Psicanálise, identidades culturais e regionalismos

Artigo

Por Fernando Soares Campos

Na condição de animal semipensante, como posso acreditar que alguém com quem nunca estive antes, alguém que, aparentemente, não tem nem mesmo uma simples noção do que eu possa ter vivido, experimentado, contestado, aprovado, negado, amado, desprezado, conquistado e por aí vamos, pois bem, como esse alguém pode vir a saber mais de mim do que eu mesmo o sei? Ou, ao menos, como ele pode conhecer alguma passagem de minha vida que eu mesmo a desconheço ou dela não me lembro? Creio que tal pensamento pode ser formulado por algum candidato ao divã; principalmente quando este procura tratamento psicanalítico influenciado por terceiros, ainda mais se lhe indicam um terapeuta específico, classificando-o como “especialista no seu caso”. E, se aquele que indicou o terapeuta nunca se tratou com tal profissional, nesse caso, geralmente ele fala à base de “já ouvi falar que o cara é bom na coisa”.

Sob tal orientação, o paciente procura o psicanalista indicado, certamente acreditando que este venha a resolver o seu conflito, aquilo que parece originar-se em si e que, supostamente, atuaria contra si mesmo.

É muito provável que, após a primeira avaliação (“tratamento de ensaio”, conforme Freud denominou esse primeiro encontro), a maior parte dos que dela participa possa ter desenvolvido uma visão mais clara sobre aquilo que realmente venha a ser um psicanalista. Provavelmente, é nessa ocasião que o paciente desenvolve determinados conceitos sobre a personalidade do analista. E, assim, o terapeuta, na concepção do futuro paciente, toma a forma de “Sujeito Suposto Saber”. Nesse caso, o analista pode ter contribuído, seja de forma naturalmente espontânea ou dissimuladamente imposta, para que o analisando viesse a idealizar sua figura, logo no início do relacionamento entre ambos, de forma superlativa, o que nos remete a relacionamentos ancorados em doutrinas religiosas e fraternidades iniciáticas.

Daí em diante, a relação entre ambos os sujeitos diretamente envolvidos na atividade analítica pode tornar-se cada vez mais próxima de uma intimidade que dificultaria a ocultação de determinadas sutilezas, que podem ser identificadas quando da interpretação de termos, expressões corporais e gestual característicos do analisando. Certamente, cabe ao analista, com a autoridade moral de “sujeito suposto saber”, manter o controle desse relacionamento nos termos definidos por uma ética universal ou especificamente desenvolvida para intermediar tal relacionamento, pois creio que tudo... quer dizer... toda dificuldade que se interponha entre o analista e o analisando depende do contexto social em que ambos vivem ou viveram. Entretanto, ao fazer valer a sua competência, o analista deve exprimir-se de forma que mantenha “a preocupação com o respeito à liberdade e autonomia do paciente” (excerto do Mód. XII, do curso de formação em Psicanálise Clínica do IBPC, Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica, Campinas-SP, por meio do qual me tornei psicanalista).

O psicanalista pode ser comparado a um guia turístico que conhece a extensão de uma floresta em que atua, informando aos visitantes sobre os elementos culturais, geográficos e históricos da região. Ele conhece todas as trilhas possíveis daquela sua área de atuação, mas desconhece muitas espécies da fauna e da flora a ser explorada. Portanto, ele precisa intensificar seu interesse em saber como se desenvolvem e se manifestam as vidas orgânicas e elementos inorgânicos na floresta, mata ou simples capoeira que se destaque no cenário “vegetal” do seu cliente, com o propósito de alcançar uma trilha perdida ou simplesmente encoberta pela abundante vegetação.

Ética aplicada ao relacionamento analista/paciente 

As relações entre o analista e o paciente devem ser pautadas por princípios éticos formalizados por legislações oficiais ou gerados na informalidade comportamental praticada no meio das sociedades tidas como modernas e, se possível, adotando os valores morais específicos e legitimados pelas comunidades em que se desenvolveram as personalidades de ambos. Entretanto, observando-se as devidas peculiaridades dos grupos, posturas muitas vezes distintas entre os diversos extratos sociais. Distintas e, em alguns casos (é aí que mora o perigo), opostas, explicitamente divergentes entre si. Isso, certamente, dificulta as comunicações entre os sujeitos formadores de um par analítico.

Por exemplo, quando um paciente nordestino disser que alguma coisa é “melhor” ou “pior” que outra, procure saber em que sentido ele emprega as palavras “melhor” e “pior”.

A seguir, trecho extraído do artigo de minha autoria intitulado “Pior e melhor; mais fácil e mais difícil”, publicado no diário espanhol La Insignia em 6/4/2006:

Quando cheguei ao Rio de Janeiro, no final dos anos 1960, vindo do Nordeste, logo me dei conta do espírito humorístico dos cariocas, das suas brincadeiras, das gozações desse povo naturalmente caçoísta, tanto quanto o povo de minha terra. Foi quando observei que as pessoas gostavam de conversar comigo por vários motivos, mas principalmente porque achavam engraçado o meu jeito de falar, o meu sotaque nordestino-sertanejo e os diversos termos que eu usava.

