Padre Francisco Correia, o legítimo fundador de Santana do Ipanema (*)

Artigo

Por José Marques de Melo – In memoriam (**)

Centro de Santana do Ipanema, década de 1920

À memória de Maria Audite Wanderley,
educadora exemplar,
e de Hélio Rocha Cabral de Vasconcelos,
estadista emblemático ,
que deram sequência e consequência
à missão civilizadora do fundador da cidade.
Homenagem do ex- aluno,
no transcurso do aniversário dos 110 anos
de nascimento da mestra,
e do munícipe beneficiado pelo trabalho ousado
do ex-prefeito que construiu bibliotecas, museus
e outros espaços para difusão da cultura.

Controvérsia

Centro urbano incrustado no Sertão Alagoano, Santana do Ipanema constitui-se como dinâmico polo comercial e promissor núcleo educativo, alavancando o desenvolvimento de uma microrregião identificada pela produção agropecuária e os serviços mercantis.

Outrora alfinetada como “espinhosa” ou desdenhada como “pedregosa”, a cidade forjou suficiente autoestima, capaz de orgulhar-se hoje como uma terra “varonil”. Seu “povo festivo e alegre” reivindica o título de “rainha do sertão” para a comunidade banhada de forma intermitente pelo rio Ipanema, mas abençoada continuamente por Santa Ana, que o catolicismo venera como mãe de Maria e avó de Jesus.

Embora seu hino oficial exalte o “passado de glórias”, a verdade é que seu presente historiográfico permanece envolto por brumas, evidenciando enormes lacunas, que desafiam o rigor e a competência dos historiadores, na ausência de fontes documentais confiáveis.

Algumas questões suscitam controvérsia pública, começando pelo marco fundacional. Ainda não se sabe exatamente quem fundou a cidade. Em que época? Com que intenção?
(h4>ComunidadeCostuma-se balizar a fundação dos núcleos urbanos pelo critério exclusivamente jurídico, ou seja, a partir da legislação civil que dispõe sobre a organização do espaço municipal. Nesse sentido, Santana do Ipanema só passa a existir como município no século XX, embora sua vida comunitária remonte ao século XVII. Primitivamente se constitui como aldeia sazonal dos índios fulniô, assumindo depois a fisionomia de arraial povoado por mestiços em trânsito, lutando pela sobrevivência, até se estabilizar como arruado que agrupa trabalhadores livres, dedicados ao cultivo da terra ou à criação de gado.

Diante desse quadro, impõe-se uma questão substantiva: o que é uma comunidade? E outra adjetiva: o que caracteriza um espaço dessa natureza?

A revisão das fontes referenciais disponíveis sugere três possibilidades: uma cronológica – “inicialmente um aldeamento de índios” (Barros, 2005, p. 519); “concentração populacional não agrícola” (Aurélio,1999, p. 469); outra demográfica – “um insignificante arraial habitado por índios e mestiços” (Barros, 2005, p. 519), ou melhor, um “complexo demográfico dedicado a atividades de caráter mercantil, industrial, financeira e cultural” (Aurélio,1999, p. 469); “e ainda uma terceira civilizatória - “expressão simbólica” gerada pela “necessidade humana de contato, comunicação, organização e troca” (Aurélio, 1999, p. 469); chegando ao local o missionário “levantou uma igreja” (…), onde “em pouco tempo conseguiu implantar entre os habitantes os preceitos da religião e princípios da civilização” (Barros, 2005, p. 519).

Considerado o fator “cronológico”, voltamos ao princípio da colonização, no século XVII, quando os sobreviventes dos índios caetés, perseguidos pelas forças lusitanas, se refugiavam no sertão, às margens do rio Ipanema.

Privilegiado o fator “demográfico”, a criação de nossa cidade retrocede ao século XVIII, quando aqui transitam os missionários franciscanos, com a finalidade de evangelizar os índios e caboclos que se arranchavam na confluência do riacho Camoxinga com o rio Ipanema.

Mas se tomamos como parâmetro a variável “civilizatória”, sem dúvida a comunidade só começa a existir a partir de 1812, quando aqui se estabelece o Padre Francisco Correia. Realizando atos litúrgicos na capela de Senhora Santana, atrai devotos fervorosos, pessoas ávidas de contato e de comunicação, mas também realizando trocas nas feiras que se improvisam nas cercanias da capela, demandando organização do espaço para edificar moradias ou albergues.

