RUA DA FEIRA

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

A caminho do Panema, o cortês Mil-Ciências, apressado porque a ciência tinha pressa, descia a ladeira com acesso ao comércio de Santana. Tangia oito ancoretas em um par de burros.

Na Rua da Feira, as toldas começavam a surgir. Cada feirante com a sua cor que se distinguia de outra tolda. Dona Xântipe e as filhas inauguravam a sua.

Dona Xântipe trabalhava em dias de feira numa tolda defronte a igreja da padroeira do município com a mãozinha de sua neta Asioteia, filha Temistocleia. Esta conhecida por seu domínio e competência na adição, sabia subtrair, quando preciso, multiplicava os interesses próprios, dividia o serviço com todos. As três gerações de feirantes vendiam coentro, além de outros temperos cultivados no terreno da casa que descia até a calha do rio.

Mais tarde, veio Hipácia – caçula de Dona Xântipe – à tolda dos temperos.

Sol ia alto em Santana. Bentevi, coletor de impostos, passava de tolda em tolda e cobrava.

Naquele dia, especialmente as maçãs do rosto de Hipácia atraíam pela beleza, quando esta saiu com o cobrador de impostos. Temistocleia, irmã de Hipácia, dirigiu-se à mãe com gestos, como se lhe indagasse qual o significado da irmã ter saído com Bentivi.

O comércio cheio de pés, mãos, braços, dúvidas e pechinchas. As casas residenciais ostentavam janelões abertos à rua.

Àquela hora do dia passavam os primos Dr. Cicrano e Dr. Sicrano, iguais, exceto pela grafia dos nomes, segundo o cartorário, que ia duas vezes à Europa, e era amigo de ambos. Parecidos no andar lerdo, na voz de trovoada, na solução de todos os males biológicos e sociais.

Dr. Cicrano e Dr. Sicrano em primos e bacharéis. Em Santana, um foi viver atrás de balcão de farmácia, outro atrás de votos. Este conquistou uma cadeira na assembleia.

A cidade encontrava-se na feira livre onde tudo era possível ser vendido e comprado. O comércio estabeleceu-se diante do templo da cidade.

Casas de comércio, que eram gordas e altas, portas esguias de madeira nobre, vendiam secos e molhados. Os fregueses, muitos destes com baforadas a torto e a direito de moenda de cana, mandavam encher o copo de vidro grosso e despejam goela abaixo.

O espaço, na sala de costuras de Elipse, era cheio de tecidos cortados, tesouras ávidas por cortá-los mais um pouco. Tesouras de tecido, de picote, de arremete, tesourinhas, linhas, agulhas, dedais, alfinetes, agulhas de mão, fita métrica, desmanchador, giz de tecido.

Toda a trama era formada como aranha que fazia o que veio fazer na vida de aranha. Tessitura formava-se na casa da costureira Elipse, irmã de Assíndeto, cunhado de Bentivi.

Tudo em Santana possuía um propósito. Antes, a costureira dizia que nasceu Penélope mítica sem motivo de esperar vinte anos a volta de Ulisses.

O que se sabia era que após um ano de intensa chuva no sertão, a costureira Elipse livrou-se de ser solteira, de fazer daquela vida o que toda a sua vida fez, porque não veio fazer o que cada vida na cidade demonstrava fazer. Este era o assunto que se conhecia. Nuvens estacionárias derramaram-se naquele ano. As nuvens ondulavam sobre o relevo e faziam a transformação da vida da costureira Elipse.

No ambiente de trabalho, lado a lado com a Singer, a costureira Elipse em seu relógio de areia passava horas, dias iguais, semanas, e meses parecidos, e anos, e décadas que se perdiam dentro de outras.

Estes fatos acabaram de chegar com a emancipação da escravatura, que fazia uma década. E a cidade levaria mais de século, nas palavras do honorário Machado, um dos sete maridos finados da costureira Elipse, até que começasse a emancipação a ter efeito na cidade.

Os sete maridos da costureira Elipse morreram um a um.

