CAMOXINGA

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

E marmeleiros cresciam a se perderem cidade afora. E a partir do templo de Santana, a cidade criava ruas e becos, tomava as colinas acima e o rio abaixo.

Silepse levantava uma casa, pedra por pedra, e tijolo por tijolo. E Quiasmo sem escrúpulos em tirar tudo o que podia do rio.

Na porta da rua, Assíndeto, o irmão da costureira Elipse, passava o dia a encilhar os seus burros de carga. Antonomásia entoava os cantos de trabalho, enquanto estendia roupas.

Bé seguia a vida, dedicado a amar os seus sonhos. O vazio, vazio mesmo, disse ele à moça da Camoxinga, moça de olhos grandes e pés pequenos, – foi o que viu – era viver a vida sem nenhum sonho.

Terra nenhuma precisava de poetas! foi o que disse a de olhos grandes e pés pequenos. A terra carecia de trabalhadores braçais.

Ele parou na poesia dela. Não era um haicai, era uma epopeia.

Poesia era um desabafo! disse a moça de olhos grandes e pés pequenos. Uma explosão de medo de quem a criou.

Ouvi-la era ouvir versos de dez sílabas. E ela seguiu no verso agalopado.

Poeta nunca acreditou no que fazia! disse a moça de olhos grandes e pés pequenos. Era um tiro no escuro, a poesia.

A cidade, que descia rio abaixo, para além da Rua da Cadeia, fez-se rio acima. Comércio minguou rio abaixo, prosperava rio acima.

Valorizou-se o chão em torno do templo de Santana, economia criou asas. Bé Bodegueiro, que foi Bé Saboeiro, e antes Bé Carroceiro, o filho de D. Xântipe e do marceneiro de muletas, foi quem carregou as pedras, a areia do Panema, cimento na construção da primeira praça na cidade.

Durante as carradas de areia, pedras e cimento, contava atrás do balcão da bodega, ele, que tocava a carroça com o canto de trabalho. Sem pressa nas praças, cantava e enchia os copos de cachaça aos fregueses, cantava e vendia açúcar, farinha de mandioca, farinha de milho, feijão, café, arroz.

Santana, cadê a praça daqui? Sem pressa se fazia a primeira praça. E, nas ruas, pulavam de galhos saguis. Ria à vontade o bem-te-vi. Santana, cadê a praça daqui?

Bé Bodegueiro cortava o rolo de fumo, cortava o rolo de corda; vendia o cigarro de palha. Recebia o dinheiro, devolvia confeitos como troco. Aves viviam de esmolas, cantava o bodegueiro. Em cada canto se achavam gaiolas e mais gaiolas.

O dinheiro que ganhei, disse Bé aos fregueses, ao trabalhar na construção da praça, comprei um petisqueiro!

O povo que se comunicava na língua yaathe – Fulni-Ô – vivia ao longo do Panema. Identificado pelos habitantes originários como rio de saúde frágil. Dele, a cidade furtava-lhe a vida presente na água, na areia, nas pedras, nos peixes.

O fungo lentamente devorava os limoeiros de D. Xântipe.

De frente à praça, brecou o chofer da Xepa. Branco, barrigudo, baixo. Um risco de bigode, barba por fazer, suado. Esfregou a flanela no rosto, desceu com ela por trás da cabeça ensopada. Trazia no bolso a lista Maceió/Santana com a identificação dos passageiros. Atrás da Xepa, versos de Aliteração identificavam a empresa de transporte coletivo intermunicipal.

Narigudos cercaram a Xepa. Risco de bigode devolveu os seus pés aos sapatos. Ergueu-se da poltrona atrás do volante. Ele riu um riso de alívio. Mostrou os dentes em petição de miséria sob aquele risco preto de bigode.

Esfregou flanela ao volante, e a jogou sobre o painel. Mexeu no retrovisor onde balançava a imagem de Santana.

Abriu a porta do ônibus que dirigia. Desceram os passageiros.

Tudão foi o primeiro que pôs os pés em Santana. Um rábula que chegava pela primeira vez à cidade. Trazia sobre a calvície um chapéu de massa, e sob o sovaco uma cópia do Código Criminal.

Um protético foi o segundo a deixar a Xepa. Seguia o protético o professor de matemática, que não gostava de ficar por baixo da professora de português.

