DEUSES DO MANDACARU

Artigo

Por José Malta Fontes Neto - Jornalista MTE/AL 1740

Romance é obra de ficção em prosa, contendo a narração de fatos imaginários ou baseados em histórias reais, cuja trama ou enredo se concentra no conflito entre personagens, até chegar ao previsto ou imprevisto desfecho. (BECHARA, 2011, p.1140)
Aqui estamos novamente para comentar outro romance do professor Clerisvaldo B. Chagas, dos quatro que ele publicou em julho de 2024. Desta feita, DEUSES DO MANDACARU (CBA Editora, 2024). Confesso que assim que recebi os quatro livros, de imediato, li esse, no entanto, sem muitos apontamentos; após nova leitura, fiz as devidas anotações.

Na epígrafe deste artigo, fiz questão de buscar no Dicionário Escolar da Academia Brasileira de Letras – Língua Portuguesa, organizado pelo eminente gramático Evanildo C. Bechara, o que significa a palavra romance, para consubstanciar minha opinião sobre a obra que desejo comentar.

DEUSES DO MANDACARU tem todos os requisitos de um bom romance: boa narrativa, ponto comum ou chave, personagens, trama bem feita e conflitos fantásticos entre os personagens.

Vou tentar comentar sem contar o conteúdo do livro, mas algumas colocações são necessárias.

O autor, como bom romancista, inclui núcleos na trama e vai alternando nesses núcleos os conflitos entre eles.

A obra em tela inicia-se com um aspecto histórico. Cheguei a perguntar ao professor Clerisvaldo sobre essa colocação e ele disse que foi intuição para que o romance ficasse mais atraente.

O fato histórico é a invasão holandesa no Brasil, o que propiciou o objeto central da trama. Veja um trecho logo no início do livro:
A história não registra, todavia, que um grupo da Holanda preferiu desertar de Penedo a ter que voltar a Pernambuco sem lucro nenhum. Não era do alto escalão, mas conhecia a existência de certo baú feito de sola e madeira, pontilhado de metal, em lugar seguro do forte. Só o chefe, o comandante, sabia alguma coisa do conteúdo. Mas que o baú era pesado era. E muito bem pesado, dizia o grupo. “Talvez fosse dinheiro e joias que Maurício de Nassau, julgando Recife em perigo constante, resolvera guardar no Penedo. Ali os holandeses tinham folga” (CHAGAS, 2024, p.16).
Acabo assim citando o objeto em torno do qual a trama se desenvolve: um baú sabe-se lá o que tem dentro.

Feito isso podemos dizer que o autor traz para o nosso sertão esse objeto para que a trama possa se desenvolver, ou seja, o cenário inicia-se em Penedo, via Rio São Francisco, entrando no sertão via nosso querido Ipanema. Observe outro bom trecho:
E assim os homens continuaram subindo o rio durante semanas até que chegaram a um lugar bastante aprazível; deixaram o Ipanema e subiram uma pequena colina cercada de pedregulho, com um enorme lajedo no meio. (CHAGAS, 2024, p.16).
Até aqui observamos o primeiro núcleo, a chegada dos holandeses ao Sertão Alagoano, acompanhados de negros, trazendo o objeto central da trama. Algo acontece e esse grupo tem que abandonar o baú e aqui entra o segundo núcleo da trama: três cangaceiros e o coiteiro Né de Zeca.

Em Santana do Ipanema, especialmente na Rua São Pedro, forma-se um terceiro núcleo: um sapateiro, um boêmio, uma bela jovem e um menino. Junta-se a esse núcleo um professor que se apresenta como arqueólogo e sua filha em busca de objetos raros. Sobre esse núcleo o autor diz:
Em Santana do Ipanema, nas Alagoas, Levino Pedrosa surgiu com vários romeiros que foram pedir a bênção ao padre santo no distante vale do Cariri. Com algumas armas camufladas e pouca verba, resolveu exercer um antigo ofício. Trabalhara com o seu pai o, então, melhor seleiro de onde chegara. Levino alugou pequena casa com cisterna e salão contíguo, na Rua São Pedro. Ali passava o dia confeccionando selas, relhos… Artefatos de couro em geral. (CHAGAS, 2024, p.36)
O romance é recheado de informações importantes sobre os costumes do nosso sertão. Em dado momento, já em andamento a trama e os conflitos acontecendo, ele dá uma pausa para apresentar o processo de uma casa de farinha. Não vou descrever pois é deveras longo, mas deixo a localização: páginas 49-50. Há, no entanto, uma passagem que cabe aqui.
O dono do dinheiro morre de repente, ninguém sabe onde está escondido o cabedal e pronto. Fica lá a riqueza do avaro bem guardada, tipo defunto. Mais ainda, segundo a crendice popular, o miserável lá no outro mundo começa a penar com sua angústia (dizem que enterrar dinheiro é pecado). Então sua alma arrependida vem procurar um indivíduo para oferecer o que com tanto gosto guardara quando era vivo. Ainda, segundo o povo, o privilegiado recebe o aviso em sonhos. Mas acontece que tem que ir à meia-noite desenterrar a riqueza. Falam que o corajoso que aceitar a parada tem que ir sozinho, acender velas e cavar o local do negócio. Enquanto trabalha é atentado por espíritos malignos durante todo o ato. Caso o beneficiado conte o sonho a alguém. Antes de arrancar a botija, no local só encontrará besouros e cinzas. É isso que se conta a respeito de botijas no Sertão nordestino, tudo por uma boca só. (CHAGAS, 2024, p.59)
Quanto ao núcleo formado pelos cangaceiros e Né de Zeca, devo dizer que o autor colocou uma pitada de expertise nesse coiteiro, na sua dinâmica para se apoderar do possível tesouro.

