HOMO NARRATOR, O SENHOR DAS NARRATIVAS

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

E era setembro de completo espanto. Foi em um sábado de feira em Santana.
Diacrônico, à sombra do abacateiro que nasceu no sovaco de uma rua da feira, visitava Santana onde, ovacionado, cantava, tocava rabeca e dizia trechos de estórias extraordinárias. Foi-lhe dado o epíteto de homo narrator.
No próximo fim de semana, o semanário O Liberdade de Expressão traria na capa a manchete Homo Narrator visitava Santana. O que era epíteto, padre? A pergunta da costureira Elipse ficou sem resposta. Só não lhe perguntava o que era homo narrator; padre, porque desconfiava ser coisa de quem falava latim.
Havia quem dissesse na feira que o rabequeiro foi um grande tocador de gado que, desiludido, abandonou a profissão. Alguns chegaram a dizer que o sapiens era homo em sua arte.
Nem toda a cidade possuía o que Santana possuía. Nem sempre Santana foi o que se tornou. Santana preservava a família e, por amor à família, os filhos legítimos e adotivos amavam a cidade por completo. Diacrônico voltou a Santana porque a amava.
A cidade, neste princípio de século, inflacionou as casas de comércio. Fez no miolo circunscrito ao templo de Santana prédios de três pisos.
No processo social, os filhos ignoraram as referências dos pais, ignoraram o amor à cidade, que se foi, e perdeu o significado. Vivia a cidade no limiar do amor à família e, por consequência, o amor à cidade, e a perda do simbolismo à importância da família, reconheceu o homo narrator, segundo a reportagem que o padre Velho escreveria a respeito do inusitado visitante.
Diacrônico de quando em vez aparecia e desaparecia. E quando voltava a Santana, ele dizia notar que poucos se lembravam, porque o esquecimento avançou sobre a lembrança das ruas, das praças e dos bairros, das festas, das datas, da política e do mercado, das lojas e dos nomes das pessoas.
Na parte baixa da cidade, Perífrase, empresário de barracos nas margens do Panema, que os alugava pela hora da morte e se não pagasse em dia ficava sem os olhos, foi regiamente cumprimentado por Diacrônico. Foi cumprimentado em seguida por D. Sintagma, a doceira por encomenda que vendia fiado.
Dentuço não reconheceu Diacrônico. Dentuço, mecânico de bicicleta que veio do Recife pelo espírito samaritano de Bé do Algodão, perdeu o braço e uma perna numa briga de rua. Ficou esquecido depois da briga.
Na feira do sábado, que tomava as ruas para além do templo de Santana, Paráfrase, a enfermeira desempregada, que trabalhava consertando cadeiras e mesas bambas das pernas, achou Diacrônico familiar. Não lhe dirigiu a palavra, porque não tinha certeza de que seria correspondida.
Diacrônico seguiu nas passagens estreitas entre as barracas de feirantes. Ãglória, uma lavadeira que voltou do Rio falando francês e abriu uma escola na parte larga do rio, fez breve cumprimento ao inclinar a cabeça a Diacrônico.
Circunlóquio, que vivia atolado no comércio de ferragem de S. Vioângulo, passou por Diacrônico. Perguntava-se quem poderia ser, sem respostas.
S. Vioângulo, que mantinha amigos com quem dividia conversas, foi quem disse a Circunlóquio que Diacrônico era um desses e não daqueles. Circunlóquio tirou o chapéu em respeito a Diacrônico, e coçou a cabeça.
Esta expressão – homo narrator – não sairia da cabeça de Circunlóquio, não deixaria a cabeça do povo, andaria nas ruas de Santana, chegaria à cabeça do padre Velho, e homo narrator terminaria na primeira página, e, nas semanas vindouras, em vários artigos do semanário O Liberdade de Expressão.
Diatópica, que comercializava plantas alucinógenas, passou na feira por Diacrônico, abriu os braços e sorriu com o melhor dos seus sorrisos. Assíncrona, funcionária pública, mesmo sem saber quem era Diacrônico, por breve instante lhe segurou no braço e disse:
O senhor já olhou bem uma dessas pessoas aqui na feira de Santana que escolhia laranjas só porque queria provar o seu amor à sua mulher? Apertava as laranjas. Conversava com pessoas ao seu lado. Ria. Falava sobre política, sobre futebol.
Diacrônico, admirado, olhava o rosto de Assíncrona. E ela prosseguiu:
Um simples gesto, senhor. O gesto de escolher laranjas na feira provava o tamanho da paixão.