Lentos, os passageiros da Xepa desocupavam o lotação. Tudão foi trazido a Santana pelos primos Dr. Sicrano e o Dr. Cicrano, que consideravam injusta a prisão de Assíduo por tanto tempo depois que correu atrás de Temistocleia com faca de ponta.

Chapéu de massa de aba curta foi contratado por causa da acusação ao crime de Assíduo em premeditar o assassinato de Temistocleia. Tudão levava a tiracolo o orgulho e a experiência em ter trabalhado com Bigode Branco, um dos responsáveis pela Constituição de 1891.

O último a descer da Xepa foi o engenheiro, filho do engenheiro da fábrica de sabão, no Recife, onde Bé viu irem-se embora os melhores anos de sua vida. Bé ganhou os melhores anos de sua vida na fábrica de sabão, no Recife.

Bé acalentava sonhos desde menino. Na época, no Recife, contou um dos seus sonhos ao engenheiro da fábrica de sabão, que era perenizar o rio em sua cidade sertaneja.

O engenheiro, filho do engenheiro da fábrica de sabão, voltava a Santana com o seu parecer técnico, custeado por Bé Bodegueiro. Ele trazia tudo sobre a perenização do Panema. Após a pesquisa de campo, exploratória e descritiva, o engenheiro, filho do engenheiro, retornou ao sertão.

Bé chegava à bodega antes do sol. Hábito que desenvolveu na época da fábrica de sabão, no Recife. Acordava cedo, dormia tarde.

Alegrava Bé Bodegueiro meter a chave nas três portas magras do seu comércio, antes que Santana abrisse o seu dia. Aquilo era um presente.

Varria, mudava a posição das mesas e das cadeiras, verificava o estoque nas prateleiras. Ouvia o coaxar dos sapos que dormiam ao pé dos potes d’água.

Àquela época, Bé Bodegueiro começou a observar a moça que passava, dia sim, dia não, na frente das três portas magras. Vinha da Camoxinga. Voltava à Camoxinga. Bé a olhava, a moça retribuía-lhe.

Ele dizia-se Quasímodo ao vê-la passar, Quasímodo ante Esmeralda. E quando Dulcineia voltava à Camoxinga, promovia reviravoltas ao coração de D. Quixote. Capitu lhe bagunçava como bagunçou Bentinho.

O dia todo casmurro. Bé Bodegueiro só perdia a casmurrice ao revê-la. A moça da Camoxinga aproximou-se de Bé. Conversaram. Venceram as etapas do cortejo, das noites de olhares, das festas sob a vigília dos pais dela.

Cada tarefa, por onde serpenteia o Panema, na Camoxinga, nas duas margens, pertencia aos pais dela. E Bé subiu a torre de marfim, e mergulhou no açude translúcido da moça de olhos grandes e pés pequenos.

O dormir tarde e o acordar cedo, manter o contato com a fábrica de sabão, conhecer os caixeiros-viajantes que visitavam Santana, Bé Bodegueiro saiu do aluguel, comprou o imóvel onde trabalhou o alfaiate Idioma. O imóvel da antiga alfaiataria, na boca da Rua da Cadeia, pertencia ao bodegueiro.

Se na bodega começou tímido, logo lhe surtiu com todas as novidades que chegavam na região portuária do Recife. Vendeu cachaça a granel, fazenda de tecidos às famílias sertanejas. Em Santana, comercializou safras de feijão, algodão, couro de caprinos e bovinos que os vendia no mercado pernambucano.

Tarefas transformaram-se em braças. As terras que margeavam o rio na parte da Camoxinga, quer no lado esquerdo quer no lado direito, presenteadas a Bé Bodegueiro e à moça de olhos grandes e pés pequenos.

As palavras de quem sonhava, não podiam representar o medo! disse a moça de olhos grandes e pés pequenos a Bé, com quem se casou.

Ele não era mais Bé Bodegueiro. Era Bé Sonhador, o herdeiro das terras nas margens do Panema, no lado da Camoxinga.

Bé Sonhador falava em fazer uma hidrelétrica na cidade. Nem que fosse preciso atravessar a nado o Amazonas. Foi, voltou a nado o maior rio do mundo. Venceu 140 km além do tamanho do rio Nilo. Ouviu contos-fábulas mitológicos. Conviveu com os contos de feitiçaria.

Viveu contos e fábulas biológicas. Bé Sonhador mergulhou em fábulas puras de animais. Conviveu com os contos e fábulas humorísticos. Terminou atolado nas fábulas morais.

