A crônica é o meu predileto campo de cultivo de minhas veleidades literárias. Gênero ensaístico que muito aprecio, meus escritos têm sido divulgados em jornais, em sites, e, de uns tempos para cá, enfeixados em mais de uma dúzia de livros editados.
Num fim de semana desses, em visita à Praia do Francês, aproveitei o tempo de folga para ler o livro de crônicas – Cidade (Imprensa Oficial Graciliano Ramos, Maceió, 2014) –, de autoria do viçosense Sidney Wanderley, poeta, escritor e requisitado intelectual alagoano.
Entre lazer e descanso, a leitura propiciou-me – a par do texto enxuto e escorreito – prazeroso passeio pela Viçosa do passado, terra natal de ilustres alagoanos, políticos, prosadores, filósofos, cronistas, escritores, folcloristas, repentistas e boêmios. Não foi por menos que Viçosa por essa extraordinária plêiade de intelectuais, filhos dali, teria recebido em tempos idos o significativo cognome de Atenas Alagoana.
Acostumei-me, de há muito tempo, a ter grande apreço por Viçosa. Inicialmente, pela convivência com Jader Costa Tenório, colega de trabalho no Banco do Brasil, poeta, declamador e viçosense apaixonado pelo seu torrão natal. Depois, ao conhecer Dr. José Maria de Melo e Denis Portela de Melo, pai e filho de minha estima e admiração, escritores de muitos livros publicados, nos quais trataram, todos eles, orgulhosamente, da gente e da história de Viçosa das Alagoas. Agora, meu apreço e simpatia pela cidade mudaram para tamanho bem maior com a leitura do livro de Sidney Wanderley.
Gosto de citar, nessas circunstâncias de ufanismo nativo, o português José Saramago, que disse: “Uma aldeia tem o tamanho do mundo para quem sempre nela viveu.”
Vejo, a propósito, na apresentação do livro o que disse Gerana Damulakis: “Parece que os escritores sentem necessidade de registrar em obra um local. (...) Enfim, algo inerente ao ato de criar.”
Disse o historiador Douglas Apratto: “O rio mais belo é o riacho que corre em sua cidade natal.” Natural de Santana do Ipanema, também tive o riacho Gravatá e o rio Ipanema em minha vida, para, na minha infância e adolescência, admirá-los ante o volumoso curso d’água, com remanso e com o estrondo de suas enchentes, tantas vezes nostalgicamente lembrados, ambos, hoje, praticamente mortos.
Sidney Wanderley também não esqueceu, embora em poucas linhas, o seu rio Paraíba, apesar de pedregoso e de “águas estagnadas ou semiestanques durante o verão”. Possivelmente, na sua infância Sidney Wanderley tenha nele tibungado em épocas chuvosas de invernos e trovoadas.
O lugar escolhido pelo cronista teria de ser Viçosa, claro, sua terra natal. No livro o autor registrou suas relembranças, memórias, a história da cidade, sua gente, costumes e o lado engraçado, pitoresco, folclórico, de conterrâneos do passado, muitos dos quais já não habitam o mundo dos vivos.
Alguém já disse que em toda cidade de interior sempre haverá o literato, o poeta, o mentiroso, o cachaceiro, o preguiçoso, o mulherengo, o mau pagador, o doido de estimação e o político enganador.
O retrato da cidade, em tons nostálgicos, começa com o Cine Godoy, antiga diversão maior de cidade interiorana, “espaço mágico de minha infância e adolescência”, como bem assinalou o cronista. Casa inaugurada em 1962 com a chegada, ali, da luz elétrica. Ao final da década de 1980, o Cine Godoy não mais existia, depois de algum tempo agonizando.