Isso atrai os pecuaristas, interessados em assenhorear-se das terras devolutas aqui remanescentes e se beneficiar da mão de obra formada pelo “exército de reserva” dos agricultores “sem-terra”.

Foi lenta, sem dúvida, a formação de uma comunidade estável às margens do Ipanema, durante o período em que o Padre Francisco Correia fez daqui um lugar de trânsito. O povoamento permaneceu escasso e sazonal, de acordo com o registro feito pelos historiadores, alterando-se o quadro a partir do momento em que o pregador franciscano aqui se estabeleceu. A localidade passou a ter vida, movimento, repercussão.

Deixando de ser “lugar de passagem”, converteu-se em “espaço agregador”. O cônego Theotônio Ribeiro apreende a intensa transformação ambiental resultante da permanência do missionário no local em que fora construída a capela de Santana: “o povoado (…) se foi constituindo e incrementando”… (…) “dali saía a doutrinar os povos”, {usando} “o verbo forte e vibrante, mas a um só tempo aliciante”.

Idêntica percepção revelam os historiadores Floro e Darci de Araújo Melo, autores de Santana do Ipanema conta a sua História (Rio de Janeiro, Borsoi, 1976, p. 23/24), reconhecendo a importância do fator religioso na fundação da nossa comunidade.

Douglas Appratto confirma essa tese, assegurando que “as origens históricas do atual município de Santana do Ipanema estão intrinsecamente relacionadas ao movimento missionário católico”. Desta maneira, não hesita em proclamar: “o padre Francisco Correia é, sem dúvida, uma de suas mais expressivas figuras e um dos seus fundadores”. (Appratto, 2006, p. 189)

Argumento consistente está contido na hipótese aventada por Tobias Medeiros (2011), lembrando que a comunidade de beatas, criada pelo Padre Francisco Correia só foi estabelecida depois de 1812, com a finalidade de albergar mulheres devotas, dando continuidade aos serviços eclesiais, zelando pela capela de Sant`Ana e fazendo caridade aos pobres e enfermos que peregrinavam pela localidade.

Coube a Tadeu Rocha (1971, p. 4) verbalizar de modo adequadamente factual a natureza sócio-cultural e político-econômica do processo que dá sentido à ação pastoral do Padre Francisco Correia.

Documentando que “há 200 anos já eram vendidas terras na região de Santana do Ipanema”, o geógrafo-historiador explica cronologicamente: “…foi no mês de julho de 1812 que o homem de Deus, pastor de almas e civilizador da terra volta a fixar-se na povoação que ele mesmo fundara, 25 anos antes. O padre Francisco retornou a Santa Ana da Ribeira do Panema a fim de melhor exercer a sua missão apostólica nos sertões do Nordeste; Mas não era só entre fazendeiros e vaqueiros que o santo merecia veneração. Também nos meios político-administrativos foi grande a sua fama de conhecedor das terras e das gentes do interior alagoano.”

Fundador

A credibilidade conquistada no jornalismo e na academia respaldou a iniciativa de Tadeu Rocha ao solucionar dois enigmas pendentes da História santanense. Ele não apenas sinaliza o marco fundacional da cidade – julho de 1812 – mas dá resposta convincente à controvérsia do fundador.

Se a baliza definidora do nosso processo de urbanização advém da escolha da Ribeira do Panema como lugar em que o missionário vem se fixar, é natural que a ele seja creditada a condição de fundador da cidade que veio a ser denominada Santana do Ipanema.

Tive oportunidade de analisar a questão em capítulo do livro sobre Sertão Glocal (Maceió, Edufal, 2010, p. 92-94). Volto a usar aqui a mesma argumentação ali desenvolvida.

A propósito do fundador da cidade, a história oficial consagrou a seguinte tese: Martinho Vieira Rego fundou o povoado de Santana da Ribeira do Panema, cujos caboclos aqui residentes foram evangelizados pelo Padre Francisco Correia. Como reconhecimento ao pioneirismo, o primeiro virou nome de avenida no bairro do Monumento e o segundo ficou imortalizado como patrono do nosso primeiro Grupo Escolar.

Ocorre que, pesquisando os documentos disponíveis no Arquivo Público do Estado de Pernambuco, unidade da Colônia e do Império da qual Alagoas fez parte até o início do século XIX, Tadeu Rocha inverteu a equação.

