um verdadeiro mata-pasto com as suas flores amarelas; ela com o sorriso de flores brancas de mandacaru.
V – Soluçava a catinga, soluçava o matricida, parricida e os seus ais. Esquivava-se. Devolvesse, São Jorge, Maria! pedia. Corria o menino, corria o rapaz descalço sobre xiquexique, sobre mandacaru-de-facho, macambira, pedras, urtigas, facheiro-azul com o facão, pés desnudos, disformes. Devolvesse, São Jorge, a minha Maria! rogava. Cresceu rápido. Cobrou a morena raptada por São Jorge. Maria linda como toda Maria. Devolvesse, São Jorge, Maria! No sertão, o cangaceiro Conveniência era o ribombar dos trovões. Ribombavam os céus lascas terríveis de cima a baixo. O aboio dos céus chovia as suas lágrimas, e da Lua aboiava São Jorge os amores pela morena lânguida, escultural e temerosa. Fez de conta o cangaceiro acordar um verdadeiro arroz-doce. Planejava ir à Lua buscar a morena lânguida, escultural, temerosa. Por eras e eras ecoava a feroz gritaria do Cangaceiro do Rei. Era dele, não era de São Jorge a morena. Na Lua, ria dele São Jorge, que de lá depenava quiri a quem se conhecia por freijó. Podia o santo atormentar a vida do mortal, mesmo sendo o Cangaceiro do Rei? E aos gritos o cangaceiro Conveniência corria o sertão. E rogava a São Jorge que lhe devolvesse a morena lânguida, esguia, de olhos rasgados, de cabeleira preta e sorriso de flores brancas de mandacaru.
VI – O Cangaceiro do Rei tramou a sua vingança. No enfrentamento a São Jorge foi rápido, sagaz. O tempo avançou. Vinha o tempo em formato de cão, vinha o tempo em formato de gato feito tresloucado furacão de vento e chuva; um tempo a choramingar sob o fogo quais doidos mal-amados desde o nascedouro. De todos os alados lajedos, que não jorrava leite, não jorrava fel, o Cangaceiro do Rei tentou alcançar a Lua. As mãos postas a rogarem os seus améns. Casas baixas e grudadas; estrada cinza; fauna e flora escassas; barbeiros ocultos em palhas; os telhados ébanos de fumaça. Era o cenário na vida do cangaceiro. Quase todos ouviram os gritos das massas? Poeira, lama, chuva no sertão. Colheita de mortos em mãos dos caçadores. As forças volantes em luta contra os subgrupos de cangaceiros.
VII – Eram diferentes crianças e berros sem rédeas sobre muitos cascos velozes dos animais; lutava insano fazia o bando do Cangaceiro do Rei, todos armados, em desembesto e sem trégua. O bando não queria encontrar-se com a fome; o bando planejava saquear quais guerreiros. O mato ralo, o pio da coruja, as crias, um galo à procura de alimento num carnaval de orgias na catinga de árvores retorcidas e de espinhos. Natureza arregaçava abortos debaixo do sol; beiços de açude secos onde cantavam os sapos, os mortos. Medos enroscavam-se nos medos e noutros medos quais cipós. Alimentado pela vingança contra São Jorge, o bando de cangaceiros pilhava, matava, corria os sertões; fornicava na roça, na urbe.
VIII – Corria papafigo, o Cangaceiro do Rei. Fasta, onça! advertia cada sertanejo. E as imagens primordiais cortavam o sertão por Alagoas, Pernambuco, Bahia, Ceará, Paraíba, Sergipe, Rio Grande do Norte, e pousava no chapéu de Minas Gerais. Depois as imagens corriam Goiás Velho. Corriam cangaceiros na peleja contra as forças volantes que se formavam nos quartéis, nos grupos a esmo nos municípios sertanejos. Corriam do bioma fantasmas e almas penadas, vinham de longe, de caritós nunca encontrados. Caiporas, montados em dorso de porco, rasgavam o espinhaço da noite. A catinga ouvia só clavinote: tuum! E o nada no zunido do facão cortava a mata. Tropel invadia as margens de rios. Os homicidas agiam contra piabas, mandis. Morria mais um corpo; outros corpos, mata-pasto, o Cangaceiro do Rei, ceifava vidas em nove Estados, queimava cartório, mudava escrituras, inventários, assaltava trens, bancos, incendiava armazéns, casas de ferragem. Nas covas, os defuntos revolvem-se em seus ossos. Sobre os cascos dos animais ligeiros, os cangaceiros a pé, a nado, a cavalo, a jegue. Fasta, onça! ouvia-se por essas plagas. As desgraças sobre as famílias enlutadas, os versos na poesia deram palco e aplausos ao Cangaceiro do Rei, que cavalgou sobre as veredas do sertão e destruiu o mito do herói sertanejo: roubava de pobres, não de quem distribuía dinheiro em festas juninas; nas fazendas, a luta do bando dos mortos mangava dos vivos; os cangaceiros querem das mulheres o pejo.
