A vida tinha pressa. Não se vivia muito. Os dias cessavam com a morte.
O Panema socorria os sedentos. Aos famintos dava-lhes o peixe, ajudava na construção das moradias com água, pedra, areia. O Panema assegurava a roupa lavada, e permitia aos aguadeiros o seu sustento ao comercializarem a água do rio ao consumo.
Fumaça, na galeria dos esquizofrênicos, corria atrás de Farinha. Montava-se em seu cachaço nas matas ciliares ameaçadas de serem devastadas por Macambúzio.
Bacurau, na disputa de vaga na galeria em que Fumaça figurava, bebia e fumava liamba no Panema. E cantava de galo, transformava-se em fogo e corria bicho. Bacurau não saía de casa sem o seu guarda-chuva debaixo do braço. Era o maior colecionador de gritos, na cidade; descia as ladeiras aos berros, e subia aos lamentos que acordavam Santana.
Bentivi arrecadava tributos dos desocupados com o igual convencimento usado na feira, cobrado das feirantes de temperos, dos feirantes de milho, feijão farinha e artigos de couro. No Panema, Bentivi cobrava tributos municipais dos que perseguiam equinos, suínos, caprinos.
O coletor de impostos, Bentivi, sonhava em coletar tributos estaduais. Nas casas, ele tinha pressa com anúncios a plenos pulmões:
Estão com impostos atrasados! batia palmas. Nunca mais chame Bentivi de bajulador.
Suplente de coletor de impostos! alguém berrava, e se escondia. Suplente de coletor de impostos! repetia o provocador.
Atacava violentamente Bentivi quem fosse, em sua avaliação, o suspeito das provocações. Armado com pedras, paus, Bentivi perseguia quem ele julgava ser o provocador.
Suplente de coletor de impostos! seguiam os gritos. Suplente! outro berro aparecia em lugar oposto ao primeiro.
Em Maceió, o dia era de formigas. Andorinhas agitavam as folhas e galhos observavam o voo das andorinhas em torno das torres.
Explodiram gritos próximos à lagoa Manguaba. Ali perto era a morada do Ten. Opróprio Fazregra, que molhava o pragmatismo numa garrafa e mastigava a sua transferência de posto.
Por tanto odiar a mulher por ser mulher, um dia antes da transferência de Maceió a Santana, Opróprio Fazregra outra vez a agrediu, e repetiu a agressão violentamente. Numa explosão de som e fúria seguiram as agressões.
Agrediu a mulher por quem jurou no altar que a amava e a respeitava, era e seria eternamente fiel, daria todo o seu apoio quer no bom quer no mau dia em suas vidas conjugais, a protegeria caso adoecesse, e seria feliz com a sua saúde na carne e na alma, e lutaria contra os diabos, e evitaria que a morte a levasse. Após esbofeteá-la, o tenente gritou que os seiscentos diabos a levassem.
Deixou a sua casa àquela noite com batidas de portas, e chutou cadeiras, e quebrou louças, e derrubou quadros nas paredes. Entregou-se à mesa de jogo entre mulheres, cartas, moedas, bebidas no outro lado da lagoa Mundaú.
Mastigava Opróprio Fazregra a transferência do litoral ao sertão à caça de bandoleiros. Amigos o levaram da mesa à Xepa; o ônibus partiu de Maceió a Santana.
Ao vencer longa, ensolarada, poeirenta distância entre Maceió e Santana, Opróprio Fazregra estava curado. Com ele alforjes, armas, munição.
Viu a cidade, viu Santana. Longe de casa, viu nos rostos femininos o rosto da mulher que ficou cercada por filhos. E chorou.
Em Santana, a freira Prequência, irmã do padre Velho, auxiliava o irmão com a liturgia, como se antecedesse ao existente. Motivava o coro a acompanhar “Kyrie, Eleison”, na voz do irmão.
Patacão, o faz-tudo, ajudava precariamente nos ritos da celebração com o dobrar de sinos. O faz-tudo observava o padre com toda a reverência possível.