A costureira Elipse casada com Léxico, um daqueles ex-maridos finados, foi caixeiro-viajante. Ele apareceu em Santana como representante de remédios.

Léxico era desses viciados em sinuca, cerveja e aposta. Cantava samba em caixa de fósforos.
E, como amigo da sinuca, ficou na cidade. Léxico dominava as palavras de cada lugar que visitava. Cada gente uma língua, ele dizia, mesmo na mesma língua.
Com fala melodiosa, Léxico esfregava o giz no taco. A costureira Elipse o conheceu assim. Ele replanejava o jogo ao rever a posição das bolas, na mesa.
Léxico falava aos observadores em torno da mesa de jogo, que o jogador era ação entre o simples e o complexo. Jogar significava comunicação, era o uso de compreensão e assimilação em cada partida. Jogador sujeito abstrato, dizia a costureira Elipse.

Quase não se podia andar na Rua da Feira. Toldas de variados tamanhos. Algumas cobriam-se de marrom, outras de azul, havia cobertura roxa.
Na feira livre, o matuto gritava: Corra de burro, quando foge!

Duas, três vezes por semana, o santanense reunia-se em torno do templo consagrado a Santana, lugar da feira. De longe, na dobra do sino, o padre Velho, tio da costureira Elipse, mantinha todos em rédea curta.

Os prédios de comércio em Santana destacavam-se pelo tamanho e pela variedade. A presença burguesa, com empresas de médio e pequeno porte, em portas estreitas, geminava o seu ao comércio do vizinho.

Havia prédios de dois pavimentos que ofereciam espaços comerciais. Os capitalistas alugavam a um dono de bar, a um vendedor de sal, a um armazém, ao comércio de remédios.

Viúva de Léxico, a costureira Elipse conheceu Morfologia com quem, com a graça do padre Velho, realizou o matrimônio. Com festa na igreja do padre Velho e no cartório do irmão de Catacrese e de Sinestesia, que passeavam no centro de sombrinhas.

Casada com Léxico, a costureira Elipse experimentou variações lexicais. De braços dados, eles, no centro, sob o guarda-sol. Motivavam comentários dos desocupados, nas praças, embaixo do pé de ficus que enriquecia o paisagismo.

Com a morte de cada um de seus maridos, a costureira Elipse conhecia o vazio e a tristeza de perder-se quem se amava.

Entre os sete maridos da costureira Elipse, um deles, honorável Machado, nunca foi esquecido em Santana. O honorável amanhecia e anoitecia sobre uma mezinha, na sala de estar, escrevendo.

O honorável no leito nupcial com a costureira Elipse:

O universo sempre existiu. Diferente numa cidade, diferente duma casa; a cidade precisava de pessoas, a casa de terreno, pedreiro, alicerce, tijolos. As portas eram inventadas, copiadas de outras portas, noutros inventos de portas. o universo não, porque sempre existiu. Este não carecia de inventor, de motivos que lhe dessem existência perpétua. O existir não cabia na vontade, no desejo, na compreensão de entendê-lo.

Na primeira noite de lua de mel do honorável com a costureira:

Na cidade, tudo era vulnerável. As casas, nas ruas, que não se moviam, e mesmo assim guardavam segredos, eram cobiçadas, odiáveis, adoráveis, por elas se sonhava, matava-se e morria. Nas casas, a história mais antiga estava presente.

A história, dizia o honorável, fosse qual fosse, sugava a vida com forte sucção, e atraía a todos. A história não desaparecia nas paredes! – ele, na cama com a costureira, olhava pinturas de ex-maridos dela nas molduras de quadros pintados a mão. A história, falava, não desaparecia nas pessoas, no sangue das pessoas, nos hábitos, nas vontades, nos quereres. A história era como temperos vendidos na feira, defronte à igreja.

Como sabia tanto, Machado? a costureira perguntava cheia de vontade.

Passado, Elipse, a senhora precisava compreendê-lo: era papel-carbono do presente. Sem papel-carbono não havia presente. Cada presente dependia de sua cópia e, se não fosse assim, seria impossível existir o presente.

