O que representam a derrota de Trump e a vitória de Biden e Kamala Harris: uma tentativa de análise sociológica e política.

Adriano Nunes

Primeira Parte:

Comecemos pela derrota de Donald Trump. Se Trump chegou ao poder, em 2016, sob a influência de uma miríade de fatores que assolava os anos 2010 (cujas raízes são bem mais anteriores), como crise na representatividade política, desconfiança dos partidos e políticos tradicionais, crise econômico-financeira, a questão migratória, a questão da ascensão das igrejas pentecostais, escândalos de corrupção (principalmente relacionados com a esquerda, no mundo, de algum modo), as fake news, a problemática da segurança nacional e sua relação com os atentados terroristas, a questão China-Rússia, a questão islâmica, a questão ambientalista, etc, enfim, uma gama de fatores, isso, à época, significou uma grande ruptura.

Contra quase todas as expectativas e prognósticos, Trump venceu Hilary Clinton. Estados tipicamente democratas deram inúmeros votos a Trump, e ele venceu no âmbito do colégio eleitoral por 304 a 227 (uma vitória expressiva!), todavia perdendo no voto geral popular para Hilary por 65,853,514 votos a 62,984,828 votos, o que nos evidencia uma forma complexa eleitoral que se quer democrática, mas em seu cerne não é. Claro está que é uma forma feita para dar margens para que eleitores brancos e ricos tenham, sob certas perspectivas, vez e voz. Tal instituição foi criada com medo do voto negro e do voto feminino, com receio do aumento da população negra e da influência da mulher nas esferas de poder e da ampliação dos campos de possibilidades. Esse fato pode ser evidenciado mais nitidamente quando se percebe que leis racistas eram vigentes nos EUA até os anos 60 e que somente um único Presidente negro foi eleito (Obama) e que nenhuma mulher jamais foi eleita Presidente.

A vitória de Trump, em 2016, confirmava a legitimação da criação do sistema eleitoral americano: uma mulher era derrotada (ainda que branca e rica) no pleito, e um homem branco, rico, misógino, racista, xenofóbico era eleito. De lá para cá, Trump fez discursos e práticas que consolidavam a sua tática antidemocrática. Ele não governava para todos os cidadãos e cidadãs americanos; governou para os seus. E os seus não eram os republicanos conservadores! Aqui, é preciso deixar analiticamente claro que conservador não se confunde com reacionário (recomendo, neste ponto, para uma distinção mais nítida, "The Shipwrecked Mind: On Political Reaction", de Mark Lilla, e a entrevista "Um reacionário é um revolucionário do avesso", de João Pereira Coutinho, por exemplo). A ascensão de Trump foi uma onda reacionária que se revestiu da legitimidade conservadora, flertando com o irracionalismo, obscurantismo, anseios messiânicos, culto ao homem violento, anticiência e antidemocracia.

Neste momento analítico, pode-se até compreender o porquê da sua atuação péssima e demagogicamente nefasta durante a pandemia do coronavírus. Como explicar que o país mais rico do mundo é ao mesmo tempo o país que teve e ainda tem os piores índices letais e de contágio? Como explicar o fracasso sanitário em uma superpotência que se proclama democrática, defensora da liberdade? Culpá-lo por tudo seria também ingenuidade analítica. Não reconhecer que ele e a sua condução ineficaz na problemática da pandemia atuaram sob o viés de uma necropolítica parece ser desonestidade intelectual.

A economia sob Trump não atingiu o nível esperado. A violência policial contra a população negra aumentou. O choque social e cultural passaria a se instalar. Não se governa com base em mentiras e ilusões ideológicas apenas. As consequências logo aparecem e deixam marcas profundas. Trump foi tão ruim Presidente que essa é a primeira vez que os eleitores do condado de Maricopa escolhem um democrata para Presidente em mais de 70 anos. Essa é uma das maiores mudanças políticas no país, indubitavelmente.

A sua derrota representa, de alguma maneira, e sob certa perspectiva, uma mudança de orientação política. É como se as pessoas tivessem acordado do sonho populista, ideológico, isto é, tendo a coragem necessária para encarar a realidade fatual. Os fascistas italianos e alemães procuraram atuar sob a política do amigo-inimigo nos moldes de Carl Schmitt. Trump fazia, de algum modo, o mesmo, pois não tardou em "encontrar" os seus inimigos políticos: a esquerda, os comunistas, a imprensa livre, a China, a Rússia, a Venezuela, os imigrantes. Claro que os seus ataques a cada um desses era sistemático e não aleatório, atendendo aos anseios imperialistas e de domínio, mas principalmente a uma Wille zur Macht e a um jogo ideológico onde fake news e ataques a instituições nacionais e internacionais tiveram papel relevante. Nenhuma nação se sustenta sob fortes tensões e ameaças. Tudo pode levar a guerras civis. Essa desunião insistentemente proclamada por Trump parecia não ter nada a ver com o American Life? Não é bem assim. Há uma diferença gritante entre estados do sul/centro e estados do norte/nordeste que se mantém mesmo depois da Guerra da Sucessão. Não à toa, supremacistas brancos e grupos extremistas deram apoio à política distincionista, seletivista de Trump.