Diante da praça central, na cidade, ouvia-se o vozerio em latim do padre Velho que se propagava no templo de Santana. O espaço ocupado por homens pios e olhos cerrados, idosos de joelhos e petitórios, mulheres com véu, crianças em silêncio e mãos postas.
A realidade era uma só, disse o padre, e mesmo que ela desmentisse as crendices com a clareza do sol no sertão, ainda se encontravam pessoas que queriam demonstrar coerência onde só existia o que era digno de zombarias e escárnios.
A dissonância cognitiva (que ainda não havia devidamente recebido este status, no campo científico, disse o padre Velho como se rompesse o espaço-tempo) ignorava o que não se queria enxergar. Amados filhos, quem navegava neste mar de cognição dissonante se assemelhava a viver em múltiplas cidades, umas dentro das outras, sem enxergá-las nem as perceber. Dissonante cognitivo era arremessado e se aprisionava no espaço mínimo de sua realidade.
Em outra parte, atrás da capela em cujos degraus cabeças eram expostas, cochilava um prédio sisudo. Janelões preservavam a fachada.
Adiante, a capela seca e alta como se quisesse alcançar o céu. No flanco, o quartel largo, robusto, guarnecido por grossas paredes com altos janelões.
Linhas longas em martelo agalopado, ondulantes, assimétricas. A fachada fac-símile das linhas sinuosas da vegetação agreste e dos bichos na caatinga.
Fantasiava-se o prédio na chegada norte da cidade com formas esféricas áridas, abstratas. As formas lembravam altares rococós.
O que havia no estômago desse lugar? quis saber o tenente ao descer da Xepa que o trouxe de Maceió.
Riscado por janelões, na frente da casa dos pais de Veementemente, o quartel. Imponente, sério nas linhas arquitetônicas que lembravam a criatividade dos pedreiros locais.
O Ten. Opróprio Fazregra veio a Santana por indicação do pecuarista Cel. Dr. Vil. Nesta época, o padrinho do Ten. Opróprio Fazregra, Cel. Dr. Vil, irmão do Cel. Etc., era mais facilmente encontrado no Bebedouro, bairro no qual possuía um casarão na principal rua, ao lado dos luares na lagoa Mundaú.
Veementemente vivia na casa dos pais. Ia à porta da rua, voltava à dos fundos. Dia e noite, Veementemente reclamava das mudanças climáticas, do fim da mata ciliar no Panema, leito seco, da falta d'água em casa, do preço do gás e das velas de sebo fabricadas por Bé do Algodão.
Quem anda de casa em casa, dizia Veementemente, fala besteira. Volta à sua casa, procura um frasco de remédio, e come, e bebe, e se embriaga, e se arrepende de ter ido à farmácia de S. Polissíndeto. Vive sem sossego. Sai. Outra vez, volta. Tem vontade nele e nos outros de se matar. Pergunta-se por que tanto desassossego, mamãe, por que, papai. A mãe não sabe, o pai ignora. E o padre desconhece os efeitos colaterais do remédio, e também se o remédio é remédio ou placebo.
Sem ter compromissos, Veementemente pendurado na porta de casa. Foi assim que Falácia o conheceu.
Falácia era comerciante que iniciou a vida com um pequeno armazém de secos e molhados, além dum modesto abatedouro onde abatia bovinos, caprinos e muares; evitava os suínos por não gostar do cheiro forte e das moscas. Todas as manhãs, Falácia passava na frente de Veementemente.
Veio em Falácia completo desprezo por Veementemente. Vê-lo na janela daquela maneira, avistar Veementemente de longe em calção, sem camisa, pés descalços, chapéu na cabeça, olhava quem subia a ladeira, olhava quem descia, coisas assim incomodavam a comerciante que não largava o batente de domingo a domingo com regras espartanas sobre os empregados.
Se alguém falhasse um dia no armazém de Falácia era substituído. A mão de obra era abundante. Ela não aceitava ver ninguém parado.
Como alguém poderia viver assim? comentou Falácia uma vez com a sua melhor amiga, outro dia levou a mesma pergunta à sua mãe, outra vez ao seu pai.