A moça de olhos grandes e pés pequenos ouvia sobre o herói tolo, sobre os inocentes perseguidos. No alpendre de casa, ela ouvia falar sobre os que lutavam contra os dragões. E Bé Sonhador falava sobre o possuidor de objetos encantados, e sobre o possuidor de talismã, e sobre enfeitiçados.
Os primos Dr. Cicrano e o Dr. Sicrano nunca viram Bé Sonhador com bons olhos. Encarregaram-se de espalhar o mau-olhado.

Este projeto de hidrelétrica com as águas rarefeitas do Panema era bater palmas dirigidas à dança de loucos. Primeiro, disse o primo Dr. Sicrano ao primo Dr. Cicrano, falava-se sobre a preservação das águas, a perenização do rio, e logo vinha o projeto da hidrelétrica. E, depois, disse o primo Dr. Cicrano ao primo Dr. Sicrano, com atitudes tão radicais à nossa Santana, tá certo, e se a gente permitisse, tá certo, este carroceiro do inferno ligava Santana ao mundo.

E não tardava, disse o primo Dr. Sicrano ao primo Dr. Cicrano, com esta preservação do rio, sabe, com estas obras na cabeceira do Panema, sabe, com a ideia da hidrelétrica, sabe, com os telegramas à Inglaterra, sabe, Santana seria cortada por linhas férreas. Depois, disse o primo Dr. Cicrano ao primo Dr. Sicrano, com trens na cidade, tá certo, Santana encurtaria as distâncias, tá certo, logo chegariam à cidade as escolas, os hospitais, os investimentos.

Naqueles dias, na cidade, o Sol andava estranho. Sabia-se que a Lua se aproximava da Terra; e o Sol quase não aparecia.

Bé Sonhador morava na Camoxinga. Ele, mulher moça e filhos em casa de largas varandas e muitos telhados. Raramente aparecia na bodega, que ficou nas mãos da irmã Aspásia Doceira e Asioteia, a sobrinha de Bé, filha de Temistocleia, que fugiu com Eufemismo, o padeiro casado que abandonou mulher e filhos em Santana.

Vivíamos no tempo do atraso. Capitalismo de produção, disse o Dr. Sicrano ao primo Dr. Cicrano, sabe, não combinava com o nosso tempo, sabe. Seguiram os primos nesta glosa sobre o acúmulo do capital.

Me entregasse uma criança, disse o primo Dr. Cicrano ao Dr. Sicrano, e eu a transformava em anjo ou demônio. Nesta toada, tá certo, da preservação do Panema, projeto de hidrelétrica, tá certo, esta fome de revolução industrial, tá certo, a luz de Santana acabaria por iluminar o Nordeste, iluminar o Brasil, iluminar a América do Sul, tá certo, iluminar as Américas, vazar o Atlântico e iluminar o mundo.

Não que fosse ressentimento, sabe primo, era que lutei a vida toda contra monstros pré-históricos. Não que fosse ressentido, sabe. Na vigília, eu quebrei pedras sob o sol a pino.

A verdade era uma só, tá certo primo, e a verdade não aceitava estorinhas de trancoso. No sono, atravessei pântanos, tá certo primo, lama até o pescoço.

Ultimamente, sabe, era perturbado por sonhos, sabe primo, uns sonhos onde eu me arrastava por lugares em construção. Metia-me entre paredes, sabe primo, lama, lugares imundos, ratos e labirintos. Ficava preso em cisterna, escapar por estreitas passagens de pedras não conseguia, sabe primo, e caía em precipícios intermináveis.

A caminho do Panema, Mil-Ciências apressado. Tangia ancoretas no par de burros.

Aos sábados, os amigos de infância, Ptá ferreiro e o marceneiro de muletas, ocupavam uma mesa na bodega de Bé Sonhador. Eram atendidos por Aspásia Doceira e às vezes Asioteia.

O ferreiro Ptá era o avô de Assíduo. Preso por ameaçar furar Temistocleia com faca de ponta.

Naquele sábado de sol, divertiam-se Ptá e o marceneiro de muletas entre garrafas de cerveja, copos de cachaça. Eram dois sabiás entre torresmos.

Antes destes amigos se reencontrarem na bodega, passavam por ruas, cada um de uma parte da cidade, encurtavam os caminhos por becos forrados de estercos de animais e humanos. Vagabundos bêbados vomitavam, os feitores de selas na calçada remendavam o couro, mães esgoelavam-se pelos filhos.