Num destino de rua que subia ladeira acima, atrás do templo de Santana, o casal que vivia na cidade desde a época em que Diacrônico era menino, de longe o identificou. O casal ergueu o braço e acenava. Mulher e marido, sentados em preguiçosas de palhinha na frente de casa, davam fé da vida alheia.
A feira na cidade era um alvoroço. Na varanda do casarão, o padre Velho e o Dr. Cicrano no bate-papo ao lado do riacho tributário do Panema.
As bocas foram adocicadas com a alfabetização dos que juntavam letras e palavras, liam aos tropeços nas interpretações dos escritos, das narrativas nas quais corriam o dedo sobre as colunas no jornal. E os olhos do povo adornados pela vaidade dos que exibiam O Liberdade de Expressão debaixo do braço.
Nasci com o poder de mando e não com a submissão de ser mandado, o Dr. Cicrano disse ao padre Velho, que acatou a sua máxima. O prestígio do Dr. Sicrano, disse o primo Dr. Cicrano ao padre, doravante dependerá das notícias deste nosso semanário O Liberdade de Expressão. Este dará as cartas ao primo Dr. Sicrano, e o padre Velho acatou isto também.
Na feira, por onde andava Diacrônico, o coveiro Distópico, que substituiu o trabalho do coveiro Mamado, falecido em agosto, passou por Diacrônico e tirou o chapéu. Diacrônico retribuiu o cumprimento ao coveiro Distópico ao tocar na aba do próprio chapéu com as pontas dos dedos.
O homo narrator, que não largava o chapéu nem no interior do templo de Santana, corrigiu o vinco e acertou a copa. Seguiu em frente, ladeira abaixo.
Chapéu e bigode eram modas em Santana, antes de surgir O Liberdade de Expressão. Com este semanário, a moda ganhou o item de ter sob o braço um exemplar do jornal gestado no solar do Dr. Cicrano.
Sincronia espremia-se entre o povo na feira com a sua amiga de infância Diacronia. Esta perguntava àquela por que as palavras mudavam com o tempo.
Diatópico, pai de Diacronia, escultor em pedras e decorador de prédios, perguntou à filha o que fazia na rua naquela hora. Não ia ajudar a tua mãe?
Acotoveladas na multidão, Diacronia e Sincronia sumiram. O pai Diatópico gritava:
Não ia ajudar a tua mãe?
Diafásica, dona de boteco e falsificadora de cachaça, comprava limões. A feira tinha atravessado todo o sábado. E vaqueiros bêbados passavam no boteco de Diafásica, onde tinham deixado a feira – o corte de carne bovina numa embira, a farinha de mandioca, o querosene... – e se foram pela Rua do Basculho.
D. Babélica topou-se com Zé Arcide, e mudou de calçada. E ele, bêbado, cantava:
No rodapé da subida...
...Nos matagais do agreste...
...Jumento foge do teste...
...Pula forte... O cabra cai...
...E o jegue correndo vai...
...E soltava popas da peste...
O dia de sábado de feira ameaçava concluir a jornada com nuvens d’água sobre as serras. Naquele lusco-fusco cochilavam Gugy, Camonga e Caiçara.
As trovoadas criavam-se nos chapéus das serras. Circundavam a cidade como as três personagens das encruzilhadas, das estradas, das magias. Como as três filhas de Têmis.
As serras, que se irmanavam na proteção à cidade, possuíam braços que alcançavam as eternidades. Serras eram quais entidades que, misteriosamente, controlavam destinos nas terras agricultáveis. E eram elas quem determinava as vidas miúdas e gigantes feito as vidas dos primos Dr. Cicrano e do Dr. Sicrano.
Imponentes e imortais eram as primas irmãs Serra da Camonga, Serra do Gugy, Serra da Caiçara. Como Láquesis, Cloto e Átropos. Uma sempre na roca, como dizia a costureira Elipse, outra no fio, e Átropos na tesoura.
Naquele fim de tarde de urubus no céu, a alfabetizadora Anistia apareceu na véspera da chuva na casa da costureira Elipse:
A senhora poderia me ajudar a ser modista?
Modista? quis saber a costureira Elipse numa demonstração inequívoca de desconhecimento do significado de modista. E o que isto significava, minha filha?
Ultimamente, a professora Anistia não largava o confessionário. O termo gerador da professora Anistia era dinheiro. E o da irmã Amnésia era casamento.