Ninguém parecia se importar com Veementemente. E quando chovia em Santana, Veementemente molhava-se, e se livrava das manchas de grude nos braços e nas pernas, dizia Falácia às amigas.
Outro dia, Falácia puxou conversa com Veementemente. E riu. Gostou. Eles riram de coisas sem graça. Ela passou a frequentar a calçada da casa onde morava o seu novo amigo.
Não demorou, Santana soube que correram proclamas. E Falácia estava casada com Veementemente.
Em Santana, as periodistas Próclise, Mesóclise e Ênclise escreviam sobre os episódios do litoral ao sertão. Na cidade, eram correspondentes, escreviam reportagens aos jornais do Brasil e do mundo.
Mesóclise, Ênclise, Próclise gostaram de Santana pela culinária. Divertia-se Ênclise com a cultura sertaneja. Interessou-se Próclise pelos cangaceiros, as tropas volantes.
Dir-me-ão que a nossa vida aqui, disse Mesóclise à Próclise e Ênclise, foi por isso e aquilo. Dir-lhes-ei que o meu tempo na cidade será enquanto concluo uma reportagem com o Ten. Opróprio Fazregra.
No solar do Cel. Dr. Cicrano, o padre Velho disse a Polissíndeto:
O que Tudão sabia fazer era criar dificuldade e vender facilidades!
Na conversa do rábula Tudão, disse Polissíndeto ao padre, era fácil livrar Assíduo das grades sujas e fedorentas. E o rábula retornou ao Rio assim que soube que Assíduo fugiu da cadeia.
Quando questionado, argumentou com o seu contratante, Cel. Dr. Cicrano, desconhecer na prática jurídica qual o remédio no caso da culpabilidade penal de Assíduo.
Foi encontrado na sala cedida no solar a Tudão, papéis, penas e tintas, rascunhos, estudos, pesquisas, livros, artigos, documentos. Lia-se na letra dele petição inicial, petição inicial não, peça vestibular; peça vestibular não, peça autoral; peça autoral não, peça prefacial; peça prefacial não, peça preambular; peça preambular não, peça exordial; peça exordial não, peça isagógica; peça isagógica não, peça introdutória; peça introdutória não, peça petitória; peça petitória não, peça inaugural; peça inaugural não, peça pórtica; peça pórtica não, peça de ingresso... Ah! Eh! Ih! Oh! Uh!..
Havia meses que o coronel não aparecia no solar. Alguns diziam que ele foi reorganizar o Clube Patriarcado, falavam que foi acometido por grave doença, havia o comentário de alguns de que tomou um navio rumo ao centro da terra, e foram desmentidos por aqueles que asseguraram ter ido numa viagem em volta ao mundo. Sequer o Cel. Dr. Cicrano tomou conhecimento de um novo filho ilegítimo com a professora Anistia.
O que trazia de novidade, senhor padre? quis saber Polissíndeto.
Carta do coronel que indicava Conveniência como folhetinista regular no semanário! foi a resposta do padre Velho a Polissíndeto, no fechamento da edição do jornal O Liberdade de Expressão.
Conveniência estreou com o texto que enaltece o avô do Cel. Dr. Cicrano, primo do Dr. Sicrano, que subscreveu a Constituição de 1891, e esteve à frente da enérgica campanha sobre a ruína da economia caso a Princesa, por quem tinha interesse, assinasse.
Conveniência assinava as suas publicações com o pseudônimo Falácia. De repente, aumentou o número de leitores locais e assinantes estrangeiros.
Nem Homero em sua escritura mais exitosa poderia ir tão longe! foi assim que o padre Velho anunciou a Polissíndeto ao referir-se ao semanário como se fosse autor das descobertas lidas nas tabuletas de argila sumérias.
Não demorou, surgiram casas residenciais com arquitetura que se padronizava de acordo com a rua. Havia rua na qual as casas avançaram sobre as calçadas, outras tiveram um pequeno recuo.
Casas de morada se misturavam a um tipo de comércio. Misturavam-se morada e carpintaria, morada e pensionato, morada e bodega, morada e bar, morada e barbearia, morada e trabalho na feitura de artigos de couro a exemplo de alforjes e celas.
