SANTANA, A VELHA, O VIZINHO, ‘OUMUAMUA E BIÁ

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

O criado-mudo parecia rir da Velha. E palavras compostas multiplicavam-se como obra-prima, porta-malas, bate-papo, bate-boca, desmancha-prazeres.

Não havia nenhuma juventude duradoura.

Naquela noite, a Velha foi visitada outra vez pelo medo. Disse ao vizinho sentir nela a presença do vazio de Biá. Biá se foi pra nunca mais. E ficou horas acordada, na cama. Refletia a passagem da véspera. E imaginou o ‘Oumuamua carregado de mistérios.

Presa à insônia, parou a Velha ponteiros sobre a solidão que lhe sufocava acelerando batidas no peito. Demonstrou-se arrependida de coisas no passado que não passavam. A pouco e pouco, vinha o peso que não a deixava agarrar-se e fugir no carro luminoso do sono.
Quando foi arrebatada, não soube dizer. Sequer percebeu a Velha que, levemente, as portas estavam sendo abertas. E foi atravessá-las. Uma a uma. Atravessando-as. Passou pelo Cristianismo, em outra, teve acesso ao Budismo, e desta foi às portas do Taoísmo e do Confucionismo. Atravessou as portas do Jainismo e do Sikhismo. Abriu-se-lhe a porta do Espiritismo.

Ia alta a noite em Santana.

Seguiu a Velha nos corredores hora claros, hora escuros. Chegando à porta do Xintoísmo. Entrou no Judaísmo. Atravessou as portas da Umbanda e do Candomblé. Em sua caminhada, a Velha parecia sentir a força da criação.

E amanhecia em Santana.

Ela recolhia o que pudesse, e a amontoava em casa. Caixas vazias de ovos eram comuns, inúteis e amontoadas. Levava ao pé da letra a lei de Lavoisier: a lei da conservação de massas era usada como ganha-pão. Uma porta velha, ela guardava; talvez fosse usá-la um dia. Fosse uma maçaneta quebrada, fosse uma caixa de fósforos vazia, fosse uma dobradiça enferrujada, um vidro de conserva vazio e sem tampa – tudo dava-lhe motivo em amontoá-los.

E escurecia. Os moradores que alugavam o casarão da Velha, juntavam-se a outros caminhantes, tomavam rumo ao Ginásio Santana, à Contabilidade.

Girava o mundo no espaço sem oferecer nenhum perigo aos seres vivos?

Estrangeiros, naquela época, chegavam e saíam de Santana.

No casarão, nas primeiras horas da manhã, no terreno amplo, os pés de Biá iam lá em cima, voltavam no balanço amarrado em galho na mangueira. Biá fechava os olhos, e inclinava o corpo, presos os braços com as mãos firmes nas cordas, e balançava-se.

No quintal, o banheiro fora de casa derramava água em cachoeira quando havia água em Santana. O vento antes do meio-dia varrendo as folhas secas.

Vizinho, aposentado das aulas de Física Quântica, esperava a Velha pôr os olhos fora de casa. Cercava-a de conversas; fazia-lhe convites à outra sessão de cinema; falavam vizinho e vizinha sobre a última descoberta de que não havia água em Marte, porque nunca houve.

Acumulava a Velha tudo o que estivesse ao seu alcance.

O casarão atravessou dois séculos, sem atrapalhos nos tique-taques do tempo. A residência continuava firme, na rua de nome engraçado, em Santana.

Desaparecesse com teu bucho, criatura! gritou a Velha agitando os braços moles, naquele chitão folgado. Atravessou as paredes com largura de fortalezas coloniais à beira-mar, janelas e portas de madeira de lei, altas e largas; sumiu a Velha batendo a porta, depois de ter expulsado Biá de casa, como fizera à mãe de Biá. Biá grávida a contragosto.

Afinal, de quem era essa república? a Velha perguntava às paredes, pois apreciava falar só, falar para si por quartos e corredores. Hã! hein! hem! metia a colher em tudo e tinha o hábito de ouvir atrás das portas. Falasse de quem era a República? Perguntasse a Platão. Hã! hein! Afinal, de quem eram as nuvens? Perguntasse a Aristófanes.

