O MENINO, era o filho de Dona Carmosina. Que morava na Rua Antonio Tavares, no lado da rua que as casas dão às costas pra nascente, e tem entradas muito alta. Do outro lado da rua ocorre o contrário, o sol, primeiro bate nas fachadas das casas, e os quintais ficam olhando pro rio Ipanema. Era uma casa avarandada, com muitas plantas no jardim espremido. E eram tantas plantas que quase não se via a casa. O musgo recobria as paredes de pintura desbotada. Dona Carmosina era muito gorda. Já não podia ir mais, pras missas do padre Cirilo. As pernas tornaram-se inchadas. O triglicérides, sempre alto. O diabetes e a pressão alta, tudo descontrolado. Por tudo isso, já não ia mais as missas dominicais.
- Essas coisas - dizia ela - Começaram a aparecer depois da viuvez.
Há quatro anos que Gumercindo, seu marido morrera de infarto fulminante do miocárdio, contava com cinquenta anos de idade quando aconteceu. Ninguém nunca imaginava, um homem tão novo, não bebia, não fumava. E deu de aparecer, assim disse o médico, da última vez que ele se consultou, o começo de um tal, de mal de Alzheimer. Antes não era assim. Antes era assim: Dona Carmosina acordava bem disposta. Pela manhã acordava as duas filhas, Jacinta e Lúcia, e seu filho caçula, o menino Francisco. Seu Gumercindo, já no mundo, saía cedo a comprar pães. As meninas ficavam lindas nos vestidos iguais. As franjas e os rabos de cavalo no cabelo. O mesmo perfume. Todos admiravam como eram unidas. E todos queriam saber se eram gêmeas. Não eram. Lúcia tinha dez anos, Jacinta nove. E o menino, tinha oito anos. Este dava mais trabalho pra se ajeitar. Demorava, porque pra tomar o banho, não queria. Todo domingo, o mesmo sacrifício pra ir à missa. E os outros dias da semana, tirante o sábado, também o sacrilégio por conta da ida matutina à escola.
Quatro anos se passaram. Desde que Seu Gumercindo morrera. As meninas cresceram rápido. Já estão no colegial. O menino parou no tempo. Não saiu da primeira série primária. Nem cresceu também, continuava franzino. Como se a morte do pai, o tivesse feito parar de crescer. O que será que ele tem? Um menino já com doze anos de idade. Os vizinhos, os amigos de Dona Carmosina também queriam saber. Aconselharam-na levá-lo a um homem “sabido” em Palmeira dos Índios. Que cobrava pelo “trabalho” somente se saísse curado. Dona Carmosina ficou bem balançada pra ir a esse homem. Porque psicólogos e psiquiatras já fora a tantos e nada. Pedagogas e assistentes sociais, pouco ajudavam com seus diagnósticos, acompanhamentos e drogas ineficazes. O que a impedia de vez, de tentar aquela alternativa de cura, era sua convicção religiosa. Católica fervorosa. Tinha fé nos santos da igreja, em frei Damião. Tinha em casa um oratório. Fez, de um dos quartos da casa, uma “igreja” particular, cheio de imagens de muitos santos, de todo tamanho. Em gravura, em gesso, resina e madeira trabalhada. E toda noite, Dona Carmosina só ia pra cama, depois que rezasse um terço ali na sua igreja caseira.
Até a Juazeiro do padre Cícero já tinha ido, de pau-de-arara, em promessa. Mas, o que de diferente, tinha o menino dos outros meninos de sua idade? Dizia ele que ouvia vozes. E via pessoas que já morrera. Dizia que conversava com seu pai. Segundo ele, vez em quando este, lhe aparecia. Na véspera do dia em que mataram o prefeito, Adeildo Nepomuceno, ele ficou muito pertubado. E teria dito à mãe, que alguém queria dizer alguma coisa a ele, mas ele não conseguia entender o que era. Nesse dia teve febre e delirava, e era visível sua pertubação. Seu Apolônio um vizinho próximo de sua casa, não achava nada de anormal no menino. Pelo contrário considerava-o perfeito. Tanto, que sempre, pedia-lhe palpite pra jogar no bicho. E vez em quando acertava.