Acalentava Mô ser proprietário de loja de tecidos. Foi ao Recife tantas vezes, Maceió, Salvador, e voltou ao Recife, trouxe novidades a Santana. Inaugurou, finalmente, a loja. Só as moscas vieram à inauguração.
O acalento de Mô sofreu a quebra no primeiro ano de comércio. Dois meses depois da inauguração abriu concordata, nos seis seguintes foi a vez da falência definitiva.
As casas, em geral eram estreitas na largura, ocupavam a longa extensão do terreno. Usavam-se nas habitações cores vivas que, embora transitem entre as primárias, as secundárias e terciárias, abusavam de cores vermelho-alaranjado, azul-arroxeado, azul-esverdeado, azul-violeta, amarelo-esverdeado.
A casa da costureira Elipse, sobrinha do padre Velho, tinha cor de casca de cebola. Distantes daquelas, sob a resistência de cipós de marmeleiro e barro molhado, outras casas nasceram.
Todo sertanejo humano é peninsular! costumava dizer a costureira Elipse. Do jeitinho que amanhece, anoitece! e fechou as folhas na janela, e cerrou as portas do comércio.
Saiu a professora Elipse corredor afora com os seus resmungos sobre a professora Anistia que quis ser modista e não foi. Havia ela proposto o seu sonho de modista, e acabou nos palpos do Cel. Dr. Cicrano.
A costureira Elipse, antes de fechar as portas, viu Anistia no alto do solar próxima às telhas. Tinha no peito outro bastardinho do coronel doutor.
Passantes nas calçadas acenavam à alfabetizadora e mãe solteira Anistia com o filhinho no colo a quem lhe mostrava o alvoroço das andorinhas, as primeiras palavras. Via os passantes lá embaixo e correspondia com acenos e sorrisos de bem-querer.
Despertava no filhinho o cheiro da noite que cedia à escuridão. Logo se derramavam estrelas numa chuva quão pedacinhos de giz, exceto a Lua que se mantinha no alto de seu papel de planeta secundário.
Bé do Algodão, pioneiro na indústria do município, motivava Santana. O padre Velho lembrava ao ideário empreendedor o quanto foi amigo de seus falecidos pais queimados vivos em casa, lamentou o trágico incêndio que reduziu a pó os sonhos de D. Xântipe, mãe de Bé do Algodão, e de seu pai marceneiro de muletas, como era conhecido na cidade.
Insistia o padre Velho a Bé do Algodão com as reformas, não apenas nas iniciativas que revitalizaram a economia no município, mas principalmente as reformas no templo de Santana. Apresentava-lhe preço de telhados novos, nova pintura, bancos novos, novas estátuas, nichos, mais espaço aos minimus liberos de Santana.
Quem sabe, padre! respondia Bé do Algodão. Talvez amanhã!
A vida tem pressa, meu filho! respondia-lhe o padre Velho.
Vamos estudar, padre! dava-lhe esperança. Vamos pensar.
O padre Velho agradecia a Bé do Algodão, fazia recomendações à alma do empresário, oferecia-lhe sobejo de espaço no semanário O Liberdade de Expressão.
Antes de fechar a edição do jornal, pelo acúmulo de atividades do padre, do dono de farmácia Polissíndeto, que se dividia entre o comércio de remédios, o jornal, a família, as benditas tarefas de terra por cultivar nas proximidades de Santana que viviam ao léu sob as ameaças de cangaceiros, apesar da dedicação exclusiva do jornalista pernambucano Lítotes, contratado no Recife e trazido à cidade no automóvel do Dr. Cicrano, antes de ser Cel. Dr. Cicrano, encerrava-se a edição do jornal com calhaus, matérias requentadas, invencionices, às vezes até com o bizarro. O espanto, era o argumento do padre aos colegas periodistas, alimenta os jornais.
Opróprio Fazregra contaminado com os hábitos de Santana com a leitura de jornais, livros na língua pátria e em língua estrangeira, a escrita. Meteu-se em penas, papéis e tintas.