Como se conhecia por todo aquele lugar, Hefesto, feio e manco, orientava, desde tempos imemoriais, artesãos à tecnologia. Era dele a infoera e tudo o que a ela estivesse associado. Não havia figura mais horrenda, figura a demonstrar certo horror cósmico. Quem não se lembrava dele naqueles versos, no canto de trabalho, durante a colheita de feijão? a Velha resmungava. Procurasse Hefesto, teu pai! arrastava a Velha os chinelos. Não largava nunca esse celular!

Não lavava a própria roupa suja! seguiu a Velha. Nunca levava a roupa lavada da máquina ao varal, reclamava, e não recolhia uma roupa seca. O tempo todo com esse celular na mão. Não aprendeu a fritar um ovo, fazer um feijão, ir à feira. Não tirava um prato da mesa! a Velha não parava de falar sozinha. Não passava uma vassoura na casa!

Caminando por la calle

¿Por qué no te callas? cantarolou a Velha agitando o corpo sugado pelo Sol. Caminando por la calle. Gravidez por estupro! a Velha fez um gesto.

Em torno daquela casa havia de tudo. Vasos de planta à vontade, entulhos à vontade, sapatos furados, chinelos roídos, latas vazias comidas pela ferrugem, bolsas estragadas à vontade, panelas inúteis, utensílios à vontade, um pulgueiro, no dizer de Biá.

Árvores, heras, flores, folhas de chás. Fruteiras malcuidadas e limoeiros tortos cobertos por musgo. Naquele ambiente, avançava falando sozinha:

Gente só sabia que não sabia, disse a Velha a si mesma, quando a gente sabia de vera e não de brinca. Antes, impossível saber se não se sabia!

Nos dias anteriores de ser expulsa do casarão, sem saber sobre o próprio destino, tampouco o dia de amanhã, Biá, lá no balanço, acreditou ter visto disco-voador. Semanas depois, Biá sem chão, a cabeça uma esponja.

O vizinho da Velha, dobrou os braços no muro baixo que dividia as casas. Ela estendia roupas molhadas no varal de cordas amarradas entre as fruteiras, ele saboreava Hollywood.

Que culpa tinha uma criança? ele falou. Uma criança que se fez adulta. Ingênua, sonhava e dizia, persuasiva: Os outros conseguiram. Por que eu não conseguia? E foi criada, dum lado as violências, doutro o analfabetismo.

Soltou muxoxo de desprezo, e continuou espalhando as roupas molhadas nas cordas. Sol a pino.

Que culpa teve a criança? acendeu outro Hollywood. Ainda na puberdade foi transformada em prostituta e viciada.

Outro muxoxo.

Teve um filho, abortou os próximos, a mãe dela. E era sifilítica, era bonita, e era sensual, era inteligente, e era responsável, e era sensível.

Em silêncio, a Velha apanhava roupa molhada na bacia de plástico roída de sol e levava às cordas. Sol refletiu na cor cinza da bacia, no chão gramado.

Quem lucrava com violências? Quem lucrava com analfabetismo? Quem?

Finalizadas as roupas molhadas na bacia de plástico roída de sol, a Velha aproximou-se do muro baixo que dividia a casa dela da casa dele.

Ela encontrou o que procurava, disse a Velha ao vizinho envolto naquela nuvem de fumo. Preferia ser governo dos ignorantes, a ser dos informados. Era considerado papo-furado falar isso. Tinha comida no fogo!

O isqueiro acendeu um novo Hollywood.

Fosse atrás do que fazer! ignorou a Velha as conversas do vizinho. Esse povo chorava, porque não tinha onde morar. Sentia-se inseguro no emprego. Em cada casa, uma história triste; em todo amor, uma grande desilusão. Esse povo expulso do convívio humano, preferia falar por um tubo de imagens. Fosse atrás do que fazer, fosse! Se o senhor não tivesse o que fazer, eu tinha.

Ele soprava, formava em torno de si mais nuvens escuras.

Manipulando cada vez pior, disse, um montão de gente grande e pequena.

Ela fez-lhe menção de afastar-se.

Quantos exploradores de mansões, exploradores de calçadas?

Dentro de casa, na cozinha da Velha, pratos e xícaras do café da manhã continuavam sobre a mesa. Talheres untados de doces e salgados motivaram a festa das moscas, que eram tantas.