De todos episódios ocorridos com seu filho, tinha um, que Dona Carmosina, se consolava em relembrá-lo. No dia treze de maio, de quando ele, Francisco, fez treze anos. Naquele dia, Dona Carmosina acordara mais cedo, pra rezar o terço matinal, a Nossa Senhora de Fátima, pelo seu dia. E uma vela encheu de luz, o quarto virado em oratório. Uma luz tênue, trêmula e amarelada. Dando expressão e sobras nos rostos das imagens, principalmente de São Francisco de Assis e Nossa Senhora, milagrosamente aparecida naquela cidade de Portugal. Os olhos dos santos, vidrados na porta aberta do quarto, para onde estavam viradas as imagens. Como que posando pra uma foto, numa pose incômoda e cansativa, em que o fotógrafo demorava-se a chegar. E eles precisavam cuidar de ir salvar almas suplicantes. Naquele dia Francisco teria dito:
-Mãe. Nossa Senhora falou comigo...
-O que menino? Perguntou-lhe espantada.
-É mãe, aquela que está ali no quarto.
-E o que ela disse?
-Que a senhora tenha paciência. Não se preocupe comigo. E que a senhora continue rezando. Mas não só por mim, mas pelo povo de Santana também...
Dona Carmosina, nesse dia abraçou seu filho e chorou muito. Não diria aquilo a ninguém, nunca. Se contasse isso a alguém, iam dizer que seu filho além de doente era louco. Melhor guardar aquele segredo. As meninas reclamavam que seus colegas de escola ralhavam com elas, dizendo que tinham um irmão doido. Elas odiavam quem fazia esse tipo de comentário. Dona Carmosina fazia as tarefas caseiras cantando as cantigas e as ladainhas, tão amplamente recitadas no coral da igreja. E havia uma que muito lhe marcara quando da ida em romaria ao horto de padre Cícero:
Ó que caminho tão longe meu Deus
Cheio de pedra e areia
Valei-me meu padrinho Ciço
E a mãe de Deus das Candeias
FREI DAMIÃO, o franciscano da cidade italiana de Bozzano, por esse tempo, ainda andava nesse mundo. Segundo o próprio designado por Deus pra vir pregar no nosso sertão. Sempre na companhia de outro frade, cujo nome de fé era Fernando. Peregrinavam pelo nordeste brasileiro. Pregavam as santas missões. Uma versão ultimada das derradeiras ordens, descendentes de Europa. Continuidade de seus antecessores, os jesuítas: Manoel da Nóbrega, Anchieta, Francisco Correia, Capitulino, findando nestes. A ordem dos franciscanos tem uma particularidade interessante: O uso do hábito marron, cingido por um cordão branco a altura dos rins, que lembra uma vestimenta feita de saco. Sandálias de couro cru trançado nos pés, e um crucifixo preto e enorme, trazido ao peito suspenso pelo pescoço. Uso de barba, e uma auréola no alto do crânio, conseguida com a raspagem do couro cabeludo, naquela área da cabeça. Frei Damião dispensava só esta última característica. As outras, cumpria-as. O octagenário missionário, andava de cidade em cidade a pregar. A saúde tão comprometida quanto a de Dona Carmosina. Com um agravante desvio de coluna. Tão acentuado que o obrigava a andar curvado.
O sertanejo considerava-o um homem santo. Autor de milagres reconhecidamente comprovado. A ele atribuía-se milagres e também castigos. Dizem que um homem no interior pernambucano, ao chegar em casa, bêbado. Ao encontrar a mulher se aprontando pra ir a uma missão do frei santo, ali num povoado próximo. Ele teria feito o seguinte comentário:
- Vai ver o que sua besta. Aquela outra besta pregando!
