Aconteceu na minha linha do tempo no início da década de 70.
Pré-adolescente, bastante tímido, amante da cultura – dentro das limitações que a condição financeira familiar e a Biblioteca escolar e pública ofereciam – estava eu.
Não tinha acesso a TV (minha família não possuía). Em relação aos meios de comunicação social, somente um rádio. Naturalmente, aproveitei esse tempo para colocar um dos meus focos na leitura. Tudo que fosse do ramo literário popular ou erudito que estava ao meu alcance, não deixava passar a oportunidade: livros de bolso com temas diversos (ficção, guerra, faroeste, romances, históricos, terror etc.), desenhos (Tio Patinhas, Donald, Mickey, Superman, Batman, etc.), revistas diversas; clássicos literários (Os lusíadas de Camões, Os irmãos Karamazov de Fiódor Dostoiévski, Vidas Secas de Graciliano Ramos, O Cortiço de Aloísio de Azevedo, O Ateneu de Raul Pompéia; Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade, Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll... [...] e O Meu pé de laranja lima de José Mauro de Vasconcelos.
É sobre esse último que quero “vadiar”
Sempre que fosse possível, ao ler algum clássico da literatura, escolhia um personagem e me identificava com ele.
De todos os clássicos que li na minha pré-adolescência e adolescência, o que mais me marcou foi “O meu pé de laranja lima”. Sem exagero nenhum, penso que li mais de 20 vezes.
Via-me no personagem Zezé. Ele “falava” com o pé de laranja lima; eu “falava” não verbalmente, mas mentalmente, com personagens que criava quando me sentia só. Apesar de tímido, Zezé era esperto e um pouco marrento; eu também. Zezé gostava de aventuras, eu também. Ele aprendia descobrindo sozinho e fazendo sozinho, acabava sempre tomando umas palmadas. Exatamente como eu que gostava de inventar brincadeiras, algumas das quais acabei me dando mal (picadas de abelha, arranhões de quedas, ou mesmo, no mínimo uns puxões de orelhas). Zezé vivia confortavelmente no contexto de sua época até que seu pai perdeu o emprego e ele precisou trabalhar. Passou-se algo semelhante comigo. Vivíamos razoavelmente bem até meu pai perder o emprego principal dele. Minha família passou por maus bocados. Resolvi trabalhar, não somente pela necessidade, mas porque queria tornar-me alguém de responsabilidade. Carrocei, engraxei sapatos, vendi picolé, cocada, trabalhei em um bar etc. Zezé encontrou um porto seguro no seu amigo Manoel Valadares, chamando-o de “Portuga”, a quem Zezé partilhava suas alegrias e tristezas. Aqui eu destoava um pouco do personagem Zezé, pois eu colocava toda minha confiança em qualquer pessoa que eu sentisse que poderia confiar: além de meu pai e minha mãe, algumas de minhas irmãs ou mesmo amigos fora do círculo familiar, entre eles, Antônio Pacífico, dono do bar que trabalhei e colaborou para que eu tomasse gosto pela religião católica e pela Igreja, convidando-me e me levando com ele para as rezas do Terço e evangelização nas comunidades. Zezé sofreu muito com a morte do “Portuga”. Eu não tive essa sensação de perda.
Esse meu sentimento exagerado nesse clássico da literatura, perdeu parte do encanto quando tive a oportunidade de assistir ao filme, adaptado dessa obra.
Recordo-me que, quando o saudoso Cine Alvorada, em Santana do Ipanema anunciou que iria exibir esse filme, eu fiquei em êxtase. Até aquele momento, desde que li o livro pela primeira vez, o personagem Zezé em minha mente era eu.
Não me recordo quantos dias o filme ficou em cartaz. Três, quatro dias... – quando um filme tinha uma boa audiência, ele passava mais tempo no cinema da cidade. Assistir a todas as exibições.
Aconteceu algo, após o filme ir embora. “Foi com ele” a magia que existia entre o personagem Zezé e eu. Como antes Zezé não tinha um rosto, eu “coloquei” meu rosto no personagem; só que agora ele, o personagem, tem um rosto: o rosto do garoto paulistano Júlio César Cruz. Em outras palavras, caí em meu mundo real.
Enigmas da vida!
[Pe. José Neto de França]
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