Não esqueço do meu primeiro “oxente!” pronunciado em público na Cidade Maravilhosa. Algum tempo depois, entendi por que motivo, quando o proferi, numa festa de aniversário, atraí a atenção de algumas pessoas. A partir daquele momento, muitos queriam conversar comigo. Daí em diante, tudo que eu falava era motivo de riso, brincadeiras, trocadilhos e alimentava ainda mais a animada roda de bate-papo. E eu lá, aos 19 anos de idade, centro das atenções, crente que estava abafando, como a gente se sentia na época. Lembro até que eu ainda usava alguns termos considerados arcaicos, como, por exemplo, “vindouro”. Enquanto um carioca dizia “semana que vem”, eu dizia “semana vindoura”, e aquilo, para eles, era uma preciosidade!

O presidente Lula entre aquilo que é “pior” ou “melhor”

Por que tomo a defesa do presidente Lula em relação a algumas frases que ele andou proferindo e que repercutiu de forma tão negativa na mídia? Certamente porque sei que interpretações elaboradas de forma literal (ou seja, “ao pé da letra”), elaboradas por pessoas oriundas de outras regiões do nosso país, tratando daquilo que diz um nordestino, podem gerar certa e compreensível confusão.

Muita gente poderia alegar que o presidente Lula viveu muito mais tempo em São Paulo que no Nordeste. Podem ainda dizer que ele chegou ao Sul Maravilha quando esta expressão ainda nem havia sido cunhada pelo Henfil. Mas nós, nordestinos, como tantos outros migrantes internos e imigrantes, mantemos hábitos, costumes e traços peculiares que, como todos sabemos, passam de geração a geração. Hábitos alimentares e indumentários, rituais religiosos, gestos, acentos de sotaque, termos e expressões de suas origens. Posso citar como exemplo um primo meu que morou no Rio de Janeiro por quase cinquenta anos (eu já não moro no Rio, estou de volta ao Sertão), e quem conversasse com ele durante todas aquelas décadas poderia imaginar que o “paraíba” havia chegado do Nordeste recentemente. Seus filhos e até alguns netos, todos cariocas, manifestam determinadas características próprias dos nordestinos. Acredito que esta é uma das mais importantes heranças que ele deixou para os seus descendentes, além da educação moral que lhes transmitiu.

Por ser nordestino, sei o que o presidente Lula quis dizer quando, por exemplo, declarou: “Ler é pior que fazer exercício em esteira”. Ao pronunciar tal frase, com a melhor das intenções, alguns setores da imprensa fizeram alvoroço. Afirmaram que o presidente havia dito que preferia fazer exercícios numa esteira a ler. Intelectuais de todos os credos escreveram indignados artigos. Alguns diziam até que o presidente estava fazendo apologia à ignorância. E eu imagino como se sente o presidente Lula quando lê esse tipo de crítica nas revistas e jornais, ou quando delas toma conhecimento assistindo aos telejornais. São críticas geralmente feitas em tom galhofeiro. São escárnios que pretendem se passar por perspicacíssimas crônicas.

“Pior”, aqui no Nordeste, em diversos contextos, tem o sentido de “mais difícil”.

Há anos, quando cheguei ao Rio, eu teria dito coisas assim: “Ler é pior (mais difícil) que fazer esteira”, ou seja, estaria empregando o termo “pior” no lugar da expressão “mais difícil”. E aí pergunto: o que você acha? Ler é mais difícil que fazer esteira? Claro que sim, pois fazer esteira, passar um bom tempo caminhando de lugar algum para nenhum lugar não exige esforço intelectual. Ler, por exemplo, um texto acadêmico, aí é que se torna pior... quer dizer, mais difícil que caminhar sobre uma esteira rolante.

Fazer exercícios em esteira é melhor, “mais fácil” (também usamos “melhor” com este sentido) do que ler. Concorda? Pois, fazer exercícios numa esteira pode ser “intelectualmente” equiparado a assistir televisão. Isto, sim. (F.S. Campos – La Insignia - Diário independiente iberoamericano - Madrid, Espanha - 6/4/2006 – trecho)."

Disso, podemos concluir que, em psicanálise, devemos ter muito cuidado quando do processo de interpretação dos termos analisados sob o método da Associação Livre.
 

Fernando Soares Campos é psicanalista e escritor, autor de “Adeildo Nepomuceno Marques – Um carismático líder sertanejo”, este, em parceria com o seu irmão Sérgio Soares de Campos. Fernando também assina três outros livros de autoria solo. “Deus e o Universo Holográfico” é o mais recente, publicado pela editora SWA, Santana do Ipanema-AL.

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