A mulher da cocada vendia cocadas numa caixa de madeira. A poeira varria as ruas. O mato em toda a parte.

A mangueira distribuía mangas, o abacateiro abacates. Na bodega, Ptá e o marceneiro, ambos na farinha torrada de mandioca com torresmo.

As lavadeiras levavam fardos de roupas sujas ao Panema. As crianças mergulhavam nos poços de pedras. O sábado era de festa. Um dia de festa em Santana.

Os carros de boi cantavam. A matança descarnava os bichos.

As ancoretas sacolejavam-se em lombo de jegue. A velha amizade entre o marceneiro de muletas, marido de D. Xântipe, e o ferreiro Ptá, avô de Assíduo, preso por ameaçar à faca a vida de Temistocleia, via aquele sábado em Santana de uma mesa de bodega.

Os aguadeiros botavam água nas casas. Os de posses abriam nas pedras cisternas.

Erosão devorava as duas margens do Panema. O destino do lixo na cidade era o rio.

Os amigos Ptá e o marceneiro lambuzavam-se nos pratos de lambaris assados por Aspásia e trazidos à mesa por Asioteia.

Trouxesse tucunaré! pedia Ptá.

Panema botou água. Corria o peixe, pulava pedras desde o nascedouro. O sol iluminava o sertão, a lua voltava e o substituía. Os amigos na bodega jogavam conversas mundo afora.

Os prostíbulos iluminavam-se com velas. Cada ponta de rua, o conhecido casebre vendia-se por qualquer tostão. Abraçados, Ptá e o marceneiro bêbados, cantavam, diziam versos, galope amartelado.

Todo sertanejo era poeta! disse um bêbado ao outro. Um desperdício!

A noite, como era natural, substituiu o dia. O sol, naquela época do ano, voltava cedo.

A codorniz-comum dava as horas. O dia associava-se aos relinchos dos jumentos que trabalhavam graciosamente.

Na horta de D. Xântipe corriam preás como se fossem formigas agitadas no formigueiro. Urubus de asas abertas nas cumeeiras.

Com as ameaças frequentes nas selvas nordestinas, intensificadas desde as primeiras caravelas, as cidades protegiam-se. Próxima à rodagem, construída na administração de S. Graça, ergueu-se outro prédio em Santana.

A nova construção, que se destinava às causas físicas, logo foi usada nas causas sociais. Nela encarcerados os criminosos que ameaçavam Santana com a violência do cangaceirismo.

Em direção ao Panema, após o casarão do padre Velho vizinho ao riacho tributário do rio que se dirigia ao São Francisco, a cidade se construiu na parte Camoxinga. Havia nas casas o cheiro bom de aves de caça assadas e nos pratos o sabor do feijão-de-corda.

Na balaustrada do casarão do padre Velho, o Dr. Sicrano exigia do padre que seguisse, não interrompesse a cruzada por causa de uma gripezinha. Tossia o padre Velho, refém de tosse braba; segurava-se aos balaústres e abalava-lhes as estruturas.

A garganta do padre Velho em labaredas que ameaçavam a Inquisição e o domingo. Ele rasgava-se de tanto tossir.

Duas semanas de campanha inquisitória no combate ao curandeirismo. O padre Velho acuado entre balaústres por Dr. Sicrano e Polissíndeto exigiam dele que a cartilha fosse seguida à risca.

Voltasse a leitura do Apocalipse, disse o Dr. Sicrano, e lesse a parte sobre curandeiras. Visse tudo em Levítico sobre estas práticas. E não se esquecesse, padre, de Deuteronômio e também de Miqueias.

O senhor queria o quê...! fugiu a voz do padre Velho noutra crise de tosse severa. Na tosse, o padre se afogou. E foi devolvido à cama com a colaboração do Dr. Sicrano e Polissíndeto.

Insistia o Dr. Sicrano:

Lembrá-lo, padre. Voltasse a 1º Samuel e 1º Timóteo. Não se esquecesse de Isaías. Gálatas também. Voltasse a 1º e 2º Crônicas, e também Malaquias. E também 2º Reis. Principalmente Atos dos Apóstolos.

O padre Velho fazia sinais com as mãos. Misturava os sinais de vão em paz ao sinal da cruz. Os sinais do padre acamado não conseguiam conter o furor de Polissíndeto e do Dr. Sicrano.