A sua derrota não é a união de um povo ou das esquerdas americanas. A sua derrota é a retomada de um ponto crítico que parecia ter-se apagado na política americana (e também em alguns países): aquele que repudia a antipolítica. Sim, a antipolítica flerta com o poder in totum e não com a democracia e a governabilidade. Ainda que esse passo tenha sido dado, o trumpismo segue forte (talvez ache um novo Trump para chamar de seu). A divisão permanece. Trump perde para Biden, mas obteve mais de 70 milhões de votos. Não é pouco e não parece ser algo ocasional. Mesmo tendo um discurso xenofóbico, vasta parte de hispânicos/latinos votou nele.

Tudo isso serve como meio de possíveis novas reflexões políticas. Como Hannah Arendt disse, "a verdade não é uma virtude política". Eleitores continuarão a ser enganados por políticos carismáticos, populistas e demagogos. Mudar é possível. Mesmo diferentes, as pessoas não precisam e parecem não querer compactuar com injustiças, arbitrariedades, racismos, xenofobias e violências.

Segunda Parte:

De partida, é preciso criticar o discurso ideológico e mesquinho de parte das esquerdas brasileiras que quer pôr Biden e Trump no mesmo saco. Vale, desde já, dizer que, ainda que sejam americanos e filhos da American Life, há um abismo político que os separa. Esse abismo se torna mais evidente quando já se sabe que Trump representa o antipolítico. Dizer isso leva-nos a conferir a Biden a esfera do político, em seu sentido democrático, moderno. Trump não é um republicano e sequer pode ser considerado conservador. Ele é um reacionário. Se o centrismo de Biden pode ser tomado pela ambiguidade da moderação e das políticas bélicas, ele se apresentou como aquele que compreende, de algum modo, como funciona a arena política, para que as apostas democráticas fossem lançadas em seu nome e aceitas em nome da democracia. Biden é um moderado do Partido Democrata, sem carisma, sem ser populista, aparentemente aberto ao diálogo e às diferenças. Todavia, Biden não é nenhum salvador da pátria e nem do mundo e continuará a propaganda do American Dream.

Quando o Partido Democrata escolheu uma mulher negra para concorrer como Vice-Presidente, tal estratégia foi acertadamente bem articulada. Os EUA estavam com alguns problemas sérios, dois dos quais denunciados por 2 movimentos importantes: o ME TOO e BLACK LIVES MATTER. Uma reação contra o status quo que, de alguma maneira, apresentava-se como o Estado do homem branco, heteronormativo, machista e violento. Assim, sob certa perspectiva, a vitória de Biden é, talvez, bem mais a vitória de Kamala Harris. E, claro, por trás de tudo, a vitória da influência forte do casal Obama. Os votos feminino e da população negra foram decisivos. Por esse motivo, também, deve-se comemorar ainda mais. E, sem ilusões e paixões, comemorar, com atenção política e de mãos dadas com a crítica, a vitória da chapa democrática.

Por outro lado, a vitória de Biden e Harris representa uma contrarreação à política reacionária de Trump e seu séquito. Não uma reação ao Partido Republicano. São antípodas que coexistem com as diferenças. Pois: essa vitória seja, talvez, uma volta à imprensa livre (livre de ameaças, perseguições e de acusações absurdas, de espalhar fake news, por exemplo), uma volta ao político stricto sensu, uma volta à discutibilidade e à aceitação racional das diferenças, uma volta às ciências, à clareza, à verdade da realidade fatual, uma volta à consciência democrática, capaz de compreender a importância da preservação do meio ambiente e do progresso, sem se utilizar do horror e da mentira, usuais formas na construção de mundos fictícios cheios de inimigos a serem perseguidos e destruídos. Uma volta à própria democracia, mesmo com as suas falhas e limitações, a democracia das sociedades abertas.

No cenário internacional, tal vitória reflete um passo possível para uma nova ordem mundial. Isso não quer dizer que os EUA serão o agente bonzinho, paz e amor, mas que, com essa mudança, poderá haver uma maior respeitabilidade quanto à política internacional, principalmente no cumprimento de acordos, tratados, etc que visam a humanidade como um todo, isto é, sem mistificar e mitificar os adversários políticos externos, tomando-os como inimigos a ser duramente combatidos. Assim, os EUA podem manter as relações políticas com diversos países, sem precisar pôr a demagogia e o irracionalismo a serviço do Estado, sob falsas vestes democráticas como fez Trump.

Concluindo: a vitória de Biden e Harris é um passo interessante, aberto, com ares e matizes democráticos que pode alterar o modo como se pensa a política, a esfera política, o processo político. Por um instante, ela lança múltiplas reflexões em diversas partes do mundo, incluindo no Brasil. Parece que foi uma vitória da realidade e da vida contra as fake news, a necropolítica, a intolerância, o obscurantismo, o irracionalismo, o fanatismo, o racismo, a xenofobia, contra tudo ou quase tudo que Trump representava ou parecia representar.


Adriano Nunes

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