Endossando a tese proveniente da história oral, disseminada pelo Cônego Theotônio Ribeiro, ele proclamou: o fundador da cidade foi o evangelizador, porque deu início ao processo de povoamento do local. Tudo começou quando o missionário ergueu uma capela em honra a Sant’Ana, nas adjacências da foz do riacho Camoxinga, afluente do rio Ipanema, nos limites da fazenda de criação de gado de propriedade do sertanista Martinho Rodrigues Gaia.

Para elucidar a questão, o jornalista Djalma de Melo Carvalho (26/01/1974) escreve a Tadeu, argumentando: antes da chegada do franciscano já existia no local um arraial habitado por “mestiços”. E perguntando: será que o fazendeiro nominado pelo historiador religioso não seria o Martinho Vieira Rego, detentor de escritura de propriedade da terra lavrada no dia 19/03/1771?

A resposta só foi enviada pelo historiador, em 22 de julho de 1974, antecipando-se à resposta que deu à consulta feita pelo então Prefeito Adeildo Nepomuceno Marques (18/09/1974), indagando a data da nossa autonomia política.

“ Não sei em que se baseou o escritor Adalberto Marroquim em seu livro Terra das Alagoas. (...) Precisei então mandar fazer nova pesquisa no Arquivo Público do nosso Estado, que veio confirmar meus dados sobre a emancipação de Santana do Ipanema (...) Enquanto não aparecer qualquer documentação que contrarie o informe do Cônego Theotônio Ribeiro, teremos de aceitar que a primitiva capela de Senhora Sant`Ana foi mesmo erguida em terras doadas por Martinho Rodrigues Gaia. (...) Um grande historiador francês já escreveu que “não há História sem documentos”. Diante do exposto, julgo que devemos continuar repetindo (...): Santana do Ipanema nasceu em torno da igrejinha que o Padre Francisco Correia levantou na fazenda de Martinho Rodrigues Gaia, nos fins do século XVIII. E devemos repeti-lo até que surja algum documento que impugne a pesquisa desse Cônego, realizada há uns setenta anos. A esse tempo, as pessoas de idade avançada, que viviam no nosso sertão, contavam fatos da vida do padre Francisco Correia, presenciadas pelos seus próprios pais. Foi baseado nesses depoimentos e nos arquivos eclesiásticos que o Cônego Theotônio Ribeiro escreveu o Escorço Biográfico do Padre Francisco Correia”.

Aliás, os irmãos Darci e Floro de Araújo Melo chegam a idêntica conclusão, no livro Santana do Ipanema conta sua História (1976), depois de entrevistar pessoas idosas. Justamente aquelas que detêm a memória da sociedade santanense, transmitindo-a de geração a geração.

Na carta enviada a Tadeu Rocha, em 22/06/1983, Floro pede confirmação dessa tese reiterada pela história oral. “Você ao que me parece descobriu a fonte através de suas pesquisas nesse grande centro nordestino. (…) Seja como for, tenha a bondade de me dizer algo a respeito, a fim de que eu possa, na segunda edição, fazer correções…”

A propósito dessa controvérsia, vale a pena registrar que busquei elucidá-la nos idos de 60, quando me iniciava na carreira jornalística. Sobre o assunto, publiquei dois artigos intitulados “O fundador da cidade”, combinando as metodologias da história oral e da pesquisa documental.

Minha conclusão foi a seguinte: “Entre todas as hipóteses conhecidas em torno desta questão é a de Martinho Rodrigues Gaia a que maior número de argumentos comprovados possui a seu favor. (...) É este o meu parecer. Que mais profícuos estudos no âmbito se realizem”. Jornal de Alagoas (Maceió, 14/07 e 27/07/1960).

Defendo a tese de que se trata de questão historiograficamente resolvida, pelo consenso que existe entre os resultados das pesquisas feitas por Theotônio Ribeiro (1917), José Marques de Melo (1960), Tadeu Rocha (1971, 1974), Floro de Araújo Melo (1976) e Douglas Appratto (2006).

O que parece pendente é a assimilação desse fato histórico pela engrenagem que oficializa a nossa História. A rede escolar, os livros didáticos, os canais de divulgação pedagógica, negligenciam a tese comprovada pela pesquisa. Robustecidas por equívocos pretéritos, ancorados em fontes não confiáveis, as versões míticas terminam prevalecendo culturalmente.