Estava aqui em Números.

E também em Colossenses! e mostrava o livro ao padre Velho e ao doutor.

Os dois aproveitassem, puxou o padre Velho a voz sumida e disse por um fio de voz, e lessem Mateus 10:1, Lucas 9:1-2 e o final de Marcos 3:15.

Caibros escuros na cumeeira do casarão cobriam-se de casas de aranha.

Bé Sonhador e o filho passavam de bicicleta na porta do casarão do padre Velho. Adiante, um barbeiro trabalhava na porta de casa no cabelo de um cliente. Uma vendedora ambulante passou pelas bicicletas com o seu canto de trabalho, e oferecia tapioca recém-saída da pedra quente.

Menos de cinco anos que a gripe espanhola chegou aos portos do Recife. Espalhou-se nas regiões portuárias na capital da Bahia e no Rio. O padre Velho, que se rasgava vítima da tosse persistente, com dores debaixo das costelas por causa das tosses recorrentes, dizia-se entregue. Recorria às contas no rosário, com fé em Santana.

O avô dos primos Dr. Sicrano e Dr. Cicrano, que assinou a Constituição de 1891, quando a espanhola chegou ao Rio, ele abriu-se:

Venha, espanhola, abraçar-me! duas semanas depois estava de gravata e paletó azuis, com as mãos cruzadas sobre o peito; entre os dedos enroscava-se um rosário. A pandemia de 1918 atendeu ao chamado do avô dos primos Dr. Sicrano e Dr. Cicrano.

Os comentários do avô dos primos Dr. Sicrano e Dr. Cicrano chegou a Santana, ocupou o comércio, correu pela Rua da Cadeia.

Esse povo, viu, vivia como se não morresse, viu! uma mulher com um pote na cabeça comentava com D. Xântipe.

Aí, dona, quando via a poeira da morte que vinha...!

Logo se amofinava, viu, com o rosário de Santana nos dedos, viu!

Não era tão valente!

Cadê a valentia?

Quem gostava de aventura, viu, D. Xântipe, o peito arregalava!

Aspásia Doceira desenvolveu a bodega do irmão Bé Sonhador com doces e preços baixos. Vendia bolos e pães sob encomenda.

A bodega aberta de domingo a domingo. E Asioteia, sobrinha de Aspásia, herdeira do talento matemático da mãe Temistocleia, fazia toda a contabilidade da bodega, que crescia com novos clientes.

Os ovos da costureira Elipse eram separados por Aspásia. E a linguiça de Catacrese e Sinestesia que, ladeira acima e ladeira abaixo, andavam na cidade sempre de sombrinha e de braços.

Entre as pedras de dominó, Paradoxo bebia cachaça. O chapéu de feltro sobre a mesa.

Hipérbole e Pleonasmo eram recebidos com reverência por Aspásia. Eles vinham buscar o vinho encomendado. Coisa fina que chegava na área portuária do Recife; vinha do Porto.

S. Anacoluto entrava na bodega, pegava as cocadas de amendoim, e saía de cabeça baixa. Deixou as moedas no balcão, Aspásia as arrastava à gaveta, e as moedas de S. Anacoluto tilintavam entre as outras.

E as nuvens, que se reuniram desde o dia de São Gabriel, trouxeram bonanças. Chuvas bondosas nos meses subsequentes; outubro chuvoso, e mais em novembro de muita água. Dezembro chegou com o abrasar do sol.

Perenização do Panema decantava. Neste período, Bé Sonhador passou a ser chamado de Bé do Algodão, quando trouxe máquinas à cidade.

O sonho de Inferência, casado com Fruição, ainda continuava sonho. Ele sonhava em possuir em casa, que era ampla em área construída num terreno no qual cabiam as montanhas da Lua, uma máquina que descaroçasse algodão.

O produto da invenção de Whitney, que Bé do Algodão trouxe a Santana, mudava a economia no trajeto entre lavoura e matéria-prima. O beneficiamento separava as sementes da fibra.

Na área portuária do Recife, Bé do Algodão assinou contrato de permuta de algodão por tecido. O filho do marceneiro de muletas e D. Xântipe, associado aos cotonicultores e longe do bicudo do algodoeiro, fez negócios e dinheiro em Santana.

Não saía do papel nem da burocracia a perenização. E a hidrelétrica não poderia ser levada adiante dos bois.

