Ela não se lembrava ou jamais soube, quem sabe, preferiu ignorar que o amor era uma antiga divindade. Antigamente, ao ser criado, houve uma explosão que atingiu todo o mundo sensível e em algumas partes do mundo inteligível.
E Cleobulina esperava encontrar em Maceió um céu que em Santana não tinha. Ela descobriu, rapidamente, que era o mesmo céu em toda a parte. Aquela explosão também foi sentida por este mesmo céu.
Não adiantou a cigana ter lido as linhas em suas mãos, Cleobulina. Soube, mais tarde, que as linhas em suas mãos não lhe expressavam as mudanças de seu destino.
Passaram-se dias, semanas, meses, anos, décadas. E a velha Cleobulina sozinha. O seu orgulho foi lavado pela última chuva; a poeira que lhe sobrou do orgulho foi varrida pelo último vento.
Os seus dias, Cleobulina, eram tão-só dias passados. Eles não voltavam.
E você, Cleobulina, julga-se tão sábia. Nunca leu sobre as peripécias do amor? Ele era uma divindade dúbia criada no passado, lavada pela chuva, levada pelo vento.
Pragmática, amiga de infância que Cleobulina não conseguiu reencontrá-la em Maceió, foi substituída por Digressão, nova amiga. Cleobulina levava com ela Digressão sempre que possível.
Prolóquio atravessa a Praça dos Martírios de mãos dadas com Mentira, que está recatada como nunca esteve. Ambos se veem com olhos apaixonados. Rifão enxerga-os de longe com promessas de vingar-se de Prolóquio por estar com Mentira.
A casa conversava com ela. Foi a primeira casa onde Cleobulina morou, atrás da estrada de ferro. Isto de a casa falar com ela era uma voz permanente. Uma casa conversar com uma pessoa era possível?
Bagunçam, gritam e brincam Prólogo, Tisbé e Píramo, e quase derrubam Cleobulina. Apostam corridas Prólogo, Tisbé e Píramo. Quem chegará primeiro?
Prólogo, Tisbé e Píramo participarão, logo mais à noite, da cerimônia na Quinta-Feira Santa do lava-pés. Algazarra sem fim. Estas crianças atravessam a Praça dos Martírios como se a vida neste mundo fosse eterna.
Confabulava Cleobulina:
Ontem, Digressão, foi a Procissão do Encontro; a mãe encontrou-se com o filho que em breve será crucificado. Hoje, Digressão, acontece a Procissão do Lava-Pés num ato de humildade.
Digressão sabe o que isso significa?
Isso quer dizer o quê?
Humildade.
Humildade?
Humildade, Digressão, humildade. Eu ouvi, numa homilia do padre Velho, que isso não pode ser tomado por niilismo.
Já não sei!
O quê?
Niilismo.
Amanhã, Digressão, acontecerá a Procissão da Paixão. Depois, o Sábado de Aleluia. E, finalmente, chegará o Domingo da Ressurreição.
Nesta época da Semana Santa, o sol de ouro de Maceió brilha mais forte. E no intenso calor, Cleobulina apressava-se na volta à Catedral – a mesma que recebeu monárquicas bênçãos de Dom Pedro II.
Informação e Verdade conversam numa praça pela qual passa Cleobulina ao voltar do trabalho. Adiante, Opinião encontra-se com o Fato.
Não te suporto! disse Opinião ao Fato. Na verdade, eu te odeio.
Mas por quê? surpreso, quis saber.
É simples! disse como se fosse intimidar o Fato. Por nem sempre concordar comigo.
Maceió, nesta época do ano, recebe turistas na frente do Gogó-da-Ema. A cidade ganha as cores do arco-íris.
Maria não tem como evitar a crucificação?
Digressão, isso não é possível.
Nem se forçasse a parada do tempo?
Frase, Oração e Período caminham na praia àquela hora da manhã. Com a leveza que se sabe, Frase completa-se por si até mesmo em única palavra; já a Oração carece da presença do Verbo, como ela mesma falou que não gosta de andar sozinha, ou também da locução verbal, quando os verbos se encontram na Oração.
Bom dia! desejou Cleobulina à Oração.
Vai trabalhar? com uma locução verbal, perguntou Oração à Cleobulina.
Na areia, corria Período atrás da bola. Ele, dado ao futebol, formava frases com dribles e usava uma e até mais orações antes do gol.
Cleobulina vencia grandes distâncias a pé. Maceió ela conhecia. Passava em ruas de período simples, que existia graças a única oração; variava caminhos de período composto onde as orações multiplicavam-se por ser mais de uma.
Em períodos chuvosos, as ruas de período simples e composto de repente ficavam intransitáveis. A água dos esgotos tomava calçadas, apropriou-se das casas baixas e famintas.
Nas ruas de período composto por coordenação, suas orações eram livres – uma independia da outra – porque uma não dependia da outra no sentido das orações. Já em ruas de período composto por subordinação, isto era perceptível, uma oração só tinha efeito se houvesse outra: elas eram tão dependentes quanto as relações amorosas.
