O senador assinou a carta de despedida, pegou o revólver na gaveta da escrivaninha, engatilhou a arma e a apontou para o próprio peito. Aguardou um instante. Lembrou-se da sua última posse, do discurso na tribuna, das promessas de que trabalharia em defesa do povo, da democracia, do seu Estado, do País... Entretanto, como pano de fundo de suas memórias, apareciam centenas de cadáveres humanos, pessoas mortas devido a falta de assistência médica, inanição ou cirrose hepática provocada pelo consumo de uma péssima aguardente de cana. Eram imagens de um pesadelo que já passara a atormentá-lo mesmo em estado de vigília. À medida que sua conta bancária crescia, a multidão de fantasma aumentava. O senador até já havia observado que a proporcionalidade estava se aproximando da razão de um por mil: a cada um milhão de reais depositados em sua conta, mil novos espectros somavam-se à fantasmagórica multidão que já o obsidiava desde sua primeira legislatura.
O telefone chamou. No sexto toque, resolveu atender:
─ Alô!
─ Excelência!
─ Sim.
─ Aqui é o Santiago.
─ Santiago?!
─ Santiago Arruda.
─ Do Planalto Diário?
─ Ele mesmo, excelência.
─ Em que posso servi-lo?
─ Gostaria de marcar uma entrevista com vossa excelência.
─ Entrevista?
─ Sim, excelência.
─ Pra quando?
─ Amanhã à tarde está bom para o senhor?
─ Impossível.
─ Então, na sexta pela manhã.
─ Não vai dar.
─ Nesse caso, o senhor mesmo pode marcar dia e hora mais adequados à sua agenda.
─ Hoje.
─ Hoje?!
─ Agora.
─ Agora?!
─ Sim, agora! Já! Onde você está?
─ Na redação.
─ Então, não leva mais que quinze minutos pra chegar aqui - desligou.
O senador notou que, todo o tempo em que falou ao telefone, mantivera a arma apontada contra o peito. Guardou o revólver na gaveta. Resolveu reler a carta de despedida. Deteve-se no primeiro parágrafo:
"É comum que, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente ponha fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Alguma coisa parecia errada. Releu o período, mas continuou em dúvida. Deixou a folha sobre a mesa, foi até o computador, abriu o documento "Carta de Despedida" e continuou relendo o primeiro parágrafo. Trocou "É comum que" por "É natural que", em seguida por "É normal que". Nada, nenhuma das modificações pareceu alterar o sentido da frase. Experimentou "Via de regra". Achou que assim ficaria melhor. Antes de imprimir, corrigiu o verbo "pôr", agora flexionado no presente do indicativo: "põe". Imprimiu a página e voltou para a mesa de trabalho. Releu mais uma vez:
"Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Ainda não estava convencido de que as modificações expressariam com maior clareza o motivo que o levaria a cometer o suicídio.
Bateram à porta.
─ Entre!
Era a governanta conduzindo Santiago Arruda. Guardou a carta de despedida na gaveta, cumprimentou o jornalista e lhe indicou uma poltrona. Depois do cafezinho, Santiago iniciou a entrevista.
─ Excelência, estamos fazendo uma matéria para o nosso caderno semanal de literatura, gostaríamos de saber o que os senadores leem. No momento, o que o senhor está lendo?
O senador teve uma ideia: aproveitaria a ocasião para esclarecer sua dúvida sobre a frase de abertura da carta de despedida. Mentiu:
─ Estou lendo "As razões", um romance de Carlos Miguel...
─ Não conheço.
─ Nem poderia, trata-se de um autor desconhecido, lá de minha terra, um jovem escritor que me mandou sua primeira obra. Eu contribuí para a sua publicação.
─ Posso ver? Se o senhor quiser, podemos divulgar no caderno literário do Planalto Diário.
─ Não está aqui, está no meu gabinete, no Senado. Mas... já que estamos falando do romance "As razões", eu queria consultá-lo sobre uma passagem dessa obra.
─ Se eu puder ajudar...
─ Bom, é a respeito da carta de um suicida. Um banqueiro resolve suicidar-se e escreve uma carta de despedida.
─ É comum os suicidas escreverem cartas de despedida. Mas o que há de duvidoso na carta do banqueiro?
─ Estou em dúvida, não sei se há alguma coisa propriamente errada. Mas eu me lembro bem da frase. Anote aí.
─ Pode ditar.
─ "Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Santiago anotou e leu a frase em voz alta. Concluiu:
─ Aparentemente, não há nada errado. Um paradoxo, alguém se suicidar devido ao fracasso alheio, mas não seria nem tão contraditório se o fracassado fosse alguém de sua família ou mesmo do seu relacionamento afetivo.
─ Nem do ponto de vista sintático?
─ Deixe-me ver ─ Santiago releu todo o período. - Não, não estou identificando qualquer erro sintático.
─ Tudo bem, esqueça, nem sei por que cismei com isso...
Ao final da entrevista, o senador acompanhou Santiago até a saída e prometeu lhe mandar o livro do seu afilhado escritor.
No carro, Santiago abriu o bloco de anotações e releu a frase:
"Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Pensou: "...bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio". Não, não falta nenhuma vírgula. Pelo visto, o rapaz conhece bem os banqueiros.
Deu partida no carro. Nem escutou o tiro que estourou o coração do senador bem-sucedido, em razão do fracasso alheio.
(*) Fernando Soares Campos é escritor, autor, em parceria com o seu irmão Sérgio Soares de Campos, de obra biográfica, retratando a vida de “Adeildo Nepomuceno Marques: um carismático líder sertanejo”
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