MEU QUINTAL É UM RIO

Contos

João Neto Félix Mendes

Estação das Águas/2009


Quisera fosse esse um canto de amor, mas não o é. Quisera também fosse lamento de despedida, mas não o é. Talvez prosa de homem tácito sentado numa pedra à beira do rio que passa nos fundos do meu quintal. Devaneios, deslumbramentos, meditações... Quem poderá saber?
Não importa a denominação do lugar geográfico; pode ser Santana, poder ser Quebrangulo. Basta que se tenha um rio; intermitente ou perene, com pedras, incontáveis muçambês e craibeiras. Cenografia ideal a divagação dos pensamentos, parecendo caminho sem fim, entregando-se sem reservas a todo instante na certeza de chegar finalmente ao abrigo definitivo da imensidão do azul do mar.
Viemos da água, somos água. Por prazer, certamente para ela iremos voltar, por isso nos atrai a todo o momento. Todas as formas de vida formam um todo indivisível e nenhuma é superior a outra. Fazemos parte de um grande sistema cooperativo de ajuda mútua no mundo dos viventes.
Nessa época do ano as águas correm suavemente. Um grande jardim de aguapés e capins se forma naturalmente. Sobre os capins aves temporãs constroem seus ninhos e se reproduzem. Cuidam dos seus filhotes até alçarem vôo e todos se vão. As flores lilases têm delicada beleza. Será lilás cor de lamento? Não sei! As alfaias das igrejas cristãs durante a quaresma são lilases.
Minha rudeza impede que me lembre da existência delas quando menino. Dizem que só aparecem onde tem água suja. Sendo assim, parecem que foram enviadas por anjos benfazejos dos jardins celestiais para denunciar as atrocidades que cometemos aos rios e amenizar as dores das almas aguadas esticadas nos curtumes dos sentimentos negados e omitidos.
O crepúsculo vespertino aquieta-se lentamente. O clarão do dia cede lugar à penumbra. O dia vai se entregando à noite. A estrela d’alva aparece como por encanto. É tão bonita e parece tão perto!
As luzes da rua se acendem e, sobre as águas, réstias formam uma trilha em minha direção que deslizam silenciosamente parecendo um grande espelho vivo, abrindo um caminho prateado e flutuante. Quem me dera a magia da transfiguração e andar sobre o facho de luz indo e vindo de um lado para o outro por quanto tempo quisesse mergulhando e emergindo, explorando o misterioso e fantástico mundo das águas...
Os grilos iniciam os silvos. As rãs e as pererecas escondidas anunciam presenças com cantos espevitados e agudos. Os sapos rivalizam fundamentais respostas alternadas com sons graves. Assim se inicia a sinfonia dos insetos e batráquios sem hora para findar. Em harmonia, como fundo musical, escuto o doce e revolucionário som das águas. Tento escutar individualmente cada um dos sons. Sou cativo desse encantado labirinto.
Os vagalumes sobrevoando, reluziam sobre o grande jardim aquático, parecendo estar em todos os lugares e em lugar nenhum. Era tanto brilho piscando de um lado para o outro que só um olhar muito atento poderia acompanhar. Eu saí procurando, mas na noite chegando eu perdi o olhar no meio de tanta luz e escuridão.
Mesmo que ninguém perceba, com esmero, o universo segue seu caminho rumo ao equilíbrio no compasso do Criador. Os descompassos são feitos humanos.
Refletida na água, em imagens distorcidas, aparece a torre da Igreja e, no topo, sua cruz iluminada. O badalar dos sinos percute em toda cidade, lembrando de coisas que estamos esquecendo; fé, solidariedade, respeito e amizade. Sem falar em amor que nem sabemos mais discernir o verdadeiro sentido. Vivemos o tempo da banalização das virtudes. Há de passar esse tempo.
É noite! Meu pensamento está tão longe! Os rios são uma metáfora à reflexão, meditação e comparações desmedidas. Uma flor de anoitecer desliza suavemente sobre as águas indo de encontro ao seu destino. Destino de ser flor e ser admirada! Quisera que todos estivessem aqui vendo o mesmo que eu.
Abraço ausências, deixando que vidas sigam seu curso, permitindo que o rio corra sem sair do lugar. Contemplo o rio que corre parado, sem metas, sentado, singrando águas do tempo com as velas ao vento. Afinal, a mesma água que vai é a mesma água que fica. Encontros e despedidas.

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