Civilizador

Quem foi o Padre Francisco Correia ? Pouca gente tem noção da sua trajetória intelectual. Essa ignorância histórica já fora notada pelo nosso ex-prefeito, Hélio Rocha Cabral de Vasconcelos, quando tomou a iniciativa de reeditar o seu perfil biográfico, em 1958, escrito pelo cônego Theotônio Ribeiro.

“Confesso que, a minha geração abriu os olhos à vida sem conhecer a história de nossa terra (...) jamais ouviu falar sobre a personalidade do Padre Francisco Correia , esse evangelizador dos sertões alagoanos.(Hélio Cabral, Prefácio, IN: Ribeiro, Theotônio – Escorço biográfico, 2ª. ed., Maceió, Casa Ramalho)

Santana do Ipanema ainda está à espera de historiadores metodologicamente habilitados a cotejar fontes primárias e secundárias, documentos oficiais e narrativas orais, cruzando dados, confrontando versões para delinear com rigor e precisão os marcos da sua trajetória enquanto comunidade. Os relatos existentes são precários, apesar do esforço meritório daqueles que pretenderam contar a sua História.

O território hoje correspondente ao Estado de Alagoas, no qual se inclui o espaço santanense, primitivamente fez parte da Capitania de Pernambuco, comandada pelo colonizador Duarte Coelho. O donatário aqui se defrontou com “adversário permanente e terrível que defendia bravamente a terra e os costumes natais”. Trata-se da nação indígena da família tupi-guarani denominada caetés, “antropófagos […] que dominavam as margens do São Francisco” (Craveiro Costa, 1983, p. 10).

Também conhecidos como “caheté, caité, kaité, kaheté,caaété”, os nativos alagoanos “tornaram-se célebres na história, pela antropofagia ritual do bispo D. Pero Fernandes Sardinha”. Consequentemente “acossados pelo governo de Duarte Pereira [...] fugiram para o interior, acoitando-se nas serras da região”. (Ramos, 1943, p. 68)

Os sobreviventes refugiados nas margens do Ipanema, rio afluente do São Francisco, constituíram o grupo indígena carnijós, do qual resultou a tribo fulniô, aldeiada em dois lugares: a Serra do Comunati (onde se desenvolveu a cidade hoje conhecida como Águas Belas, Pernambuco) e a Ribeira do Panema (transformada na comunidade alagoana de Santana do Ipanema).

Como decorrência da ocupação daquelas terras pelos sertanistas dedicados à criação de gado, esse agrupamento indígena, em processo de decomposição, no início do século XVIII, recebeu proteção governamental. A Coroa reservou uma “légua de terra” para a “missão” estabelecida na serra de Comunati, através do alvará de 23 de novembro de 1700. “No caso de existirem pequenos agrupamentos de índios a pouca distância, se repartiria, entre eles, a dita légua de terra. […] Encontravam-se nessa situação os indígenas do Ipanema e do Comunati” (Vasconcelos, 1962, p. 22).

Assim sendo, quando o padre secular Francisco José Correia de Albuquerque chega, em 1787, à Ribeira do Panema, na confluência do riacho Camoxinga com o Rio Ipanema, sua missão consiste em catequizar os caboclos ali arranchados. Isso se justifica plenamente, pois “embora altamente mestiçados, a ponto de não poderem ser distinguidos, pelo tipo físico, da população sertaneja, viviam à parte, conservando o idioma Iatê” e mantendo-se “fiéis ao culto do Juazeiro Sagrado, que cada ano reunia toda a tribo na caatinga” (Ribeiro, 1977, p. 54).

Fundando no local um recolhimento para beatas, zeladoras naturais da capela destinada ao culto de Santa Ana, que erige com o apoio do fazendeiro Martinho Rodrigues Gaia, o missionário ali permanece até 1795, quando regressou ao território eclesiástico de origem, na foz do rio São Francisco, mais precisamente na Freguesia de Traipu.

