Nunca devemos instrumentalizar o outro

Adriano Nunes

Nunca devemos instrumentalizar o outro. Este é um princípio básico cristão e muito bem desenvolvido por Immanuel Kant. A instrumentalização do outro tem várias implicações. Uma delas é ver e tomar alguém como coisa, isto é, vê-lo como algo destituído de humanidade, como objeto que pode ser usado como tal, como mero meio.

Até este ponto, a minha argumentação não apresenta nada de novo. Apenas uma reafirmação conceitual de uma das formas do imperativo categórico e das lições de Cristo. Todavia, apenas afirmar isso não resolve a problemática de "não fazer isso" e, fazendo, "como resolver isso consigo mesmo".

Quanto ao primo questionamento, é muito difícil "não fazer isso". Ainda que existisse uma lei estatal penal com pena severa e que obrigasse in totum que toda pessoa seria proibida de instrumentalizar o outro, nada poderia garantir a eficácia social de tal lei. Quanto mais difícil será então cumprir uma lei da própria razão cuja consequência imediata apenas tem relação com quem a descumpre!

Assim, o "não fazer isso" está impregnado de questões que transitam os limites éticos, morais e mesmo jurídicos. Então restariam as justificativas para não se fazer a instrumentalização do outro:

1. Não devemos instrumentalizar o outro porque o outro é humano também;
2. Não devemos instrumentalizar o outro porque a humanidade que se encontra em nós não difere da humanidade que se encontra no outro;
3. Não devemos instrumentalizar o outro porque cada ser humano por ser um fim em si mesmo indica-nos de forma cogente e absoluta que a vida deve ser preservada sem que quaisquer interesses utilitaristas recaiam sobre ela para que ela venha a ser lesada enquanto bem maior;
4. Não devemos instrumentalizar o outro porque a razão dita imperativamente que o outro merece ser respeitado também justamente por ser o outro, por fazer parte, com as suas peculiaridades e diferenças, de uma comunidade universal de humanos, a humanidade;
5. Não devemos instrumentalizar o outro porque, ao fazer isso, ferimos a humanidade como um todo (e, aqui, é, possivelmente, a minha contribuição teórica para a questão!). Dizer isso significa afirmar que a humanidade sustenta-se humana, demasiadamente humana, enquanto cada um dos seus representantes são mantidos distante de instrumentalização, são protegidos de nossas vontades mais grotescas e monstruosas.

A violação deste princípio mor implica lesar a humanidade em seu próprio cerne, porque tal ato lesivo traz consequências gerais e mesmo ubíquas, pois somos todos e todas afetados socialmente, politicamente e historicamente. Não é uma mera questão de equilíbrio social, de homeostase social. É uma questão de humanidade enquanto categoria. Isto é: enquanto liberdade, dignidade e amor ao outro.

Essa categoria só se firma e afirma-se dentro da racionalidade livre e consciente da própria humanidade. Ou seja: a humanidade só se manterá humanidade se nenhum indivíduo for desumanizado, se não for reificado, se for reconhecido como digno de humanidade. E esse reconhecimento é que faz haver humanidade. Por isso, impõe-se a respeitabilidade máxima para com cada pessoa. Cada pessoa também é a própria humanidade. A consciência disso leva à segunda questão: "como resolver isso consigo mesmo?"

Ante a dificuldade íntima, pessoal, de evitar instrumentalizar o outro, de cometer maldades, violências, devido à incapacidade de leis da razão, sociais ou estatais terem por si sós e a priori eficácia social, como resolver a problemática da "consciência pesada", "do arrependimento", "culpa íntima", isto é, a problemática "como resolver isso consigo mesmo"?

De início, também aviso que não é algo fácil e simples. Não existem uma fórmula mágica ou uma receita pragmática. A Psicologia, as religiões, a Psiquiatria e a Psicanálise, a Filosofia, o Direito Penal e a Criminologia, as Ciências Sociais e Políticas, há muito imergem nessa questão, tentam conhecer as suas raízes, a sua genealogia, as suas fundamentações, efeitos e consequências, influências, alcances, características, etc e tal, para compreender e, de algum modo, explicar o porquê de o ser humano praticar maldades, violências, crimes, isto é, tudo o que fere a humanidade em seu cerne. Não há consenso e, aqui, também não pretendo esgotar o tema. Isto é apenas um ensaio. Um simples ensaio.

Investigar também a causa do "mal" não é meu intuito e interesse. A categoria "mal", de partida, é um constructo social. Só há "mal" porque se convencionou dizer que há o "bem". Para fins didáticos e deste ensaio, considerarei "mal" tudo aquilo que for contrário aos ditames da razão. Isso quer dizer que a razão é absoluta, deve valer universalmente. Dizer que a razão é absoluta não quer dizer que ela não seja passível de crítica. A crítica e a liberdade são fundamentos da razão.

Sigamos então! Se não devemos instrumentalizar o outro, para não ferirmos a humanidade como um todo, devemos então estar conscientes e dispostos a querer e a aceitar a humanidade, a comunidade de todos os seres humanos conhecidos até o momento. Não se pode afirmar definitivamente que essa é a maior e única comunidade no universo. Se não devemos instrumentalizar um único ser humano, seja ele (ou ela) quem for, então precisamos também compreender que cada ser humano é a própria humanidade. Cada ser humano é um indivíduo e também um grupamento. Como assim? O menor grupamento possível.

Se considerarmos que cada pessoa mantém consigo mesma relações íntima de apego e admiração e mesmo de conflitos, consciente e inconscientemente, que tem em si um mundo imaginativo e fenomênico interno, sujeito a influências involuntárias internas e de fatores externos, podemos afirmar, de algum modo, que é este grupamento social interno que pode, sob certa perspectiva, dar solidariedade e firmamento, isto é, alicerce humano, para os grupamentos dos quais faz parte o indivíduo, até a comunidade mor, a humanidade. Aparentemente, não há como resolver essa problemática sem tentar resolver o problema da consciência de si, da autorreflexão, das reflexões reflexivas. O indivíduo precisa tornar-se sujeito da razão e não apenas sujeito de si.

O sujeito da razão é aquele capaz de intimamente e socialmente reconhecer-se como parte dessa comunidade mor par excellence e também reconhecer todo ser humano como parte dessa mesma comunidade. A passagem de "sujeito de si" para "sujeito da razão" é um dos primeiros passos do processo civilizatório. A categoria "ser racional" funda-se nessa perspectiva de que cada indivíduo é dotado de razão e age sob os seus ditames. Portanto, ser racional é, de algum modo, reconhecer no outro a sua humanidade inviolável e inafastável.

Somente a razão pode, neste sentido, ser capaz de oferecer um aparato de reflexões acerca do que não fazer e do que fazer. A razão condena veementemente quaisquer tipos de violações à categoria humanidade, logo ela repudia instrumentalizar o outro, retirar do outro a sua dignidade, a sua humanidade.

Rever atos, refletir sobre os próprios atos, sujeitar-se à crítica, pedir desculpas, ter arrependimentos, sentir vergonha, ter medo de também ser instrumentalizado, temor a ser excluído da comunidade humana, controle das pulsões e paixões bárbaras desmedidas, controle sobre ódios, iras e preconceitos, controle sobre o desejo cego de vingança, controle sobre a Wille zur Macht, dar-se in totum ao amor, perdoar, promover catarses internas e externas, etc e tal, são alguns dos aparatos dos quais a razão, em sua plenitude, pode dispor para evitar que a humanidade seja lesada enquanto humanidade. A problemática de "como resolver isso consigo mesmo" amalgama-se, também, por este tópico.

Adriano Nunes

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