Os pés e as mãos nos corpos que entravam e saíam do casarão, na rua movimentada, não se importavam com aquele cheiro azedo que saía da cozinha da Velha. Nos banheiros, o cesto acumulava papel higiênico usado.

Nos azulejos da cozinha ampla e iluminada, formigas percorriam frestas em sua jornada à mesa. Regalavam-se as formigas entre os grãozinhos doces e as cascas de pães.

Debaixo da mesa, na cozinha, dois gatos gordos sonhavam e sorriam. Na parede, o calendário dividia o espaço com quadros baratos. Gatos atravessavam o dia dormindo.

Quadro de artista ignorado retratava na moldura a Velha em tamanho real. Permanecia o quadro da Velha por décadas, naquela parede cuja tinta havia morrido. Com as cores primárias, o artista pintou a Velha acocorada ao lado de uma cadeira, catando feijão.

Em toda a parte, no casarão havia entulhos e mais entulhos. As sacolas de roupas empilhadas à boca, nos móveis todos, sobre todas as camas. Sob as camas, caixas com roupas sujas, velhas, compradas, herdadas desde o século passado.

Vasilhas comidas por ferrugem, vidros vazios amparando insetos, restos de madeira, sapos disputando insetos, mosquitos gestados em água acumulada, cadeiras quebradas, e mesas à espera de conserto, guarda-roupas sem portas, dois ou três fogões aposentados, ferro, prego, serrote, martelo, tábuas. E em volta à habitação de telhado alto, brotavam ervas e escorriam ao chão. Janelas banguelas: faltavam-lhes vidro em alguns vãos.

Nenhum livro na casa da Velha. Sofás rasgados, nos cômodos. Paredes forradas de imagens sacras.

Quando não cantava, rezava. Pedia a Velha perdão dos pecados.

Na hora do almoço, a Velha comia uma caturra. Em defesa de seu café, a Velha lutava de manhã evitando que alguém avançasse sobre o mamão que guardava em lugar oculto, na geladeira.

A adolescência, Biá, não durava a vida toda, disse a Velha. Exceto a de alguns, concluiu. O que você pensava, criança? Vida não era um bolo confeitado!

Imóvel. Biá em silêncio. Seus olhos apontados ao infinito. Ela manifestava aumento da frequência cardíaca sempre que o vizinho da Velha se aproximava.

Biá viu disco-voador, foi? quis saber o vizinho. Nós vivíamos aqui feito uns grãozinhos de areia. Biá sabia disso? Nesse universo havia bilhões de galáxias. Biá sabia? Não se falava noutra coisa depois da passagem do ‘Oumuamua.

Não só o vizinho fedia a cigarro. Sua roupa, seu hálito, tudo era fétido.

Aquele casarão possuía diferentes ambientes, com diferentes tamanhos, abrigava diferentes pessoas vindas dos mais diferentes lugares. Não era o único casarão naquela rua, havia outros. O vizinho ocupava um deles também; com o hábito de apoiar cotovelos no muro baixo e estabelecer bate-papo com a Velha, jogar conversa fora.

Era outra tarde agradavelmente quente na cidade. O clima sofreu outra mudança brusca, como um evento que mudou a música com The Beatles.

Placas tectônicas não eram as mesmas depois das guerras. As geleiras revelavam cadáveres milenares, até extraterrestres deixados na Terra por discos-voadores.

Os meses misturaram as estações, e os horários não correspondiam mais às expectativas dos que dependiam do tempo, das horas. Talvez fosse verdade que, lá fora, existissem mesmo um zetta ou mais de planetas habitáveis. Aquele número perturbava a Velha, enquanto exterminava as formigas que ameaçavam o roseiral. E ela ficou repetindo 1.000.000.000.000.000.000.000 um zetta durante o extermínio.
Em cada cômodo no casarão, a Velha encontrava-se feito visagem. Quando se imaginava sem ninguém, lá estava ela fiscalizando, revirando papéis, roupas, na busca incansável de novidades.

Durante as refeições, a Velha sentava-se à mesa e fiscalizava cada gesto de quem se alimentava em sua mesa. Acompanhava a colher e o garfo indo na boca da fome de seus hóspedes. Olhar fixo. Do prato à boca, a Velha demorava o olhar. E morria de ciúmes de sua cozinha e de tudo o que nela havia.