IX – Os cascos de cavalos, as sandálias de couro cru e as roupas enfrentavam os espinhos na pele moura. Sertão não abraçava o maior deserto do mundo; o sertão era o que havia de peculiar bioma na barba rala, cabelo grande sem corte, as munições, armas, imagens de santos, no chapéu à Napoleão estrelas, patuás, mandingas, preciosas pedras, prata, dinheiro e ouro que corriam ao dedão de mãos, de pés rachados e doloridos. O instinto feroz estava escrito no Cangaceiro do Rei. Por que a ciência queria explicar a santidade no mal? Lua balançava-se no alto do céu, não saía. O Cangaceiro do Rei, com vara de tirar coco-da-baía, batia na Lua e a Lua não caía. Não caía São Jorge, não? E o bando avançando rápido, a avançar num zás. Aos gritos, o Cangaceiro do Rei liderava bandidos na catinga desde o Raso da Catarina. O sítio reverenciava o Cangaceiro do Rei. O bioma, nesta parte do Brasil, tinha o poder de restituir a vida no viver. Quem olhava recém-nascido lia o futuro nas sombras: seria santo ou dessantificado? Não o Cangaceiro do Rei que torturava e ouvia as petições, os gemidos.
X – Mundo amarelo de homens buchudos, morte trocada por vida de qualquer; vinganças tramadas, rixas, orgias. Tudo nada era; depois asas ao vento: anum. As rimas não estavam esgotadas nesta água calma. Guardava uma competição monstruosa dentro da vida. E fora da vida, a sobrevivência de pequenas criaturas com intrigas, cachaça, farinha, azeite e sal, dizia São Jorge ao dragão, quando trouxe Maria, a adoidescente morena lânguida, escultural e temerosa; trouxe-a da Terra e ela foi morar na Lua. A sorte dos desertões brasileiros... Toda sorte era traçada à foice e facão; balas na agulha, e triste fim; não escapavam do fogo saguis; fossem os coiteiros, volantes, crianças ou maruís de balas, o fogo comia debaixo dos angicos, nas locas, nas grutas, beirais, nos promontórios sertanejos o fogo comia de esmola; balas trocadas entre o bando do Cangaceiro do Rei e as forças volantes da Paraíba, Alagoas, Pernambuco e Bahia. A galope, homens armados; cavalo, jumento, alpargatas, vistosos embornais, cartucheiras com 400 cartuchos, punhais. O bando do Cangaceiro do Rei. Os reis bem sentados, os pachorrentos, riam a não mais querer; olhar em seu caramanchão bem cuidado. Eles levantavam a espinhela do pior coitado, e usava nesta maldita empreitada o Cangaceiro do Rei, o seu longa manus. Como os reis eram malvados, cretinos, impiedosos, donos de terras e de gados, jagunços, cabras, capangas! gritava no sertão o Cangaceiro do Rei. Rogava a São Jorge que lhe devolvesse Maria. E o dia em que o santo lhe devolvesse Maria, o Cangaceiro do Rei jurou desistir das armas.
XI – O Cangaceiro do Rei trazia o sertão nas mãos. E o esquisito comprava fiado de bodega em bodega, o bodegueiro anotava em folhas sem pauta. Juravam por seu caráter os safados que lutavam com o Cangaceiro do Rei de cidade-Estado a cidade-Estado. Capoeiras sem sorte dentre mosquitos nas locas, em meio ao grito dos ermos lugares, de estradas e matanças; chefes políticos, pais, filhos, onças; a casta obedecia ao rei; a vingança; dias sombrios, melancólicos destinos sob a mira dos mosquetões; animais indubitáveis, felinos irracionais, lobisomens cujo ganha-pão encontrava-se na tocaia atrás da forquilha de árvore morta.