Em uma daquelas ruas, Cleobulina encontrava-se com Sintagma.
Como tem passado? disse.
Sintagma era inseparável de Linguística. Se houvesse grupo de palavras – e nas ruas de Maceió não era difícil encontrá-lo – estavam Sintagma e a amiga Linguística.
Se não encontrava Sintagma na Rua Nominal, na Rua Verbal encontrava. As duas ruas davam na Praia do Núcleo, em Jaraguá, onde atracavam os navios vindos do estrangeiro com novidades recentes a serem comercializadas na Feira do Passarinho.
Como tem passado? disse. Predicado nada lhe respondeu; passou calado por Cleobulina. Ela estava atrasada ao seu compromisso com a oração, e sequer acumulou ressentimento.
Sintagma, no alto de sua vaidade, modifica advérbios, adjetivos. Era até preposicional com a sua oratória de unir e não separar, e também determinante por morar na Praia do Núcleo onde frequentam os substantivos.
Vírgula, disse, não posso falar! passou apressada.
Ei, volte aqui! tentou a Vírgula em vão interromper com o vocativo a pressa de Cleobulina. Isto é, ou seja, por exemplo...! mesmo ao insistir com expressões explicativas, ela não convenceu Cleobulina a parar e ouvi-la.
Adiante, Cleobulina cumprimentou Verso, que conversava numa mesa de bar com Poesia. Servia-lhes Estrofe. E, atrás do balcão, Rima abria outra garrafa. Métrica agarrada a uma sanfona. Ritmo engraxava sapatos na colorida parede do Bar Comercial. Metáfora deixou o bar com lustrosos sapatos. Ironia acendia o cigarro de Paradoxo. As emoções estavam no ar. Estética passou com o novo vestido azul. Lítica, Dramática e Épica, ao chegarem, dirigiram-se ao balcão.
A sanfona deu lugar às cordas, naquele domingo de Páscoa. E outra tarde caiu com a lentidão de um filme em preto e branco, no velho Bar Comercial, o mais antigo na cidade.
Abertos os garrafões de vinho, as garrafas de cerveja e esvaziados os copos de pinga. A discussão que se estabeleceu foi sobre a canção:
Ah, mamãe, cadê seu amor?
Ai, mamãe, cadê seus olhos!
Ah, mamãe, onde é que vou?
Ai, mamãe, cadê seus olhos!
Todos, mãe, da mesma cor?
Ai, mamãe, cadê seus olhos!
Ah, mamãe, cadê seu amor?
Ai, mamãe, onde é que vou?
Ah, mamãe, cadê seus olhos!
E, aí, mamãe, cadê seu amor?
Cleobulina deixou a rua do teatro, após atravessar a Feira do Passarinho onde se encontravam Opinião e Fato à porta do armazém. Abacaxi, desprezado, eterno queixoso; reclamava do tempo em que vivia às alturas, nas prateleiras.
Se for comparar, disse a Maçã, sou mais cara!
Mas não é a preferida! disseram os ovos.
Alho perdeu os dentes; a cabeça ninguém conseguia comprá-la. Alho, na caixa, só palhas.
Os peixes ouviam as conversas, gritos e protestos que lhes chegavam da sessão hortifrutigranjeira. Era uma absurda falta de gosto, disse um peixe ao outro, ouvir conversas assim da área das frutas, dos legumes e das hortaliças.
Seboso tinha náusea da História, e combatia com a força do sentimento mais pervertido e perverso quem dela se aproximava. História não se importava e, quando muito, era jocosa:
Seboso fala o que falava, disse História, porque não me conhecia.
A semana era santa. Cleobulina não perdia uma missa campal. De longe, voltavam da Livramento as amigas Digressão e Cleobulina.
Ontem, disse Cleobulina, o primo Etrusco dormiu lá em casa. E, anteontem, foi a vez de Gabiru Lambujem, que vingou à noite na rede dos ganchos na sala; não piscou os olhos; um revólver em cada bota, os tambores cheios, os bolsos cheios; soprou a luz do candeeiro e ficou atento ao silêncio.
A mãe de Lambujem, eu não sabia, foi tirada de casa menina. Uma manhã de inverno, ela foi visitar o irmão na roça; na roça, tinha um bando de cangaceiros e um deles tomou graça por ela e exigiu do seu irmão que lhe desse ou ele fazia miséria com a família. O irmão propôs à irmã; a irmã deu o maior fuete; foi porque não teve coração de ver pais e irmãos dizimados por sua reina; apesar da reina, cedeu a luxúria do bandoleiro. Foi assim que veio Gabiru Lambujem nessa ruma, ele e os demais.
Em Maceió, Cleobulina trabalhou na casa de várias famílias usineiras de feudos imaginários, e fez de conta com colonizadores em castelos encantados nos quais transitavam fadas em contos mágicos, fantásticos contos. A vida dela não foi fácil! referia-se a si mesma na terceira pessoa. Sonhava com o impossível, e o possível era sempre tão banal.