Em 1812, o evangelizador volta à Ribeira do Panema para reassumir sua missão, que em princípio se manteve estritamente sacerdotal, mas aos poucos vai sendo convertida em ação política. Tanto assim que, sendo cooptado para integrar o Conselho Provincial da Comarca de Alagoas, onde figurou como suplente do Presidente José Fernandes Bulhões, elegendo-se depois para o legislativo estadual. Atuando no aparato governamental, de 1825 a 1833, reuniu capital político suficiente para propor a criação da Freguesia de Sant’Ana da Ribeira do Panema, o que foi sancionado em 1836. Nomeado primeiro vigário da nova freguesia, permaneceu em exercício até 1842, quando deixa essa função eclesial, aos 85 anos, para recolher-se ao sítio Fazendinha, em Bezerros (PE), onde faleceu em 1848.

Além de missionário e político, o fundador de Santana do Ipanema tem outra faceta: a de artista. Quem destaca essa sua habilidade é o historiador Tobias Medeiros (2008, p. 19-20), que ocupa a cadeira Padre Francisco Correia na Academia Penedense de Letras. “Construiu capelas… (…) Ele mesmo (…) fazia as plantas e pintava”. Também “revelou habilidade para arquitetura”.

Seu principal dote era, sem dúvida, a oratória. “Foi o missionário mais reverenciado de seu tempo. O povo andava léguas para ouvi-lo.”

Trata-se de personalidade singular, cuja aura de santidade permaneceu no sertão alagoano, mesmo depois da sua morte em 1848.

Sepultado na capela de Nossa Senhora do Rosário, em Bezerros, “o corpo estava intacto e exalava um bom perfume”, quando “trasladado após alguns anos, para uma igreja do Recife, por ordem da autoridade diocesana”. (Medeiros, 2008, p. 17)

Homenageado em Penedo, sua cidade natal, como patrono da cadeira n. 6 da Academia Penedense de Letras (1963), mereceu de Santana do Ipanema, sua cidade adotiva, o lançamento, em 2006, da campanha para a sua “beatificação”. (Medeiros, 2008, p. 41)

O “ano Padre Francisco Correia”, instituído pela Câmara Municipal de Santana do Ipanema e sancionado pela Prefeita Renilde Silva Bulhões Barros, através da Lei Municipal 826/2010, é a oportunidade que se afigura aos santanenses para reverenciar a memória do seu fundador e comemorar o bicentenário de constituição da comunidade por ele idealizada.

A efeméride constitui igualmente um bom motivo para que as universidades e os demais estabelecimentos de ensino hoje existentes na cidade tornem realidade a legítima aspiração do Prefeito Hélio Cabral, que nos idos de 50 incentivou a “inteligência da terra” a pesquisar para o “melhor conhecimento” da História do Município.

Síntese

Recapitulando: durante muito tempo, a cidade nutriu-se de hipóteses lendárias sobre o seu legítimo fundador. Chegou a hora de superar o impasse e avançar historicamente.

A hipótese Martins Vieira Rego nutriu-se de registros imprecisos, sem fontes demonstradas, sustentando-se na única evidência documental, ou seja, a escritura de compra e venda das terras em que o fazendeiro se estabeleceu, tendo como vendedores os proprietários primitivos, João Carlos de Melo e sua esposa Dona Maria de Lima. Mesmo assim, a escritura referida por cidadãos idôneos não foi bem preservada, dela restando uma cópia, em processo de restauração, no Museu Histórico Municipal de Santana do Ipanema (Medeiros, 2011).

Contudo, Tadeu Rocha, examinando cuidadosamente a cartografia, verificou que a localização da propriedade era diversa daquela em que foi construída a capela em homenagem a Santana, mãe de Maria. A fazenda adquirida por Vieira Rego estava situada ao norte da povoação que se formou na foz do riacho Camoxinga. Ou melhor, ficava nas imediações do distrito de Maniçoba. Confrontando documentos cartoriais e depoimentos de anciãos bem informados, Virgílio Vanderlei Nepomuceno Agra chegou à conclusão de que a propriedade comprada por Vieira Rego correspondia à Fazenda Picada, cujo nome foi mudado imediatamente depois que seu primeiro dono morrera “picado” por uma cobra jararaca. Mesmo assim, o local não parecia abençoado, pois teve um “destino nada glorioso”, sendo reservado como “retiro” para os portadores de “bexiga”, denominação popular da “varíola”. (Agra, 2010)

Daí a maior credibilidade atribuída à hipótese Martinho Rodrigues Gaia pelos que valorizam a história oral, ou seja, o relato dos mais velhos, reproduzido de boca em boca, transmitido de uma geração a outra. O próprio Tadeu Rocha acolheu-a, fundamentando-se no registro constante do livreto escrito pelo Cônego Theotônio Ribeiro a propósito do Padre Francisco Correia de Albuquerque. Seu argumento é que o autor do folheto pesquisara em documentação confiável; logo, não poderia ser abandonada por outra interpretação dotada de valor relativo.