Negligenciou o trabalho, acordava cedo se comparado à rotina no quartel, dormia mais tarde do que o hábito herdado desde a adolescência. Vivia grudado aos jornais, livros e de tanto ler envergonharia até o próprio Alonso Quijano.
O diário como parte da pesquisa de dados primários de Próclise, Mesóclise e Ênclise:
SEGUNDA-FEIRA:
Trouxe preso, machucado, o cangaceiro Aurora. Perguntei se não queria deixar aquela vida. Disse-me que não saía de negócio onde havia lucro.
TERÇA-FEIRA:
Qual era a guerra da vez? O Jornal do Ser Tão abria a manchete sobre a luta entre volantes e cangaceiros.
QUINTA-FEIRA:
Acordava na luta, dormia ameaçado por ela. A paz era invenção humana.
SEXTA-FEIRA:
Volante reunia 20, 24 camaradas dispostos, ganhava a caatinga. Havia bandido em toda a parte; agora eram os cangaceiros.
DOMINGO:
Eu conversei hoje com o padre. Ele me comparou a um centurião romano.
SEGUNDA-FEIRA:
Quanto menos bebia mais me sentia pequeno.
QUINTA-FEIRA:
O padrinho assegurou-me farda e divisas.
SEXTA-FEIRA:
Fechei à bala. Distribui tapas; não suportava desaforos nem me arrependia do que fiz porque não era cabra de peia. Não dava liberdade de fazer comentários sobre os documentos. E o que teve de choro rasgado, e o que teve de correria, e o que teve de fuga, gente melada de sangue. Eram gritos – valei-me! – como se o mundo fosse morrer.
SÁBADO:
Cangaceiros atacavam em pequenos grupos numa guerrilha infernal. No mesmo dia eram vistos nas vilas a 50 léguas daqui; outros grupos atacavam os povoados próximos.
DOMINGO:
Duas semanas atrás de cangaceiros. Logo encontrei quatro, cinco que rasgavam a terra num pé de umbu; pela secura, eles queriam água. Fiz o sinal da cruz. Na luta, fiz pontaria e atirei. Pau! Ouvi gritos do que sentou o cabelo. Ficasse aí, peste do diabo, logo um facão acertava o troféu.
SEGUNDA-FEIRA:
Hoje, a volante encontrou o caçador destas pestes, Zé das Cruzes, amarrado na jurema. Todo pinicado, rasgado de cima abaixo, morto.
TERÇA-FEIRA:
Cangaceiros fugiram de dois cercos em Água Branca. Por um triz, uma não escapuliu; foi; acertada no quengo.
QUINTA-FEIRA:
Os sertanejos faziam promessas, pedidos às nuvens por chuva. Aonde fossem as forças, voltavam secas de fome.
SEXTA-FEIRA:
Uma hora, eu largava tudo e voltava a Maceió.
SEGUNDA-FEIRA:
Saí outra vez. Ainda não ouvi o canto do galo. O céu limpo. Não vi cair nenhuma estrela. Adiante, no batismo de fogo quase perdi a vida.
SEGUNDA-FEIRA:
Volante fez o primeiro percurso em lombo de cavalo; os cavalos foram deixados num lugar onde outra volante de Santana encontrou-se com outra força e foram lutar. Ontem, quase perdi um braço.
TERÇA-FEIRA:
Esse foi o dia reunido com os camaradas, na buchada de bode. Bebi até cair. A casa de taipa abrigava o coiteiro, aquele homem novo, magro, chapéu de palha na mão, sem fio de barba, os olhos fundos, sentado nos calcanhares, rodeado de filhos.