Bé do Algodão começou a comprar gado. Passou a encher tarefas e mais tarefas de cabeças de gado, tarefas de palmas forrageiras.

O capitalismo, papai, alimentava-se do consumo! disse Bé do Algodão ao marceneiro de muletas, sob o olhar incrédulo do pai. Este não queria que o filho contratasse gente e lhe pagasse salário.

O pai quis saber do filho por que ele não saía de Santana, por que não ia morar em Maceió, voltar a morar no Recife. As ruas de Santana, papai, estavam impregnadas em mim.

Oxi!

Onde eu passava, aonde eu fosse, papai, eu via presente o passado. Nas casas e no povo. Nas cores, no calor.

Conversa!

Eu tinha Santana no meu cheiro, papai. Em minha pele. Este linguajar de Santana não havia outro em nenhum outro mundo.

Se eu pudesse! o pai era patrão que impedia o filho em prosperar. Bé, se eu tivesse a tua idade...!

A prole do marceneiro e D. Xântipe devia conformar-se com as atividades laborais costumeiras. Sem voos altos, Bé, sem sonhos mirabolantes.

Cleobulina Lavadeira, a outra filha do marceneiro de muletas e D. Xântipe, abriu uma lavanderia a contragosto do pai. Ele jamais aprovou luxos assim; era exagero de conforto a quem viveu com roupas de ganho.

Bé tinha lastro financeiro. Investia nos voos altos de Cleobulina Lavadeira. Apostava em sonhos mirabolantes.

Não tive filha com voos de realizar esta façanha em ser patroa de si!

Protestou por semanas, meses. Certa manhã, o pai serenou. Parou com o moído. Como se tivesse desistido em apontar os defeitos na lavadeira, a filha Cleobulina.

Onde já se viu! de quando em vez, o marceneiro de muletas voltava ao moído. Uma lavadeira da beira do Panema ser dona de lavanderia?

Cerrava tábuas.

Senhora Santana, não me permitisse isso! o marceneiro agia como se não ouvisse o vocativo do filho.

Só mesmo em Santana! o marceneiro agarrava-se ao moído. E com essa idade, nunca pensei em ouvir da boca de filha minha, lavadeira, que ia ser dona de lavanderia! voltava a bater pregos, serrar tábuas.

O estio sobre o bioma do semiárido iluminou as suas cores. E a mudança climática global revelou viço à vegetação e deixou matutos estupefatos.

O clima entre o padre Velho, Polissíndeto e o Dr. Sicrano estava mudado. Apesar de o padre ter sido acuado por semanas por Dr. Sicrano e Polissíndeto, que exigiam dele que a cartilha da cruzada às curandeiras fosse seguida à risca.

Até então o interesse do Dr. Sicrano e Polissíndeto não foi alcançado. E a campanha na operação de combate às curandeiras arrefeceu com as chuvas.

O Dr. Sicrano dizia ao padre Velho, após a contenda das citações bíblicas, que estava parecido com Aliteração. Repetia fonemas iguais ao dizer-lhe:

Se na farra feria a fera, com ferro a fera feria! repetiu fonemas iguais, igual Aliteração ao dedilhar a sua viola de cocho. E quem vinha ferir saía ferido!

Selaram a paz o Dr. Sicrano, Polissíndeto e o padre Velho com a proposta dum semanário. O Dr. Sicrano apresentou ao padre e ao amigo Polissíndeto um projeto de jornal que trazia o título de O Liberdade de Expressão.

Formaram-se as nuvens d’água. Na sociologia das águas, sobre Santana passaram chuvas, deixam nas pessoas rastros, rastros nas pedras, nas paredes das casas. Fizeram do deserto oásis.

As chuvas encheram os potes d’água. As chuvas eram um acontecimento. As águas de chuva fizeram curvas, atraíram aves.

Craibeiras balançavam ao vento.

Trovoada despencou das alturas com graves ameaças, e tantas vezes ameaçou as craibeiras sem quebrá-las. Na sociologia das águas, todos os peixes fósseis ressuscitaram. Foi a multiplicação dos peixes no rio morto de sede cuja lama os sepultou.

As janelas das casas açoitadas. Pingos de chuva eram látegos.

Água veloz cortava à noite em todas as direções, eram nuvens pesadas d’água. Nuvens estoicas desceram ao chão encharcado.

Nas casas, a panela de sonhos sobre o fogão. As cisternas, agradecidas, durante as chuvas armazenam, sequiosas, toda a água.

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