O mundo tornou-se pervertido.
E também depravado! a costureira Elipse concluiu a oração da professora Anistia.
Tornou-se pervertido por que era depravado ou por que era depravado se tornou pervertido?
Elas caminhavam à mercearia do velho Atividade. Nesta época, Santana multiplicou o comércio e ressignificou o conceito de mercearia. Os armazéns iam ladeira acima com a venda de feijão, milho e algodão.
Único filho que teve a costureira Elipse foi natimorto com 9 kg, e quase a rasgou. A costureira, depois que ficou viúva de sete maridos defuntos, mantinha uma jiboia debaixo da cama.
Toda essa coisa era desprezível! disse a professora com a concordância de Elipse costureira.
Devassidão! a costureira Elipse desabafou. Pura devassidão.
Era como falava o padre Velho, a professora Anistia comentou, o mundo era fruto do pecado.
E o barroco lusco-fusco na trovoada era contradição, disse o padre Velho. Os opostos repetiam-se, as antíteses na cidade e na gradação com estes raios e trovões que só aumentavam e ameaçavam.
O padre Velho deu ordens a Patacão que fechasse as portas do templo; e ele obedeceu. O padre caminhou ladeira abaixo. O riacho tributário do rio roncava d’água. O Panema sobejo de peixe e canoeiros que o atravessavam.
A presença do sagrado e do profano nas orações e nos fantasmas, disse o padre Velho a Patacão. Como se houvesse novidade nas chuvas.
A costureira Elipse, na última confissão, disse ao padre ter certeza de que o que havia de demoníaco no coração, que era atraído pela desgraça, era desejo pela destruição. Em toda a parte, ouvia-se a conversa dos desesperados, padre. E o padre Velho ficou em silêncio como de praxe; agora remoía o silêncio outra vez, refletia sobre a mudança climática, as palavras da costureira Elipse, o riacho cheio pela boca.
Em noites trovosas em Santana, o padre Velho, impaciente, expulsava em voz alta as ideias do quengo entre as orelhas. As cidades atraídas pelo grotesco nas figuras que se repetiam nos instintos de perversidade. Não era à toa que se refugiavam nelas a morte, a queda pelo sobrenatural, pelo grotesco.
Em toda a parte, a perda frequente dos anjinhos e a irracionalidade dos que ficavam. Eram todos românticos tardios incorrigíveis, o padre Velho disse à mesa diante da xícara de chá de erva-doce.
A morte, disse o padre Velho, era a ausência permanente. Mexia o chá na xícara. E outra vez terminava o dia em Santana com promessas de tempestade interminável e não chuva passageira como haveria de ser nesta parte do mundo.
O padre Velho falava da morte como se a morte o acompanhasse desde Coimbra, onde se ordenou. Os enterros dos anjos, como eram chamados todos os recém-nascidos, não acabavam nunca de terminar de passar na frente do casarão do padre a caminho do cemitério.
E, na década de 20, Santana era o progresso. O Liberdade de Expressão chamou a pujança econômica, nos primeiros seis meses, de economia-cururu, e nos meses subsequentes de economia-canguru.
Ignoravam os quatro cavaleiros o que aconteceria com a economia antes da década de 30. Tudão, o rábula, sequer fazia juízo das mudanças econômicas; Polissíndeto, um dos quatro cavaleiros, vivia metido em remédios, quando não atolado em palavras, períodos, parágrafos, colunas, artigos de jornal; e o padre Velho e o Dr. Cicrano, os outros cavaleiros, nadavam de braçada em assuntos que se distanciavam do que viria ser a Queimada de Café.
A cabeça do doutor não andava bem. O Dr. Cicrano, disse o padre Velho, chamava o Ford T de Ford A e deu-lhe o apelido de Bigodudo porque não julgava adequado chamá-lo de Baratinha.
Na sala de visitas do solar havia um canguru empalhado. Fruição, que era taxidermista, casada com Inferência, foi contratada pelo Dr. Cicrano, que trouxe o animal da Austrália. Fruição passou semanas até empalhar o canguru.
O Dr. Cicrano, quando menino, rogava à mãe que lhe contasse estória de horror antes de dormir. E ouviu que havia uma família numa casa onde moravam três gerações; morreram os homens, ficaram as mulheres. A última das mulheres grávida deu à luz a uma menina. As três gerações negligenciavam a criação da quarta geração.
Era só isso a sua estória de horror, mamãe?
