Questões éticas e morais sobre o isolamento social

Adriano Nunes

No dia do trabalhador, o Presidente diz que "gostaria que todos voltassem a trabalhar". Uma ironia funesta que reflete e resume, de alguma maneira, todos os seus discursos e atos contra o isolamento social. Se a racionalidade humana for o critério (ou um dos) que fez com que o ser humano conseguisse ser o que é, socialmente e culturalmente, atravessando as intempéries da História, poderemos, talvez, dizer que os indivíduos mais eticamente sábios são aqueles que compreendem bem as vantagens do isolamento social.

Essa boa compreensão do isolamento social ante a pandemia do coronavírus põe em evidência alguns pontos, para questionamentos importantes: 1. Posso compreender bem a importância e tenho condições materiais e sociais de tornar efetivo e eficaz tal isolamento; 2. Posso compreender bem a importância e não tenho condições materiais e sociais de tornar efetivo e eficaz o isolamento; 3. Posso compreender, mas procuro negar tal compreensão por interesses particulares ou de grupos ou ideológicos; 4. Posso compreender mal e por isso relativizo a real importância; 5. Não compreendo tal importância e, portanto, não encontro razões que me levem a cumprir o isolamento; 6. Outras variantes são possíveis.

Tomemos o argumento mais forte (dizem!) até agora apresentado contra o isolamento social: a economia vai quebrar, o desemprego vai aumentar, pessoas irão morrer de fome, etc. De partida, é preciso deixar claro que A VIDA ANTECEDE QUAISQUER DISCURSOS, ATOS, PRÁTICAS, INSTITUIÇÕES, OBRAS HUMANOS. SEM VIDA, NADA ADVINDO DO GÊNIO E DE AÇÕES HUMANOS EXISTEM, NEM MESMO A ECONOMIA. Mas essa explicação parece fazer pouco sentido para os que, de forma quase agressiva, querem que comércio, fábricas, lojas, indústrias, shoppings, etc abram e funcionem normalmente, que as pessoas retornem à vida econômica "normal". Por que tanto insistem nesse ponto?

As razões são muitas e diversas. Uma delas e a mais perigosa é a ideologia político-partidária. Diversos chefes de Estado parecem estar enfrentando o seu pior adversário político ao lidar com a covid-19. Por quê? Porque o vírus em si é apolítico e apartidário, não traz em seu cerne uma ideologia de base. Assim, uma falha em combatê-lo pode ser vista como uma incapacidade de governança, de governabilidade, de atuação, uma incapacidade para gerir políticas públicas. A pandemia tem desmascarado políticos e nações, de algum modo. Continuemos...

Esse medo de ser visto como um político fracassado é pouco. Claro que aí entram em jogo as vantagens tiradas dos adversários políticos para evidenciar ainda mais essa incompetência política. Chegamos ao primo passo: a politização da pandemia. Para o status quo, a pandemia é o caos acompanhado do exército inimigo. Com a necessidade de isolamento social (racionalizam assim, em certa medida), terei que impor regras de proteção à minha comunidade, e isso implica fechar o comércio, limitar atividades mercantis, priorizar negócios, etc. Segundo, ao fazer isso (lembremos das 5 hipóteses de compreensão!), imponho regras, inclusive, àquele setor de força político que me apoiou para que eu fosse eleito. Não será fácil, e eu receberei muitas pressões. Terceiro: como a compreensão da importância do isolamento social não é simultânea e homogênea, outras pressões acumulam-se. Sigamos...

Por trás desse sistema aparente de relações e de força e poder, esconde-se uma ideologia perigosa: aquela que, em nome da vontade de poder política, relativiza a vida. Mas a vida de quem, de quais indivíduos? A vida daqueles que, de algum modo, dependem do bom funcionamento dessas relações, dessa complexa rede social de força, poder e influência. A vida dos trabalhadores, funcionários e empregados em seu sentido mais amplo. A vida daqueles e daquelas que terão que, a partir de certo momento, ainda que não queiram e não aceitem, introjetar, sem recusas, que o isolamento não lhes é importante, porque podem ficar sem emprego e sofrer as consequências do desemprego, até mesmo a fome. Para essa sistemática nefasta, o trabalho dignifica e salva. A vida nada vale. A vida depende da força do trabalho para ser vida, numa inversão absurda de importância e significado. Mais um passo...

A falência da economia refletiria a falência política. Por isso, num cálculo utilitarista, pouco importa que corpos e corpos sejam enterrados à vista indiferente ou à vista dos que compaixão sentem. Para essa gente utilitarista e disposta a tudo a salvar as suas riquezas e diferenças, são corpos e só. Mortos e só. Corpos que já não servem como força bruta para o trabalho, para a manutenção da economia. São as cobaias do sistema, pois o sistema opera para si mesmo. A lógica do sistema é uma ideologia utilitarista que dita que a vida vale conforme a cotação do dólar. Enquanto cada vez mais corpos mortos viram estatísticas, mais os apelos e os gritos desesperados pela volta à normalidade das compras e vendas, dos negócios cotidianos que geram lucro e poder, aumentam. Mais e mais pessoas vão às ruas. Carreatas, passeatas, intimidações... Estranhíssimo, não é mesmo?


Adriano Nunes

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