Intrigado por essa divergência histórica, o então prefeito municipal Hélio Rocha Cabral de Vasconcelos tomou a iniciativa de reeditar a biografia do missionário. Sua intenção implícita foi a de fortalecer a hipótese de que o legítimo fundador da cidade é o Padre Francisco Correia. Ao fixar-se na Ribeira do Panema em 1812, ele fomentou o desenvolvimento do antigo aldeamento dos fulniô, transformando-se em próspero núcleo urbano, hoje denominado Santana do Ipanema.

Na ocasião em que decidiu publicar o opúsculo era diretora do Grupo Escolar Padre Francisco Correia a professora Maria Audite Wanderley, entusiasta do resgate da História de Alagoas, matéria que introduzia em suas aulas de História do Brasil e que atuava na comunidade em sintonia com as ideias do Prefeito Hélio Cabral.

A circulação das ideias do Cônego Ribeiro contribuiu para balizar a historiografia santanense.

Pesquisando a documentação existente nos arquivos de Maceió, Aurino Vieira da Silva compôs o seguinte quadro:

“. Até o final do século XVIII, o arraial era ainda habitado por índios e por mestiços, quando ali aportou o Padre Francisco José Correia de Albuquerque, missionário muito jovem, mas eloquente e tenaz que em pouco tempo, pelos seus constantes exemplos de virtude e de trabalho árduo, conseguiu semear naquela localidade de gente rude não somente os preceitos cristãos e as normas elementares de convivência civilizada, mas, também, nela construiu um recolhimento para beatas, que ali viveram durante alguns anos.

Já em 1815, os irmãos Martins e Pedro Vieira Rego, vindos da Bahia, chegaram a Penedo, onde tomaram conhecimento de que na Ribeira do Panema existiam vastas extensões de terras devolutas… (…) Pleitearam a concessão de sesmarias, no que foram atendidos mediante a outorga de uma extensão de doze léguas. (Vieira da Silva, 1994, p. 26)

Desta maneira, os irmãos (ou parentes) Vieira Rego e Rodrigues Gaia passam à condição de pioneiros que desbravaram o território santanense para desenvolver atividades agropecuárias, reconhecendo que Francisco Correia, o patrono do nosso primeiro grupo escolar, foi o responsável pelo avanço civilizatório e consequentemente pela fundação da cidade.

Seu trabalho como figura de proa na geopolítica alagoana firma-se nos acontecimentos posteriores, principalmente sua fidelidade ao Rei Dom João VI, durante a sublevação pernambucana de 1817. Essa atitude o credenciaria a ocupar papel relevante no Governo da Província das Alagoas, criada em 16 de setembro de 1817, legitimando-o como porta-voz dos interesses sertanejos. Ele batalhou arduamente para criar a freguesia de Santana do Ipanema, em 1836, passo decisivo para obter a autonomia política em 1875, quando conquistou o estatuto de vila.

Nessa condição, Santana do Ipanema se erige como uma das maiores unidades territoriais de Alagoas, compreendendo espaços que começavam em Palmeira dos Índios e terminavam em Mata Grande, fazendo fronteira com Pão de Açúcar, às margens do São Francisco e com a pernambucana cidade de Águas Belas.

Esse território foi loteado em novos municípios, a partir de 1952, com os desmembramentos de Major Isidoro, Olho d´Água das Flores, Poço das Trincheiras, Olivença, Maravilha, Carneiros, Ouro Branco e Senador Rui Palmeira. Entretanto, a cidade de Santana do Ipanema preserva a condição de polo microrregional, tendo como referente geográfico a bacia do rio Ipanema e como signo espiritual o culto à Senhora Santana.

Dentre as personalidades que simbolizam a “Cidade do Rio Temporário”, o historiador Douglas Apprato, destacava em 2006, na Enciclopédia Municípios de Alagoas, o Padre Francisco Correia. “Em que pese não haver nascido no município (…) é, sem dúvida, uma das suas mais expressivas figuras históricas”.