Né de Zeca, com suas artimanhas, escapou de grandes apuros de forma espetacular. Numa dessas escapadas, depois de ser resgatado de uma cadeia em Maceió, em que se encontrava preso sob a acusação de ser coiteiro de Lampião — recomendo a leitura com atenção dos capítulos 6 a 8, p.69-92 —, fugiu dos seus raptores foi parar na Serra do Gugi, o ponto mais elevado de Santana do Ipanema e quase esquecido na história e geografia de nossa terra. Mais uma vez entra e expertise do romancista em narrar algo interessante. Se possível atentes aos detalhes dessa passagem:
Era uma sexta-feira, não havia luar. Uma escuridão total invadia as alturas da serra do Gugi. Né de Zeca, fazendo às vezes de corujão, arrastou as alpercatas de rabicho pelos caminhos estreitos da serra. Conduzia apenas uma pistola e um punhal, cedidos por Olavo. Só temia a qualquer momento, enfrentar um guará choco ou uma raposa doida, naquelas andanças cheias de peripécias. Discernia com precisão os ruídos vindos pela noite, graças aos ouvidos afiadíssimos habituados às sutilezas do campo. No topo da elevação, um galo velhaco esquentou as asas e lançou o seu canto longo de vigilância. Deu um susto tremendo no fazendeiro. Outros reis de penas responderam ao canto elástico de lugares distantes que não se podiam precisar. No terreiro de uma casa, os latidos insistentes de um cachorro que despertara com seus passos, levaram o homem a apertar a coronha da pistola. Arrepiou-se, mas passou e não foi agredido. Adiante ouviu uma pessoa gemendo como se estivesse ali para fazer medo. Mas Né de Zeca sabe que os gemidos são oriundos do atrito entre dois galhos de juazeiro, árvore medonha para esse tipo de coisas. O farfalhar do morcego ou o silvar da cobra, faziam-no apressar os passos capengas no declive escuro. (CHAGAS, 2024, p.105)
Nesse ponto da trama entra em cena o quarto núcleo: uma matriarca com dois filhos arruaceiros e um colega, que em busca de mais uma bagunça entra nessa trama. Ufa, o negócio começou a esquentar.

Uma boa trama não podia faltar o rapto de uma donzela e a busca do seu pai pela jovem e seu raptor, criando assim mais um núcleo.

Pois bem, chegamos ao meio da obra e os núcleos começam a interagir entre eles para o desfecho da trama, e para isso, a ambientalidade dos cenários é perfeita. Veja como o professor Clerisvaldo descreve os locais dos conflitos:
A viagem prosseguia sem obstáculos. As margens do caminho mostravam o velame cheiroso. Marmeleiro, coroa-de-frade, macambira, faveleira, urtiga, cobriam o chão sertanejo. De quando em vez passavam sob cedros compridos, pretas baraúnas, agrupamentos de juremas. Ali um riacho seco, acolá uma carniça. Insetos zumbiam dentro do mato servindo de petisco aos passarinhos de penas coloridas. No topo pontiagudo de uma estaca, um bem-te-vi parecia dizer no seu invariável canto: “Tsiu!… Bem que vi! Bem que vi!” (CHAGAS, 2024, p.137).

[…] uma tapera de barro batido e palha de oricuri. O vermelho dominava o solo pelo terreiro limpo, onde havia um pomar carregado de frutos. No portal do alpendre, dois cortiços pendurados complementavam o oásis […] (CHAGAS, 2024, p.139).
Essa descrição faz parte de uma confabulação num conluio por integrantes de um determinado núcleo, incomodados com a busca.

Pronto, aqui fiz o detalhamento dos cenários e devo apenas acrescentar que como a obra começou, depois de tantos encontros entre os núcleos e os diversos conflitos, todos com o objetivo da posse do baú, inclusive com as peripécias de Né de Zeca, à la João Grilo do Ariano Suassuna, chega-se ao ápice da trama exatamente na margem do rio da integração Nacional, o nosso Velho Chico. Todos os núcleos se encontram, mortes acontecem e a trama termina. Desejaria muito continuar narrando o que aconteceu na fase final do livro, mas ficaria muito extenso. O final fica tipo Alfred Hitchcock. Com quem fica o baú? Quem morreu? Era uma botija? Aconteceu a maldição?

E para concluir esse meu artigo devo dizer que ao longo do livro o romancista apresenta ditados populares que fazem parte do linguajar nordestino, alguns bastante conhecidos, como: Um dia é da caça, outro do caçador. Estava no mato sem cachorro… Com os porcos na roça. Esses são conhecidos, vejam agora outros:
– Quem tem pouca pólvora não atira em anum.
– Dinheiro não fala.
– O bom Cabrito não berra.
– Quem se abaixa demais o cu aparece.
– Quem dá rabo a nambu fica suru.
– Liso que nem buraco de cobra.
– Deite o cabelo
– Do saco perdido, a embira… Dentre outros.

Leia o romance e confira.

Sigo agora para a leitura do romance OURO DAS ABELHAS.


REFERÊNCIAS:

BECHARA, Evanildo C. Dicionário Escolar da Academia Brasileira de Letras – Língua Portuguesa, 3ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2011.

CHAGAS, Clerisvaldo B. Deuses do Mandacaru. Maceió: CBA, 2024.

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