Era atraída a Velha pelos enredos trazidos nas conversas do vizinho. E ele trazia-lhe “Entre Deus e o pecado”, e a convidava a revê-lo na máquina doméstica de reprodução de filmes em sua casa.

Sentavam-se o vizinho e a Velha acompanhando a trajetória do vendedor, interpretado por Lancaster. As pregações e as conversões graças as habilidades do orador, no filme “Entre Deus e o pecado” adorado por ambos.

Outras vezes, a Velha divertia-se com “Uma noite na ópera”. E riam ela e ele com a anarquia de Groucho, Chico e Harpo. As gargalhadas abalavam suas estruturas
.
Outra noite, quando se acalmava o vaivém no casarão da Velha, era “Gata em teto de zinco quente” na tela do vizinho, voltando os dois às interpretações de Elizabeth e Paul, na adaptação de Williams. E quando não era “Gata em teto de zinco quente”, era “Dr. Jivago”.

A primeira versão de “Onze homens e um segredo” avançava noite afora. E madrugada adentro, “Grande hotel” com Greta Garbo, Joan Crawford e John Berrymore.

Ele “No tempo das diligências”, ela no “Ricardo III” de Laurence Olivier. E na semana seguinte, “A Condessa de Hong Kong”, na direção de Chaplin; e pulava da Condessa ao “Monsieur Verdoux”.

De locais secretos saíam ratos e baratas, nos casarões.

Era o lugar-comum a matéria da poesia. Não se exigia que ela falasse do que ainda não foi falado. Era livre a poesia, disse o vizinho à Velha. E com violão, o vizinho demonstrou que Dante, o florentino, usou versos, não florim assassino.

As conversas do vizinho impressionavam a Velha. Nem a palavra ferina, disse o vizinho, usada na ofensa ao velho, ao moço, ao menino. Dante traçou de três em três linhas os versos, criando destinos. Inferno, Purgatório, Paraíso. Dante buscava o que tinha perdido.

As paredes do casarão perebentas. O mofo as devorava a pouco e pouco.

De sete em sete sílabas, dedilhava o vizinho redondilha maior. Deliciava-se a Velha no aconchego métrico, nas cordas do violão.

Palitava o vizinho os cacos de dentes roídos por cáries. Usava um espelho contra a luz, e cavoucava as panelas cheias de resto de comida. Por fim, fazia bochecho com água de sal e arremessava cusparadas na tentativa de higienizar o que não lhe cabia higiene senão à cadeira de dentista.

Dedilhando o violão, após a sessão de cinema, ia alto o sertão, e o vizinho no sofá ao lado da Velha. O verso era livre, dizia ele, se a poesia reclamasse ao sentir fome de palavras, e cabia-lhe qualquer uma, pois a fome não tinha escolha nem fazia birra, comece, porque qualquer palavra lhe servia de alimento.

Cantava o vizinho versos de sílabas amplas, versos de sílabas curtas. E a Velha olhava o relógio que não esperava por ninguém. Ficou tarde, a Velha ali ao lado das cordas, não se cansava em repetir ao vizinho que precisava dormir. Por que ir tão cedo? o vizinho queria saber.

Não acreditava nesse papo-furado da existência de Homero, cego e pobre que andava de feira em feira falando histórias por versos. Seguiu o vizinho com a poesia dedilhada ao violão. Criava feito poeta, a Velha ria naquele fim de noite.

O vizinho arvorava-se cheio de estórias.

Herdeira de estrangeiros, a Velha mostrava outra vez ao vizinho o álbum de fotografias. Minha família ganhou vida com a oralidade, disse a velha, porque era analfabeta e sem rima.

A vida não seria só uma noite de sono! disse o vizinho à vizinha com seus lábios em seus dedos. Depois a Velha saiu dali mastigando palavras dele: Se a vida não fosse somente uma noite de sono...

Entrou a Velha em seu quarto abarrotado de pacotes grandes, pequenos, improvisados. Roupas dentro de sacolas plásticas, sapatos em sacolas de papel, lenços em bolsas. E a Velha sorriu arreganhando dentes postiços, tirou-os e eles ficaram sobre o criado-mudo. Ficou a Velha rolando na cama à procura de sono que não vinha.

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