QUARTA-FEIRA (fim da pesquisa no diário do tenente que liderava uma tropa volante):
Foi apresentada à cangaceira Raio de Sol a fotografia do bando, que saiu no Jornal do Ser Tão domingo passado. Raio de Sol identificou os que apareciam nos retratos com ares de gracejos e valentias. Essa aqui, ela disse à volante, era Alvorecer, mulher do cangaceiro Urupema; essa miúda era Sorriso, mulher do cangaceiro, Maracajá; essa magrinha era Bordadeira, mulher do cangaceiro, Ouro; Sonho, do cangaceiro Peritiba; Ui, do cangaceiro Canelinha; Santinha, do cangaceiro Palma Sola; Vida, mulher do cangaceiro Modelo; Nuvens, mulher do cangaceiro Itapema; essa aqui, que só aparecia o chapéu, as sobrancelhas, os olhos e um pedaço da venta, foi mulher de Lajeado, depois ficou nas mãos do cangaceiro Cocal; Embira, mulher do cangaceiro Timbó; Amanhecer, mulher do cangaceiro Aurora; Ligeira era a mulher do cangaceiro Ermo, esse aqui, sim, senhor, esse de bigode fino; Grito era a mulher do cangaceiro Jupiá; Saudade, mulher do cangaceiro Paial; Olhar Estrelas, mulher do cangaceiro Gravatal; esse aqui era o irmão de Gravatal, cangaceiro Garopava, ele não tinha mulher porque dizia que mulher atrapalhava na luta com volantes e o homem não devia deitar-se antes da luta; essa outra era Máquina, a única que sabia atirar e gostava de fazer furo, era mulher do cangaceiro Meleiro; mocinha com essa cara de menina era nova, não era de meu tempo, entrou quando eu saí. Essa eu conhecia desde que cheguei, ela era Mariá da Tábua, mulher do cangaceiro Campo Erê; Luz da Manhã, essa menina era a terceira mulher de Areia Branca; Sorte, a mulher do cangaceiro Pescaria; Ximbra, a mulher do cangaceiro Xaxim; Suspiro, mulher do cangaceiro Menino; e Açúcar, a mulher do cangaceiro Luzerna; Fruto de Palma, a mulher do cangaceiro Ipuaçu; Abelha, mulher do cangaceiro Arvoredo; Flor de Mandacaru, mulher do cangaceiro Vargeão, pai do cangaceiro Vargem, que não tinha mulher pois era menino de recado; Mel de Rapadura, mulher do cangaceiro Tigroso; esse aqui era o cangaceiro Porã, irmão de nosso mestre e senhor, que orientava o bando aonde ir, onde pilhar, e quando era hora de ficar na casa de coiteiro; essa aqui era a amiga Alvorada, mulher de Urubici, meu primo; essa era uma prima minha, no bando recebeu o nome de Planeta, mulher do cangaceiro Penha; essa cangaceira aqui era Preciosa, mulher de Trombudo; esses aqui não possuíam mulher, esse era Papanduva, e esse vara de virar tripa Rodeio. E aqui o cangaceiro Maçaranduba, aqui o cangaceiro Sombrio, esse era o cangaceiro Maravilha. Cangaceiro com um fuzil no colo, ao lado dele Palhoça; e aqui era o cangaceiro Major, e esse outro era o Quilombo, cabra sem conserto.
Próclise, Mesóclise e Ênclise envelheceram em Santana.
Moças velhas, arranchadas em nossa casa! desabafou Falácia ao marido.
Melhor eram desistir dos espelhos?
Entraram no caritó, Veementemente. Percebia? Meteram-se em coisa de cangaceiros e ignoraram a vida de moças direitas.
Conhecer espelho eu não conhecia! disse Veementemente à mulher. Ouvi haver nas feiras, a preço de banana. Mamãe dizia que o espelho era caro; papai que os espelhos davam azar.
Nunca arranjaram marido! reclamou com um muxoxo de reprovação.
Próclise, Mesóclise e Ênclise eram periodistas, Falácia.
Essa gente ficou aqui uma semana, duas, um mês, dois. Agora, iam anos agregadas.
Em Santana, o Panema com água. Levava a vida dos desavisados. Ficava a família nas margens, soltava vela acesa em quenga, rezava, fazia orações com tentativas de alcançar a quenga, onde a vela se equilibrava no lugar provável em que repousasse a morte em garranchos, em toras, em maranhões de galhos no fundo presos às pedras.
As águas velozes levavam a vida dos afoitos, no Panema. E, dias depois, o defunto adúltero encontrado, o defuntanjo achado em loca de pedra.
Comentários