XII – Todos ávidos por tramarem vinganças; agachados animais de matanças; animais com tramoias vis no reino animal, animais trancafiados em reles covis de tropéis. Aproximava-se outra vez sobre os cascos ligeiros de animais o medo. Eram forças do Estado? Eram cangaceiros do Cangaceiro do Rei. E a derrama fazia dó. Piedade! rogava. Piedade, piedade ao rei. Sangue alheio. Cangaceiros do Rei festejavam, tomavam as ruas de casas, as vilas, os povoados, as aldeias, batiam nas forças, comiam, bebiam, espancaram os velhos, as crianças corriam do Cangaceiro do Rei, as crianças imitavam o Cangaceiro do Rei. Lembranças inapagáveis não paravam em folhetins. A poesia de cordel enfeitava bancas nas feiras com a cara do Cangaceiro do Rei, a estética ímpar do Cangaceiro do Rei. Os insofismáveis, os intoleráveis escreviam romances sobre as investidas à Lua pelo Cangaceiro do Rei. O cinema mostrava o Cangaceiro do Rei. Foi assim que o mundo conheceu o Cangaceiro do Rei.
XIII – Era o tropel que se aproximava sem franquia sobre os cascos dos animais velozes; era o Cangaceiro do Rei a serviço das fazendas que repetiam o ciclo do Período do Terror das Cabeças Cortadas. Vorazes animais soltos, soltas as suas malícias. Piedade, Cangaceiro do Rei! rogava o sertão refém de cangaceiros. Os animais estavam soltos, famintos demais os animais; nem todos aceitavam as carniças. De longe o aboio. Cabra do rei se refazia na lei escrita por riscos. E o poder ocupado por exibidos era cavalgado pelo Cangaceiro do Rei. A pobreza em um campo de riscos, e às mãos dos pobres nem eira nem feira. Não eram poucos apegados às preces, grudados às imagens vendidas nas feiras, nos armazéns de ferragens sob as tochas dos cangaceiros do Cangaceiro do Rei.
XIV – Não eram poucos grudados aos credos. Orar apegado às promessas vãs, aos códigos escritos desde os sumérios. Azar o seu azar, Cangaceiro do Rei! e o som do tropel se ouvia de longe. Pés descalços sobre espinhos de ossos; mãos calejadas; faces enrugava-se no ninho; a esperança morreu; o coveiro a enterrou só, acabrunhado; roubaram o fundo do poço, dissesse não posso... Não posso...! Quem enxergava a lucerna? Piedade, Cangaceiro do Rei! Etíope a luzerna no teto do túnel. Era exigir sobremaneira a um mundo vesgo e míope. Ouviu o tropel inaudito? Piedade, Cangaceiro do Rei! Decerto chegava o Rei a galope em seu corcel. Piedade, Cangaceiro do Rei! Era ele sobre o seu cavalo-do-cão. Vinha, vinha, vinha, aproximava-se, chegava o Cangaceiro do Rei a estas linhas ligeiras trazidas pelo mensageiro escriba nos jornais sobre o maldito Cangaceiro do Rei.
XV – Piedade, Cangaceiro do Rei! Os ricos poucos, felizes; regozijados os seus negócios, bem administrados como queriam os lobisomens nas forquilhas das árvores, vergados, secos, substituía os seus filhos extrínsecos por marimbondos de fogo. Como abolir um tipo assim, Cangaceiro do Rei, se o poder alimentava almas condenadas ao Purgatório, como abolir a cavalgada, os rastros de xobois nutridos desde a pedra angular? Piedade, Cangaceiro do Rei! Cavalgava a atroz maldade, cavalgava a violência desde os remotos caoses, no reino animal, em busca do fogo primitivo faiscado dos meteoros, dos meteoritos marcados. Prometeu, Prometeu! pedia o sertão ao fogo. Piedade. O Cangaceiro do Rei continha os genes do ódio em suas vestes. O Cangaceiro do Rei em luta perpétua contra São Jorge, contra o cavalo, contra o dragão, contra a Lua.