Dizem que na mesma hora, o homem virou-se num jumento. E saiu aos coices relinchando. Indo morrer caindo num precipício, tornando a virar homem depois de finado. Um outro homem, teria ido se confessar com ele. E ao receber conselhos muito severos do frei, depois de assumir ser adúltero, não arrependido. Ao retirar-se de sua companhia, teria dirigido-lhe o dedo anular, em surdina. Na mesma hora, ainda dentro da igreja, o homem teria despido sua calça. Possuído de força contrária as suas vontades. Com muita violência, contra si mesmo, teria penetrado seu próprio ânus, com aquele dedo maior que tinha na mão, o mesmo com o qual teria dirigido ao frei.
Diziam também que expulsava demônios, de mulheres possuídas. Que se lançavam por terra, em frenesi epilético. Ficando totalmente curada em seguida. Cegos que conseguiam enxergar, coxos que andavam. Loucos que recuperavam a lucidez. Drogados que largavam os vícios. Viciados em todo tipo de jogo. Ladrões que se arrependiam, da vida criminosa, só pelo fato de fitá-lo. Pistoleiros que se convertiam, lhes entregando suas armas e recebendo em troca uma bíblia. E agora pregavam a palavra das santas escrituras. Tudo isso Dona Carmosina ouvia nas conversas de calçada, com os vizinhos, nas noites mormacentas de verão. Em que se sentava à porta. Pois ninguém conseguia estar dentro de casa com o calor, dissipado das paredes que acumulavam a quentura do sol naqueles dias áridos, de um ano qualquer da década de setenta. E lá na “sua igreja”, fez consigo mesma, dirigindo-se a nossa Senhora de Fátima, uma promessa: Se meu filho, ajoelhar-se diante de frei Damião, e ele tocar com sua mão santa, a cabeça de meu filho. Ele ficará curado. E ficou aguardando tão somente a oportunidade. Conversando com seu filho relatou-lhe sobre sua promessa. O menino assim que ela calou-se disse:
-Ói mãe. Tem freio de pé e freio de mão
Tem frei Fernando e Frei Damião!
A mãe o advertiu severamente sobre aquela brincadeira com o homem santo. E que ele nunca, jamais repetisse. Ele alegou que os meninos na escola todos diziam. Mesmo assim ela pediu que ele não dissesse. Só sossegou quando ele garantiu não dizer mais. E eis que surgiu a grande oportunidade. As santas missões na cidade de Santana do Ipanema. O frei capuchinho estaria hospedado na casa do padre Cirilo. Naqueles dias, um mundo de gente vinha para aquela cidade, na esperança de um milagre. Ao chegar na Avenida Coronel Lucena, Dona Carmosina viu que não ia ser fácil, vencer aquele oceano humano. Mas a fé era maior. Segurando no braço de Francisco, conseguiu chegar a porta da casa do vigário. Tudo certo. Ela estava na lista dos que teriam direito de entrar naquele dia. E ficaram aguardando numa salinha improvisada, especialmente pra o encontro. Esperaram uma eternidade. E Dona Carmosina impaciente não conseguindo conter sua ansiedade. Ainda segurando Francisco pelo braço, adentra as demais dependências da casa. E sem encontrar, quem lhes ofereça resistência, consegue chegar a cozinha. Frei Damião está à mesa, cabisbaixo. Há pratos e uma janta completa está posta. O frei é servido por uma serviçal. Dona Carmosina aproxima-se, toca a cabeça do franciscano. E força seu filho a ficar de joelhos ao lado do frei. Ele é obrigado a fazer a genuflexão praticamente à força. De joelhos, Francisco, assemelha-se a um cabrito, indo pra tosquia contra sua vontade. E da posição que se encontra, busca as feições do frei. Encontra-as. Demora-se fitando-o, e comenta:
-Mãe ele num tá comendo não. A comida quando chega perto da boca some...
Nesse momento, o menino é tomado de uma sonolência repentina. E cai inerte no chão da cozinha. Morto.
Fabio Campos 17/05/2010 É professor em S.do Ipanema-AL
Contato: fabiosoacam@yahoo.com
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