Isso não te horrorizou, meu filho?
Não, mamãe.
O meu filhinho sabia o significado jurídico do verbo negligenciar?
Não, mamãe.
Neste caso, meu filho, pediria ao teu pai que o levasse a ter aulas com o Dr. Pontes de Miranda.
As olarias nas margens do rio Bé do Algodão as comprou dos primos Dr. Cicrano e do Dr. Sicrano, herdeiros do avô que subscreveu a Constituição de 1891. No terreno da casa mal-assombrada, Bé do Algodão ergueu a primeira fábrica de azulejos e lajotas de Santana; a chaminé anunciava o progresso.
A cidade passou a ter dois carros. Um era o Bigodudo do Dr. Cicrano, e o outro o Bigodinho de Bé do Algodão.
Associou-se Bé do Algodão a três capitalistas e industriais da Bahia e do Recife. Os mesmos que tiveram a iniciativa de trazer ônibus a Maceió.
Nesta época, o Brasil conhecia as “Memórias póstumas de Brás Cubas”. E a fumaça do fogo que queimou a casa dos pais de Bé do Algodão não turvou o seu horizonte.
Se Leibniz visitasse Santana diria que o lugar vivia no melhor dos mundos possíveis. E como esta percepção não era possível, pois Leibniz encontrava-se de ossos limpos, só era possível a máxima racionalidade de todos os fatos. Isto sinalizava que Santana estava determinada a viver o melhor.
A mulher dos olhos grandes e pés pequenos, casada com Bé do Algodão, lia as notícias que vinham da Europa. Santana encontrava-se, ela disse, longe dos conflitos bélicos para além do Atlântico. Como se os belicistas não tivessem se fartado entre 14 e 18.
Os funcionários da fábrica de azulejos e lajotas receberam o treinamento, começaram na fabricação de lajotas e azulejos no mês seguinte. Todas as novas construções na cidade usavam Azulejos Fulni-Ô e Lajotas Yaathe com a arte dos povos da floresta.
Na madrugada de sábado encolhia-se do mundo, que se acabava debaixo de chuva. O vigia da fábrica de azulejos e lajotas viu coisas esquisitas em toda a parte. Na fábrica, ele ouviu pessoas conversarem nos depósitos quando estes estavam escuros e sem viva alma.
Santana não tinha ladrão! disse o vigia e amiudou-se um pouco mais com receio de que fosse alguém que lhe veio fazer mal.
Boa noite! saudou um velho molhado que mancava, e surgiu do nada.
Boa noite! respondeu o vigia. Qual é o seu nome, senhor?
Sofisma.
Antes daquela noite de trovoada, foi uma sexta-feira 13. Quando nada de mal-assombro acontecia na sexta 13, esperasse pelo sábado ou domingo, disse o vigia ao estranho Sofisma.
No casarão, o padre Velho ainda estava acordado. Ele dizia que em noite assim tremulava a película que dividia o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Movia-se a cortina tênue entre um mundo e outro, e quase se rompia.
Nas sextas-feiras 13, o padre continuou, a camada de pele muito fina, que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos, ameaçava se romper. Raios e trovões davam ao quadro o que o Renascimento italiano chamou de sombra e luz.
Naquele chiaroscuro renascentista, a fonte de luz que estabelecia sombra era a descarga elétrica entre as nuvens carregadas, o ar e a terra. E a trovoada se derramava das serras sobre Santana.
Se a película que separava um mundo de outro se rompesse, atravessaria pela abertura vultos inexplicáveis, vozes incompreensíveis, odor de coisas que não se sentia antes. Vi exorcismos. O medo dava sinal ao corpo sensível ao frio e às aparições súbitas começariam, disse o padre Velho.
Longe de ser naturalista, o padre que dizia não acreditar em zoomorfismo, esfregava a palma da mão no braço e reclamava que o sangue fugia da pele. O sangue concentrava-se no vazio da barriga, dizia o padre Velho.
Não tinha medo de trovoada, Prosopopeia? disse o marido. A chuva era o céu que engravidava a terra.
Se aqui tivesse espelho, cobria. Pedi à santa Bárbara, disse Prosopopeia ao marido Polissíndeto, proteção. Passou a hora de dormir há tempo. E daqui a pouco amanhece. Por que não consegui dormir?
No escuro, o clarão atravessava os vidros nas janelas, de quando em vez, formava a sombra do casal na parede, no chão, nos móveis, outra vez na parede, outra vez no chão.