Sobre o travesseiro, a costureira Elipse admirava-se do honorário.

As terras, perguntava ante a admiração dela, permitiam transitar por elas? Desde que quaisquer transeuntes reconhecessem e respeitassem que qualquer terra possuía dono. O universo era diferente, e a diferença era diferente do nosso ideal que diferenciava uma coisa da outra. Porque uma coisa só era uma coisa, porque uma coisa era uma coisa, e pronto.

Honorável Machado ficou por 15 dias na cama, ele e a costureira Elipse, como se lhe enchesse as ventas de folhas. Os pedidos de conserto de roupa, camisa, vestido, calção, as costuras atrasadas, clientes na porta da costureira que não lhes dava atenção por 15 dias. O honorável Machado com os assuntos, e a mulher impressionadíssima. Queria descobrir, sob aquele cavanhaque, como a capacidade do honorável falava tanto.

Correram-se dias na casa da costureira Elipse e do honorável Machado, ela nas costuras, ele nos livros. Assim, eles gozavam a vida.

Ali no centro, Antítese e Paradoxo jogavam dominó, e trocavam silêncio pelo barulho das pedras numa mesa cansada na porta dum bar. Vida não era uma garrafa em cujo interior preservava-se uma carta com manchas gráficas sobre o nada, mera narrativa curta de ficção, um canto de amor e amizade, um conto de horror cósmico.

Seu Eufemismo, na porta do armazém, gordo e sorridente, puxava com a ponta dos dedos e soltava o suspensório plaft! sobre o ventre volumoso plaft! Dona Paronomásia, no caixa da padaria, contava os couros-de-ratos e sorria aos clientes.

A pena do honorável corria do tinteiro ao papel. Pilhas e pilhas de letras e textos cujo papel era cronificar a cidade. Nunca recebia incentivo pecuniário por esta labuta. Labutava por diletantismo, como costumava anunciar nas bodegas onde comprava papel e tinta.

De longe, na tolda de temperos, Temistocleia, filha de Dona Xântipe, viu quando Assíduo saía da casa da costureira Elipse. Assíduo, julgou Temistocleia, foi provar alguma roupa nova que a costureira fazia por encomenda.

Veio rápido a enxurrada em Temistocleia. Cada vez que ela via Assíduo, caía-lhe o temporal de lembranças.

Assíduo não largou a vizinha Temistocleia durante toda a gravidez de pai desconhecido, quando dela nasceu Asioteia, neta da feirante e curandeira Dona Xântipe e do marceneiro da Rua da Cadeia. A mãe de Assíduo era madrinha de Temistocleia.

Na cidade, se alguém queria distância de Assíduo era Temistocleia. A sua filha, Asioteia, foi criada nos braços de Assíduo desde os cueiros. Ele a ensinou a andar, a conhecer as primeiras palavras faladas e escritas; ela vivia como filha de Assíduo, quando não era.

Uma vira-lata começou a acompanhar Dona Xântipe em volta de casa, no cercado dos temperos, correr atrás de passarinhos no terreno da Rua da Cadeia, ir ao leito do rio. Ganhou a rua com Dona Xântipe, apareceu nas feiras. Deitava-se agora debaixo da tolda e rosnava com ameaças terríveis a Assíduo.
Os clientes de Dona Xântipe queriam saber qual era o nome da cachorra.

Oxe! surpreendia-se Dona Xântipe. Cachorra era cachorra!

E não tinha nome de gente, Dona Xântipe?

Não botei pra cachorra não começar a pensar que era gente.

As conversas que se conversavam, na Rua da Feira, nas bancas, toldas das feirantes de temperos, eram sempre estas. Uma pessoa disse à outra:
Dessa água não beberei! a primeira morreu de sede, e a segunda afogou-se no Poço das Tripas.

Entre as conversas que se conversavam, uma mulher parou de comer carne por causa da idade, outra por causa do preço.

Eu vi o Sol! disse o velho que levava feijão aos armazéns. O Sol era uma moeda de prata presa ao céu. Quando a moeda caísse, o mundo acabava-se depois da explosão das nuvens que soltava poeira d’água na terra do feijão. Eu vi o Sol que ficou imóvel, inofensivo, enfermo na poeira d’água ao meio-dia.