Diziam-se aceitos os abrigados em contos mágicos por encontros vividos. E os viventes em contos fantásticos se surpreendiam, perturbavam. A realidade do fantástico balançava na corda bamba do circo, que Cleobulina via em Santana em seu tempo de infância. Era um circo de monturo, lona rasgada, um circo que vinha do fim do mundo.
Podia haver lógica em alguém que andava sempre na corda bamba? disse a menina Cleobulina à amiguinha Pragmática; deu-lhe um breve sorriso de dúvida e perplexidade à Cleobulina.
Ninguém precisava explicar à Cleobulina que o fim de quem andava numa corda bamba cada vez mais alta, cada vez mais alta, cada vez mais alta, seria a perturbação. Ninguém saía impune ao desafiar a realidade! disse Pragmática à coleguinha do grupo escolar.
Estranho! disse.
Puro estranhamento alguém tão alto numa corda retesada, que balança, que mal se equilibra naquele monociclo. Como chegou lá?
Pergunte ao palhaço! sugeriu Cleobulina à Pragmática.
Eu não! refutou a sugestão da vizinha de porta que estudava na mesma sala, no grupo escolar. Tu perguntas.
Eu? Não. Tu.
Entre as famílias de usineiros, a casa de uma na qual Cleobulina trabalhou foi a do célebre Dr. Coda. Ele não sabia se mover de um lado a outro sem um livro de numerosas folhas e capa de couro com letras douradas, que destacavam autoria e obra.
Cercado por estrangeiros, o estrangeirismo do Dr. Coda era de fazer lama. Não enxergava autores nacionais; os locais, então! ele ruminava o cachimbo de um a outro canto da boca, preso a títulos estrangeiros e respectivos autores.
Quando não era Kafka, era Melville, não fosse Shakespeare, era Sófocles. Não havia Nelson Rodrigues nem Dias Gomes.
Era como se em Alagoas não tivesse Graciliano Ramos, era como se em Santana não tivesse Breno Accioly. O Dr. Coda era capaz de queimar horas com a literatura prol colonial, era capaz de incendiar dias inteiros, meses, anos. Não acendia um palito de fósforo que proporcionava luz ao escritor local.
Na Livramento, Cleobulina venceu a Sexta-Feira Santa de joelhos, cabeça baixa, olhos fechados. As contas administradas pelo polegar e o indicador. Viu a Mãe de Deus despedir-se do Filho do Homem. Acompanhou a Procissão do Encontro.
Voltou. Livramento estava logo ali. Voltou ao genuflexório, de cabeça baixa, os olhos fechados. Viu o jardim, viu as oliveiras, viu os discípulos. E chorou com a agonia. Viu a face beijada ser traída pelo beijo da boca vil. Ouviu ser negado três vezes.
Acompanhou o julgamento. Ouviu:
Crucifique-o! a turba incentivada a acender o conflito. Crucifique-o!
Ao nascer, Jesus recebeu três visitantes ilustres com três presentes reais. Três a Família Sagrada. E, por três vezes, o asno participou de sua vida: no nascimento, na travessia do deserto, e ao chegar à metrópole. Durante três dias foi professor de doutores, no templo. Batizado aos 33. Três vezes foi atentado, após o tempo em que no deserto jejuou em orações. E as bem-aventuranças representavam a tríplice imagem da Trindade. Pescador, pastor, semeador, as três profissões ensinadas. Por meio dos fariseus, ficou sabendo da intenção de Herodes; e respondeu-lhes que fossem dizer àquela raposa que expulsava demônios e realizava curas hoje e amanhã. João, Pedro e Tiago eram os três amigos mais caros. No monte Tabor, por três vezes recebeu três entes divinos. Comovido, por três vezes verteu lágrimas. Não mais de três foram anúncios da Paixão. Sob o chicote de cordas, mesas e moedas espalhadas, e prometeu o milagre, ao ser destruído o santuário, a Casa de Deus então transformada em mercado, em três dias a levantava. Três mortos foram ressuscitados. Pedro o negou por três vezes, embora houvesse por três vezes revelado o seu amor. Três admoestações a Pedro e aos filhos de Zebedeu, no lugar chamado Getsêmani, que não entrassem em tentação. Por três vezes voltou a orar com insistência ao Pai. No julgamento, três autoridades foram juízes e interrogadores. Por três vezes, Pilatos manifestou a declaração de inocência. Caiu por três vezes no caminho atroz do conhecido Lugar da Caveira. Três crucificados no dia da preparação dos judeus. Três, duas vezes, a idade na qual expirou por volta das três horas da tarde de sexta-feira, como encontrava-se na tradição. Vendido por 30 ciclos. Ressuscitou ao terceiro dia.
RESSUSCITOU AO TERCEIRO DIA
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 20/04/2025 - 22h 10min

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