Não viesse com enxerimentos! reclamou Prosopopeia sobre o ditado que o marido Polissíndeto falou ao se referir que “a chuva era o céu que engravidava a terra”. Tirasse logo a mão daí, não fosse buliçoso.
No mesmo quarto, o casal dormia em camas separadas. Eles acordaram, desde as núpcias, viverem em camas separadas; elas só eram unidas no chamado à procriação.
Os movimentos de vaivéns da cama, os gemidos prolongados, os ruídos que se misturavam aos estouros dos relâmpagos... Em noites assim, Bé do Algodão e a mulher de olhos grandes e pés pequenos juravam fazer Santana crescer e multiplicar-se.
Na fábrica de azulejos e lajotas de Bé do Algodão, na Rua da Cadeia, sob a intensa trovoada que atravessava a noite do sábado ao domingo, o ribombar dos trovões longe desossavam as serras em torno de Santana. As luzes dilaceraram o céu com grandes horrores como se retrocedessem cinco séculos as serras, o rio. Era o conflito personificado entre duas épocas (o século 20 e o século 15).
Conflitavam-se os mundos. Como se um quisesse dominar o outro. E forte era a angústia entre estas duas épocas entre o sagrado e o profano.
No casarão do padre Velho, a insônia o atingiu feito terrível raio. Ele, longe da cama, impacientava-se. Tantas vezes foi à cozinha, voltou. Tirou o penico sob a cama, tornou a devolvê-lo.
A lei das órbitas elípticas de Kepler, disse o padre Velho, cedo roubou o meu sono. A órbita é elíptica, isto era óbvio, os planetas giravam dentro da mesma caixa, óbvio, e nenhum deles ia além do outro, óbvio, porque a vida entre eles era constante, óbvio.
O pavio que se ligava à cortiça dentro dum objeto com óleo estava aceso. Atrás da vidraça, no segundo andar, um corpo impaciente não parava de andar.
No centro de Santana de enérgico aguaceiro, atrás da janela de vidro, sob a luz de lamparina, a costureira Elipse criava roupas que se adaptassem a todos os corpos, fosse em dias de chuva ou de calor. Ela dizia que aquelas roupas se moldavam aos corpos em todas as idades.
A costureira morava sozinha. Falava sob os lençóis, onde se abrigava do medo, como se costurasse. Levantava-se. Corria a casa. Verificava outra vez se janela e porta foram aferrolhadas. Subia os degraus, descia-os.
Esfregava a mão espalmada na baça vidraça da janela. Grudava o nariz na vidraça, e tentava muitas vezes descobrir de onde vinha tamanho aguaceiro. A costureira Elipse, no escuro da coberta, enfrentava o espanto. Tinha percorrido o terço várias vezes.
A casa da costureira Elipse cheirava a Patchouli. Ela própria lembrava a reencarnação dum corpo que viveu há 2.000 anos.
De longe, a chaminé da primeira fábrica de azulejos e lajotas de Santana. Ladeira abaixo, a chuva não dava trégua.
Paredes manchadas de fuligem; as velas de sebo nas paredes. Na casa dos professores de português e matemática, as irmãs Anistia e Amnésia presas num abraço, agachadas num canto de parede, como se fugissem dos trovões.
Hipérbole, que ensinava língua portuguesa, e Pleonasmo, matemática, no quarto decorado com imagens de santos. Uma noite assim, disse o professor, tu te lembras, apareceu em Santana um jovem poeta que escrevia contos de horror, te lembras, e se dizia chamar... Como era mesmo!
Como era mesmo?
Tu te lembras, e se dizia chamar... Pi-Lóri.
Isso mesmo!
Pi-Lóri era o nome do diabo.
Também, como se lembrar de nome assim!
Era Pi-Lóri?
Era Pi-Lóri.
A professora de português, que acendia velas de sebo às imagens, via nas janelas as luzes, ouvia o barulho que estremecia as paredes da casa, tremia de um frio anormal. Disse que inclusive leu e fez correções ortográficas no texto do poeta, que lhe trazia contos com imperfeições gramaticais e erros literários.
Os contos narram sobre bactérias, tu te lembras, estômagos, vísceras, úlceras, gastrite, câncer.
O poeta dizia ter o dom de atravessar a película entre os mundos. A última estada foi no Romantismo, onde viveu entre os góticos.