Detive-me, demoradamente, na longa, gratificante e saudosa caminhada que empreendeu o autor pela sua Viçosa dos tempos idos. Coube, de início, a referência pessoal ao imortal boêmio Zé do Cavaquinho, dono do bar Trovador Berrante, e ao farmacêutico Zé Aragão, homem de múltiplas qualidades e atividades (cronista, poeta, compositor, dramaturgo, ator, desportista, radialista, jornalista, radioamador e empresário). As crônicas de Zé Aragão ou José Alves Ferreira de Aragão, por exemplo, foram, em 2010, inseridas em volumoso livro (obra póstuma) com o título de Saudação Noturna.
A feira da cidade tinha de tudo. Iniciava-se na sexta-feira e findava no sábado, após o meio-dia, quando “havia a hora crepuscular, aquela em que a feira, desapressadamente, começava a morrer”, segundo palavras de Sidney.
Viçosa, como terra de intelectuais, literatos, não lhe faltava a Livraria Acioli, de propriedade de Manoel Acioli, cidadão que conheci aqui em Maceió, a distribuir livros encomendados por meus colegas do Banco do Brasil.
O conhecido barbeiro da cidade, “por ser um incansável conversador, característica dessa profissão, ganhara a alcunha de Zé Filósofo”, informa-nos Sidney. Em sua barbearia, o curioso cartaz: “Abrevia-se cabelo e barba, a contento do freguês, com esmero e precisão.” O sapateiro Nonato Belisiário, entre outras máximas, dizia: “... desconheço barbeiro que apare o próprio cabelo e dentista que arranque os próprios dentes.”
O folclórico vereador Erasmo da Mota, por sua vez, pretendia instituir em Viçosa “o dia municipal do inhame”. Mestre Amaro, escultor que de um tronco de jaqueira fazia surgir um cavalo, respondia à curiosa pergunta: “É difícil fazer um cavalo desse?” Resposta do escultor, irônico e sábio: “Não. É só tirar da madeira tudo aquilo que não for cavalo.”
A figura de Mário Veridiano, que nunca dera um dia de serviço a ninguém, dizia: “Estou sempre às ordens para coisa nenhuma.” Tinha a mania de, irritado, explicar coisas das quais nem ele mesmo entendia: “Ciência é coisa que dispensa as perguntas idiotas e o senso comum.”
Não poderia faltar ao livro referência ao repentista Manoel Nenen, exímio cantador de viola, imbatível em desafios históricos: “Pra cantar mais do que eu canto/ nenhum poeta nasceu/ se nasceu, não nasceu vivo/ se nasceu vivo, morreu/ se existe, está muito oculto/ que ainda não apareceu.”
A partir de 1849, Viçosa recebeu o padre Francisco Manoel da Silva, o segundo vigário da paróquia, conhecido pelo apelido de Cabrites. “Já idoso, o padre Cabrites era tido na conta de santo por inúmeras beatas que lhe invadiam a casa e, vezes muitas, a alcova. Possuía, ao final da vida, oito amásias e 26 rebentos”, conforme registro do cronista. Questionado pelo bispo a respeito de amásias e rebentos, Cabrites respondeu: “O senhor, com suas sábias palavras; eu, com minhas ações generosas.” E haja generosidade!
A cidade de Viçosa, de antigas ruas com nomes singulares, abrigou o mestre Graciliano Ramos e sua família. Nascido em Quebrangulo em 1892, “e tendo vivido até os sete anos na vila de Buíque, no vizinho estado de Pernambuco, em 1899 Graciliano aportaria em Viçosa. Aí permaneceria até 1910, quando os Ramos migrariam para Palmeira dos Índios.” Em Viçosa, em 1904, com o primo Cícero Ramos, fundou o jornalzinho O Dilúculo.
O cronista ao concluir seu livro, nele inseriu “Coisas de Jornal”, curiosas notas publicadas, e “abcxz da província”, curiosidades etimológicas e retalhos de história de sua cidade natal.
Afinal, livro bem escrito, de texto leve, agradável, sem rebuscamentos, que leva o leitor à última página com aquele gostinho de quero mais. Com certeza, importante contribuição para a literatura alagoana.
Parabéns ao cronista.
Maceió, outubro de 2019.
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