Assíduo, expulso da banca de tempero verde pelo rosnar da cachorra que se entocou debaixo da tolda de Dona Xântipe, deixou a Rua da Feira. Grudado às palavras da costureira Elipse:

Nem todo o mundo sabia o que podia fazer um beijo de língua!

Assíduo não largava as palavras da costureira Elipse. Na feira, fez o que fez a Temistocleia, seguiu à risca as palavras da costureira Elipse, e foi chutado da tolda com o rosnar e as ameaças terríveis que se entocaram debaixo da tolda de Dona Xântipe.

A costureira Elipse, que aprendeu o que podia fazer um beijo de língua, foi de celibatária à casamenteira. Levou sete de Santana ao outro mundo.
No trajeto, Assíduo conversava consigo mesmo:

A casa, que era diferente da rua, que era diferente da cidade, que era diferente das pessoas e tudo o que nelas se abrigavam por dentro e por fora, visíveis e indivisíveis…

Em Santana, em cada casa um quintal imenso. Os quintais em Santana eram do tamanho do mundo.

Naquelas casas, naqueles quintais havia obediência a todas as fés porque o santanense preservava o espírito grego antigo, aquele, o que aparecia em Atos dos Apóstolos. Em casa se construía o altar ao deus desconhecido.

No caminho de casa, Assíduo lutava a luta vã com as próprias ideias:

Uma boca, que cabia noutra boca, que cabia numa casa... Uma casa, que cabia numa rua... Uma rua, que cabia numa cidade…

Nos quintais das casas em Santana cabiam mundos profanos e religiosos, urbanos e rurais, opulentos e sem nenhum recurso. Nos quintais cabiam a fome e o desperdício, o crime e o remorso, cabiam a noite e o dia, o Sol e a Lua.

Mil-Ciências, que subia a ladeira, estalava o relho atrás do par de burros.

Em casa, Assíduo queixou-se à mãe com todos os porquês impossíveis, porque os possíveis faliram na Rua da Feira. Os porquês de Assíduo perderam-se na tolda de Dona Xântipe, no desprezo de Temistocleia, que demonstrou nojo da boca de Assíduo com o seu escarro.

Assíduo atravessou as portas de casa com chutes.

Movido pela estupidez, ele conseguia satisfazer-se consigo mesmo? após a pergunta que fez a mãe de Assíduo à sua eterna paciência, a resposta foi a de que era a própria estupidez dele que o fazia satisfazer-se consigo mesmo.

Ele a encontrou limpando a gaiola. Assíduo abriu a portinhola onde a mãe trocava o xerém do coleirinha, que ele ganhou no dia mais feliz de sua vida, e o segurou preso à mão. E fechou os dedos. E apertou demoradamente, e esmagou aos gritos da mãe acompanhados de repetidos porquês.

Coleirinha abriu, fechou o bico. Estava morto.

Temistocleia não te queria como marido! a mãe gritava.

E o sangue correu entre os dedos de Assíduo. O sangue tingiu a gaiola.

Ante a pintura, a mãe demonstrava não compreender os sentimentos de paixão de Assíduo por Temistocleia, sua afilhada. Nenhuma tala da gaiola ficou inteira.

As frustrações esbarravam nas talas da gaiola: da ave derradeira morada. Talas quebradas, Assíduo pisoteou o que restava do cárcere.

Não fosse fazer nada à filha de minha comadre, Assíduo! a mãe a impediu ao lhe segurar na manga da camisa. Hoje, arrastaram dois na Rua da Cadeia; um, por quebrar a cara da mulher, e o outro por esfaquear só porque queria vê-la sangrar.

Canto do passarinho emudecido. Grades que o aprisionavam destruídas.

Eu era Nada! a mãe de Assíduo soltou. Teu pai era a segunda pessoa de Seu Ninguém. Como Ninguém e Nada iam agora te ajudar, Assíduo?

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