"O sistema opera para si mesmo"

Adriano Nunes

Infelizmente, não há garantias de que o uso de instrumentos democráticos (como o voto livre e secreto, por exemplo) leve a uma democracia formal e material. Isso se percebe, com certa facilidade, quando verificamos que vários autoritários, ditadores e totalitários foram eleitos pelo povo através do voto democrático ou dissimulando ser democrático. Portanto, a democracia deve ser um fim e não mero meio.

Vocês já ouviram esses tipos de discursos advindo tanto da esquerda quanto da direita: "mas foi eleito(a) democraticamente", "essa é a vontade do povo", etc. Discursos que se pretendem inafastáveis, ainda que, ao fim das contas, nada reste de uma "democracia" eleita democraticamente. É um paradoxo assustador constatar isso porque, com esses discursos, parece-se querer, de algum modo, legitimar abusos, arbitrariedades, censuras, violências várias, violações de direitos. O fato de eleger alguém democraticamente parece querer impor não só discursivamente que esse eleito não poderia ser afastado por meios democráticos não violentos. Ainda que fossem péssimos ou tirânicos, teríamos que suportar até uma nova eleição, o que seria contraditório quando se leva à saturação teórica o termo "democracia".

As escolhas democráticas, como tantas outras escolhas da esfera humana, podem ser erradas e péssimas. O voto democrático já legitimou assassinos em massa. Dizer isso não quer dizer que o voto livre e secreto não seja necessário. Por isso, atualmente, sabe-se bem que a democracia não é governo da maioria. Tal maioria pode escolher mal e visar apenas os seus próprios interesses. O interesse comum buscado não significa interesse de alguns, mas de todos e todas indistintamente.

O uso de instrumentos democráticos para alcançar fins não democráticos leva-nos a refletir que nem indivíduos, grupos, comunidades, sociedades ou Estados podem ter poderes ilimitados. Não se pode deixar que se usem os instrumentos democráticos como escudos ou redomas para evitar ou silenciar a crítica, por exemplo. Frases típicas dos bolsonaristas como "o meu presidente foi eleito democraticamente" ou "melhor Jair se acostumando" parecem ser discursos que têm como fim último o silêncio dos opositores ou das críticas. Refiro-me ao bolsonarismo, mas essa forma abjeta de imposição ideológica também já foi vista, no Brasil, em governos de esquerda. Os graus desse protoautoritarismo é que são variáveis.

Os regimes autoritários e, principalmente, os totalitários tendem a desvencilhar-se da crítica ou eliminá-la. Para isso, usam de diversos artifícios conhecidos: desde a imposição legal, com restrição ou abolição de liberdades, ao uso da violência simbólica e física. Tudo para legitimar os seus discursos, práticas e atos. Que mais fazem? Tentam a todo custo controlar, além do presente, o passado e o futuro. Para controlar o passado, procuram alterar a História, tentam mudar ou destruir as verdades fatuais, buscam ajustar a História humana às suas vontades ideológicas, de acordo com os seus interesses, para justificar a sua política abusiva, arbitrária, discriminatória, violadora de direitos. Esses regimes também tentam engendrar um futuro único, como numa religião política, isto é, ditam como será o fim máximo moralizador de cada pessoa, isto é, messianicamente, ligam a vida de cada indivíduo à existência do Estado, da nação, da pátria ou a um ente metafísico.

Em regimes autoritários, a busca por verdades é um exercício mesmo perigoso. Essas verdades (sejam históricas ou científicas) não se confundem com uma verdade única moralizadora. Como convencer fanáticos irados, imersos em ódio, de que a pandemia é real e que muitas pessoas estão morrendo e irão morrer? Como convencer fanáticos de que as vacinas funcionam e protegem a humanidade contra doenças letais? Como convencer fanáticos de que os políticos idolatrados por eles não são divindades e sequer não foram enviados por Deus algum? Muito difícil e perigoso. Nesses regimes, a busca livre de verdades históricas e científicas pode levar a um embate funesto. Os que estiveram abertos à crítica e ao conhecimento racional quase sempre foram perseguidos.

Para os que compactuam e acreditam em autoritários, constituindo uma massa homogênea, emotiva e acrítica, quaisquer tentativas de divergência, de racionalidade, de lucidez, soam como ameaças, pois a busca livre de conhecimentos e verdades, para esse séquito, é como se fosse a destruição de sua realidade fictícia, de seu mundo. E esse séquito religioso-político estará disposto a tudo para defender as suas crenças, em nome - pasmem! - da democracia!

A verdade não é base da democracia, constatamos. Ainda que deva ser racionalmente buscada e racionalmente usada como verdade. A busca por um bem comum não se confunde com a busca de uma verdade comum, já que a verdade não é uma virtude política. Se a disputa Moro e Bolsonaro gira em redor de uma "verdade", não será essa "verdade" que nos salvará. Porque essa "verdade" pode ser uma farsa ideológica, ainda que esteja amalgamada a sérias consequências jurídicas. Se Moro estiver certo, talvez prove que Bolsonaro mente e mentiu desde o começo. A sua eleição não passaria de uma farsa em que instrumentos democráticos foram usados para instaurar um governo antidemocrático e para os seus. Tentar controlar meios de comunicação e de investigações diz muito sobre.

Se Bolsonaro estiver certo, Moro talvez tenha mentido desde quando, em nome da Justiça, sentenciou os empresários e políticos vistos como adversários, abrindo caminhos para os seus amigos na arena política. Se ambos estiverem sem a tal "verdade", notaremos como, de algum modo, a Wille zur Macht opera, isto é, como a vontade de poder age, com instrumentos democráticos, para destruir as esperanças da funcionalidade da democracia, isto é, como ideologias disfarçadas de justiça, moralidade, de combate à corrupção, pondo a pátria e Deus acima de tudo e todos, são capazes de enganar a maioria dos cidadãos e cidadãs. O sistema opera para si mesmo. Lancem os seus dados!


Adriano Nunes

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