O inesperado e espontâneo sorriso do “flanelinha” desdentado fez-me, de imediato, lembrar aquela famosa frase do genial carnavalesco da Escola de Samba Beija-Flor, dita em pleno Sambódromo do Rio de Janeiro.
Observador que sou de recortes do cotidiano e de gestos curiosos da gente simples que habita o chão nativo, o fato logo me serviu de mote para estes rabiscos, porque o pitoresco, o engraçado, o folclórico e o fora de série estão sempre no foco do cronista provinciano.
Não sei seu nome nem de onde veio o sujeito, sempre visto de barba por fazer, de olhar agressivo e rápido no andar. Conheço-o de muito tempo, a limpar, insistentemente, os para-brisas dos automóveis que param ao sinal vermelho do semáforo da esquina do bairro onde moro. Quer chova ou faça sol, está ele ali, empunhando pequeno rodo e garrafinha de plástico, a prestar o antipático “serviço” diário. Sem carteira assinada, sem contribuição social, sem perspectiva de vida digna de trabalhador formal, faz das moedas que recolhe seu ganha-pão. Talvez nem se tenha habilitado ao benefício do programa Bolsa Família para poder colocar e manter os filhos na escola oficial. Nem tenha, também, nenhuma preocupação com os fichas sujas. Se eleitor, seu voto, imagino, deverá ter qualquer preço.
Ali na esquina se junta a outros párias da vida, pedintes acostumados a estender a mão sem quaisquer constrangimentos. O mundo deles é conhecido da sociedade e das autoridades: o dos socialmente excluídos. Algumas vezes, vejo-o bêbedo, cambaleante, coitado, sem os instrumentos de trabalho à mão, a implorar uma moeda aqui e outra acolá, alegando mentiroso infortúnio familiar. Uma vez que a cidade está cheia de bandidos, seu jeito de trabalhar até inspira temor ao desavisado motorista. Mas, justiça lhe seja feita, não me recordo de nenhuma ameaça de sua parte ou de ato violento por ele praticado.
Transito todos os dias pela mesma rua. A cada passagem que fazia, o sujeito insistia em limpar o para-brisa do meu carro, irritando-me sobremodo. Para evitar o inconveniente, encontrei uma forma simples de dispensar seus “serviços”, normalmente não autorizados também pelos demais motoristas. Tornei-me seu amigo, resultado de tácito acordo: eventualmente lhe dou moedas, mesmo sem a contraprestação do “serviço”, e, vez por outra, também lhe dou de presente uma camisa usada. O “acordo”, na verdade, tem produzido resultado positivo, sem maiores aporrinhações, sem estresses significativos, graças a Deus.
Pronto, fiquei tranqüilo, e ele não mais me apoquentou. A amizade, a partir daí, se expressa por meio de sorrisos, de tímidos acenos de mão e de polegar direito levantado. Do lado de lá e do lado de cá.
Com razão, afinal, Joãozinho Trinta. Há pouco, vi o rosto do “flanelinha” iluminar-se com aquele sorriso de boca desdentada, misto de alegria e curiosidade, ao deparar-se com o carro novo que eu acabara de comprar. Sorriso que confirmava a assertiva do maranhense João Clemente Jorge Trinta, autor da debochada frase: “Quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta de luxo.”
Maceió, setembro de 2010.
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