A chuva e o vento eram uma relação amorosa pervertida. Àquela noite, uma entidade etérea enlouqueceu e se deixou açoitar pelo vento.
Batia vento em portas e janelas das casas, agitava árvores nas ruas como se fosse arrancar folhas verdes, galhos. Voltava às portas e janelas e as agitava e as fazia tremerem; estremeciam a ponto de derrubá-las.
A violência do sequestro não cessava. Como se Perséfone outra vez fosse levada por Hades às profundezas. Chuva assim só foi vista na última inundação no deserto do Saara.
Foi em noite assim de inverno, tu te lembras, aquele poeta dos horrores fugiu da terra gótica, onde disse ter visitado, e surgiu aqui em Santana.
Quantas aflições e terror naqueles contos! disse a professora na tentativa de fugir dos raios nas janelas, dos trovões que estremeciam paredes da casa, e do frio que o acusava de insuportável, quando o professor Pleonasmo em manga de camisa e ceroula queixava-se do calor.
O poeta Pi-Lóri, tu te lembras, se dizia em busca do irmão Ed-Gárgula.
Ele perdeu o irmão na última travessia.
Ed-Gárgula, que era mais velho, era o ídolo dele. Em noites assim, os dois brincavam de deslocar-se entre passado e futuro. Tu te lembras?
Era um sujeito cheio de predicados.
O poeta era medroso, tu te lembras; Ed-Gárgula não. Aquela dupla era o buraco negro do qual não escapava nem a luz. Uma dupla de caleidoscópios que apagava a realidade e iluminava a irrealidade do horror em ser devorado por ser completamente insignificante e descartável como papel higiênico usado.
E sem nenhum verbo! ela disse. Aliás, Pleonasmo, até onde li, as orações deles profanaram os verbos das classes gramaticais.
O padre Velho estava cheio de imaginações. A insônia não o deixava em paz.
Na época da investigação sobre o fogo naquela casa e na marcenaria, na Rua da Cadeia, onde se encontrava a fábrica de azulejos e lajotas de Bé do Algodão, a dedução acertou na mosca. Zeugma cometeu o crime, deduziu o delegado. Ali, o marceneiro Zeugma ateou fogo e matou D. Xântipe e o marido, o marceneiro de muletas.
O padre, num sinal de fidelidade ao Dr. Cicrano, prestou o seu depoimento ao delegado que veio a Santana por indicação de Sua Excelência. Na noite do fogo que vitimou o marceneiro de muletas e a sua esposa, a feirante e curandeira D. Xântipe, disse o padre Velho, o marceneiro Zeugma trabalhava no casarão.
Trabalhou dois dias antes e dois dias depois da trágica queimada, disse. E sem tempo, Excelência, até mesmo de ir em sua casa. Era lá em casa mesmo, Excelência, que o marceneiro Zeugma fazia as suas refeições. O homem quase não dormia de tanto trabalho!
O senhor tinha testemunhas?
Tantas quantas o delegado carecia. E o Dr. Cicrano era uma testemunha. O marceneiro Zeugma, repetiu o padre Velho durante o depoimento ao delegado, não poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Este, delegado, era o princípio da impenetrabilidade da matéria, outra vez o padre disse. E o delegado convenceu-se da metáfora demonstrada em gênero, grau e, principalmente, número.
Sim, Vossa Reverendíssima! foi o pronome de tratamento do delegado ao padre Velho, antes de ser arquivado o caso que ficou conhecido como Vingança de Fogo. O marceneiro Zeugma, que na ocasião prestava serviço na casa, não poderia ocupar diferentes lugares no espaço ao mesmo tempo.
Em seguida, delegado, o marceneiro Zeugma fez um ou dois servicinhos aqui na fazenda do Dr. Cicrano, aqui mesmo na rua, aqui mesmo em Santana. Na fazenda conhecida por Fazenda Roída. E depois foi fazer outro servicinho na Desvalida.
Na desvalida?
Outra fazenda, delegado.
Fazenda?
Outra do Dr. Cicrano.
Aqui, na rua?
Não, o padre disse, na Mata Pequena, divisa com o sertão da Bahia.
Na fábrica de lajotas e azulejos, onde os raios e os trovões eram severos, o vigia não se cansava de esfregar os braços com as palmas das mãos. Olhava a figura de Sofisma e tremia:
Donde vinha o senhor? o vigia da fábrica perguntou a Sofisma.
Do cemitério! ele disse, e o vigia reconheceu que não se tratava de gente deste mundo.

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