Foi como se um raio a dividisse em duas. Atravessava-se a porta e o que era já não era.
Outro dia, Dodona pegou no braço de Cleobulina e a conduziu à cozinha. Esperava-lhes fausto café da tarde. Disse-lhe Dodona:
Nem toda a cidade possui o que Santana possui. E nem sempre Santana foi o que é.
Cleobulina, à mesa de Dodona, quis ouvi-la:
E o que a senhora conhece sobre Santana? perguntou.
Leu este romance? disse-lhe e mostrou um livro de capa azul com letras douradas.
Cleobulina ficou sem entender aonde ia a viúva de Cruz das Almas com a conversa de romance. Qual romance? Ela e Bazófia não estabeleceram sequer um romance; era só o que era entre um homem e uma mulher. E quem veio dizer a Dodona que havia romance? A viúva sabia tudo o que acontecia na cidade.
Romance? quis saber Cleobulina.
Abelhas das flores! disse e apresentou a edição de luxo à Cleobulina. Era um romance pesado de ideias, ilustrado de intrigas. Abelhas das flores, Cleobulina, foi escrito lá em Santana.
A viúva de Cruz das Almas levou os óculos sobre o nariz e começou uma leitura arrastada. Cleobulina divertia-se no café. A leitura se foi na voz de Dodona que lia como se lesse por perversão as primeiras páginas:
Na parte baixa da cidade, Douro alugava barracos à beira-rio pelos ossos da face. Dona, a doceira por encomenda, vendia fiado. Contundente, o vendedor de ouro fajuto que parcelava os produtos, pegou a primeira mulher à frente. Por quê? perguntaram. Contundente respondeu que gostava. E teve uma existência terrível à sua escolha. E os filhos que lhe deu Zah Houlha deram-lhe um trabalho horrível. O Bicotouve e o Dentuço, que eram irmãos mecânicos de bicicleta, um perdeu o braço e uma perna numa briga de rua, e o outro foi servir na guerra de São Paulo. O Cabravesga trabalhava desde jovem em consertos de cadeiras e mesas bambas das pernas e fazia concertos de rabeca na festa de Santana. D. Ãglória, conhecidíssima na cidade, era a lavadeira que foi ao Rio e voltou, falava francês. D. Ãglória abriu a sua primeira escola na parte estreita do Panema e, na primeira cheia, o rio carregou a escola de D. Ãglória. Hoje, ela ensinava a falar francês na praça. Zunzum era funcionário de balcão na botica de S. Vioângulo. Zunzum fugiu com o dinheiro da farmácia e ninguém deu fé. S. Vioângulo, dono de duas farmácias no sertão e uma na capital, mantinha amigos espalhados com quem dividia os segredos das doenças. O Dr. Cei Protético comercializa plantas alucinógenas. Biéiu vivia na rede. Yn faltou ao trabalho porque ganhava a vida nas esquinas arrebanhando opiniões alheias. S. Abstêmio era o herdeiro do coveiro Mamado. Farreixa Marceneira vivia com Tipoia. Tempero, escultor em pedras e decorador de prédios, vivia de chumbregar com Dumenina, mulher de Seomeni, que vivia bêbado; os três atravessaram a vida na preguiçosa na frente de casa dando fé da vida alheia e na cachaça. Espigão, dono de cinco bodegas, falsificava tudo o que pudesse falsificar e sonegava tudo o que pudesse sonegar. Zaltinha, filha da professora Zaltinha, contratada por tempo indeterminado, foi às pressas numa viagem a Maceió onde se encontraria com a tia Zaltinha.
E o romance cabia tudo isso, Dodona? perguntou-lhe com a boca cheia de iguarias que abundavam à mesa de Dodona.
E muito mais, minha menina! enfatizou. Muito mais. Zaltinha, a avó e mãe de Zaltinha envenenou o marido Furo com sal; os rins dele não suportaram um ano. E os vizinhos de Zaltinha descobriram Furo morto sob a luz do candeeiro. Furo era daqui de Maceió. Na capital, Furo foi acendedor substituto de lampiões. Em Santana, Furo prestava serviço na cadeia. E o sonho de Fuleragem, pai do engraxate Fuleragem, avô de Fuleragem, era de que nunca lhe faltasse graxa e sapatos velhos. Vi, O Pregador, falava alto em alto-falante sobre a sua fé todas as manhãs e todas as tardes, e todas as noites relia o Livro. A Sra. Vê, mulher do Pregador Vi, acompanhava o marido com repetidos améns; e o negócio da fé lhe dava luxos inimagináveis. Vi sonhava que tinha negado a fé, e tinha a casa cheia de santos de barro; filhos e netos de Vi corriam em torno da mesa, e os santos de barro balançavam. Fu vendia picolé com água do Panema. O irmão de Fu era Au, que criava cãochorros pulguentos. Ru era uma mulher que falava grosso na porta do armazém, e comprava feijão e milhos dos matutos. Tabaréu era marido de Ru. Ti ganhava a vida como costureira e remendava panos rotos. Era quase cega a velha Ti, concorrente da costureira Elipse.