Por isso mesmo, o governador Osman Loureiro, em 1937, atribui o nome de Padre Francisco Correia ao Grupo Escolar instalado no ano seguinte. O Estado recrutou pessoal habilitado, contando com o empenho e a competência de jovens professoras oriundas da capital, mas também de talentos da própria localidade, como foi o caso da santanense Maria Audite Wanderley, que veio a desempenhar a função de diretora do estabelecimento, nos anos 50.

Justamente nessa época, o Prefeito Municipal Hélio Rocha Cabral de Vasconcelos promoveu a divulgação da biografia do Padre Francisco Correia, neutralizando o desconhecimento sobre a identidade do patrono daquela instituição escolar.

Trata-se de situação quase idêntica à que estamos vivenciando, na véspera do bicentenário da fixação do Padre Francisco Correia às margens do Ipanema. Pouca gente na cidade conhece a sua trajetória e valoriza seu papel transformador.

Ao dar início ao trabalho comunitário que o projetaria na História, o nosso fundador antecipava um futuro dinâmico, progressista e civilizado para a nossa comunidade. Só nos resta seguir o seu exemplo, como fizeram, no seu tempo, Maria Audite e Hélio Cabral, e como podem fazer tantos outros santanenses nativos ou adotivos, inspirados pelo gesto do diretor do MALTANET ao publicar a 3ª. edição da obra do Cônego Ribeiro.

* O autor agradece o incentivo e o apoio recebidos de Olivan e Tobias Medeiros, bem como de Virgílio Vanderlei Nepomuceno Agra, decisivos para a elaboração deste artigo.

** Professor Emérito da Universidade de São Paulo e Diretor-Titular da Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação

Bibliografia consultada:

Agra, Virgílio Vanderlei Nepomuceno

2010 – Trilhas santanenses: passa boi, passa boiada, passa história pela estrada, In: Marques de Melo & Gaia, orgs. – Sertão Glocal, Maceió, Edufal, p. 123-141

Appratto, Douglas
2006 – Enciclopédia Municípios de Alagoas, Maceió, Instituto Arnon de Mello

Aurélio
1999 – Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira

Barros, Francisco Reinaldo Amorim de
2005 – ABC das Alagoas, Brasília, Edições do Senado Federal

Bastos Silva, Remi
2010 – Hino de Santana do Ipanema, Santana do Ipanema, rainha do sertão, Santana do Ipanema, Prefeitura Municipal

Cabral, Helio
1958 – Prefácio, IN: Ribeiro, Theotônio – Escorço biográfico, 2ª. ed., Maceió, Casa Ramalho

Costa, Craveiro
1983 – História de Alagoas, 2ª. ed., Maceió, Secretaria Estadual de Educação

Marques de Melo, José
2004 – Midiologia Caeté, In: A esfinge midiática, São Paulo, Paulus, p. 69-86

211 – Cidadania glocal, identidade nordestina, Campina Grande, Lotus
Marques de Melo, José & Gaia, Rossana

2010 – Sertão Glocal, Maceió, Edufal

Medeiros, Tobias
2008 – Padre Francisco José Correia de Albuquerque na Academia, Maceió, Imprensa Oficial

2011 – Entrevista ao autor. Maceió (24.10.2011)

Mello, Floro e Darci Araújo
1976 – Santana do Ipanema conta a sua História, Rio de Janeiro, Borsoi
Melro, Ernani

1991 – Penedo, História Religiosa, Maceió

Ramos, Arthur
1943 – Introdução à Antropologia Brasileira, Rio de Janeiro, CEB

Ribeiro, Darcy
1977 – Os índios e a civilização, Petrópolis, Vozes

Ribeiro, Theotônio
1958 – Escorço biográfico, 2ª. ed. , Maceió, Casa Ramalho

Rocha, Tadeu
1971 – Há 200 anos..., Diário de Pernambuco, 3º. Caderno, p. 18, Recife

Santana, Moacir Medeiros
1992-1993 – Efemérides Alagoanas, v. I e II, Maceió, Instituto Arnon de Mello

Silva, Oscar
1953 – Fruta de Palma, Maceió, Caeté

Vasconcelos, Sanelva de
1960 – Os Cardosos de Águas Belas, Recife, Imprensa Oficial

Vieira da Silva, Aurino
1994 – Santana do Ipanema, In: O Comendador Tércio Wanderley, Maceió, p-. 26

Comentários