XVI – De uns sobre os outros, piedade, Cangaceiro do Rei! A sorte sufocada por ambições, ódio. E o rancor nasceu adulto, corruto. A vida gregária era tão-só na morte. Piedade, Cangaceiro do Rei! Todos insatisfeitos puseram lixo em bolsos; atacavam-se muito e mutuamente; amontoados cotidianamente em monturos; cercavam-se de cãeschorros, cercavam-se de entulhos. Piedade, Cangaceiro do Rei! Frustrações, covardias, pacotilhas. Perseguidores implacáveis. Piedade, Cangaceiro do Rei! Nas matilhas, imparcialidade apenas mera ficção. Cangaço adentrava camarinhas, antecedia a dor de dente do ente que se bem-queria não sofrer sem chuva regular. O ouro! cantava em coro os cangaceiros no subgrupo do Cangaceiro do Rei. O ouro, o ouro que se serve de conserto ao torto/O ouro, o ouro, só o ouro cínico e frugal/Sem o ouro não há verdade no Carnaval. Corre, cavalga o Cangaceiro do Rei. A lei! cantava em coro os cangaceiros no subgrupo do Cangaceiro do Rei. A lei, a lei esta soberba que impõe respeito/Escuta, e que ultraje a receber numa quenga/Em lugar de doce e alegre cachaça: cicuta.
XVI – A solidariedade agonizante. Piedade, Cangaceiro do Rei! e a solidariedade rogava piedade nos braços magros do povo; ninguém dava um grito. Farsantes, disse o Cangaceiro do Rei, acaso esperavam milagres de nossos deuses antigos enlabirintados nos destinos das gerações? Olhassem antes, farsantes, quadros geométricos e confusas histórias. Farsantes, farsantes, farsantes! esbravejava o Cangaceiro do Rei. As populações fugiam da roça à cidade. As forças à caça do Cangaceiro do Rei. Outros cangaceiros foram mortos, a cabeça cortada, exposta em degraus de quartéis, capelas. Impune e fantasma somente o Cangaceiro do Rei. Piedade, Cangaceiro do Rei! Sou o primeiro e único Cangaceiro do Rei.
XVIII – Desesperos, medos, ais corriam. Acachapantes corriam as semanas, os meses, os anos do Cangaceiro do Rei e da turba de ferozes cangaceiros que pilhavam o sertão. Galopes ceifavam alegrias. Eram os intentos do Cangaceiro do Rei. No tropel que fazia veredas, Joaquim Silvério dos Reis, Judas Iscariotes, Calabar tramavam na escuridão. Devolvesse, São Jorge, devolvesse Maria ao Cangaceiro do Rei! rogava o povo. Devolvesse Maria, São Jorge, e o cangaceiro parava de buscar vingança, de pilhar. Faltava amor ao Cangaceiro do Rei, disse o povo ao santo em forma de oração coordenada assindética. Pedia o sertanejo em período composto justaposto sem ligar o pedido a nenhum conectivo. Ó São Jorge, corremos, pedimos, rogamos, prometemos nunca mais pecar.
XIX – Ei-lo temível escorpião pegajoso a viver com um terço preso à boca; corria às léguas. Piedade, Cangaceiro do Rei! ouviam-se os tropéis do Cangaceiro do Rei e o bando de desordeiros. Eles possuíam a língua bifurcada feito um komodo à beira de córregos. Um daqueles cangaceiros, no bando do Cangaceiro do Rei, meteu-se a engraçado; o seu pecado foi pago com a moeda da morte. A senha do traidor: cabra do rei tirou de único golpe. Tudo pelo vil metal que abalou todo o Império Romano. Sursis, disse a lei, o cangaceiro sequer piscou. Foi separada a cabeça do corpo. Tilintar moedas em ouvidos avarentos corroíam firmamento. Est conditio qua non! disse o Cangaceiro do Rei. O drama humano era um circo romano: tragicômico. Um louco varrido amaria tanto assim? A Maria; estivesse acordado, estivesse dormindo sob os efeitos do amor e choques contínuos. Um amor impossível buscava o Cangaceiro do Rei, cujo furor não respeitava credo, cor, Graça, Ninguém rei de Ítaca. Só o louco varrido de tanto amar foi esquecido. Eu nunca me repito! disse o Cangaceiro do Rei. Eu sou a própria repetição; e eu ando em linha reta. Mentira. Eu ando em círculos, porque morro desde o dia em que nasci. Um parafuso desnudo e uma mulher muda; eternamente despidos e emperrados pela fuligem. O pai em seu monólogo: Vossamecê... vosmecê... Não conheci a tua mãe! Tu foste engendrado só por bel-prazer. Era um ex-cangaceiro idoso, rabugento, magro, seboso, que decidia a sorte do Cangaceiro do Rei. Era comum a mentira entre o povo! disse o Cangaceiro do Rei. Mas os poetas jamais mentem; e a pena é sentenciada pela pena da lei, que só tem pena da pena das aves que voam no sertão.

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