E vai longe! comentou.
Vai! respondeu-lhe Dodona. Dinheiro era contadora que prestava serviço ao comércio local. Tu Alfaiate criava gatos pela casa. Tu Alfaiate dividia a cama com as pulgas. Pivô era um protético que apareceu em Santana depois de uma trovoada; noutra trovoada, Pivô desapareceu. Ela era uma mulher forte, casada com Ele, um homem forte; pais de Nós e Vós, os seus fortes filhos torados no grosso que faziam tijolos com barro mole que era explorado nas margens do rio. Redonda era a filha de um carroceiro das margens do Panema, que fazia doces em casa. O pai de Redonda era Seomagro, a mãe Domoça; os irmãos foram à guerra em São Paulo e nunca deram notícia. Dofilha era enfermeira que imigrou da Itália, estabeleceu-se em Santana por causa do clima que lhe protegia dos pecados; andava Dofilha rua acima, rua abaixo com o seu estojo de latão cheio de seringas de vidro e agulhas ameaçadoras. Dofilha vendia saúde, sotaque e comprava fiado nas lojas. Cien trabalhava com bombas juninas, jurava explodir a cidade se não comprasse os seus brinquedos de festa religiosa e pagã; Cien chegou das Guianas o ano passado, saiu da França por causa de desavenças amorosas; montou casa, constituiu família em Santana; manteve o que mantinha com fogos de artifício. Finfio era o dito burguês, não que fosse burguês, embora dissesse sê-lo porque abriu uma fábrica e concorria à luz do sol e da lua com o Cel. Bé do Algodão.
O meu irmão?! pulou da cadeira.
O teu irmão era o Cel. Bé do Algodão? surpresa, indagou-lhe Dodona.
Era. Não sabia?
Não.
E como o Cel. Bé do Algodão veio parar aqui?
Ficção, Cleobulina, minha menina, ficção. Ficção não era realidade.
Não?
Não permitisse que realidade e ficção fossem a mesma coisa, senão logo a mentira e a verdade também seriam.
E o que falava mais, aí, sobre o meu irmão, o Cel. Bé do Algodão? disse. E, aí, falava também sobre mim?
Aqui, Cleobulina, dizia que Finfio prosperou, inaugurou olaria, fez tijolos e fez telhas com a matéria-prima que extraía do beiço do Panema, além de fabricar pisos e azulejos vermelhos. Já era amasiada com Era, um comerciante de sal e algodão que vivia no alto da serra à noite e descia à cidade quando amanhecia; Já, na salga de carne, fazia carne de sol. Fá era conhecido de rua que virou político de bairro e ganhou cadeira vitalícia. Fu era mãe de Fá. Quão a sua mãe, o ganha-pão de Fu era lavar roupa do povo. Lá era um pastor afamado que tinha a palavra na ponta dos dedos e combatia todos os santos de barro. Lé foi coroinha na igreja do Livramento, aqui em Maceió, antes de se converter, tornar-se pastor. Fé era ateu e vendia fitinhas de santos nas ruas da cidade. Zu era bilheteiro no cinema que trazia filmes dos grandes centros. Nosferatu estava em cartaz há um ano e meio. Nosferatu, de estética e terror Expressionista, atraía a fome do povo pela tragédia. Se continuasse como vinha, Nosferatu nunca mais sairia das salas de cinema. Carlitos ria de Nosferatu. O povo adorava sentir medo. O cinema em Maceió contaminou a única sala de cinema em Santana. Vum vivia em Santana graças aos rendimentos de suas casas alugadas ao comércio local. Donapipoco era dona de pensão e sonhava em ser dona de hotel. Sucesso vivia de emprestar dinheiro a juros altos. Infiel era gerente de banco e um agiota bem popular. Bi possuía dois restaurantes na cidade; o primeiro cuidado por ele, o segundo ficou a cargo da esposa e das filhas, lindas mulheres de olhar egípcio. Tá era dono de gado e alugava terras; a mulher de Tá era Tam, que chegou à cidade na época das primeiras escolas de mandarim; Tam veio de Rio Largo onde estudava e vendia pipoca como meio de custear os estudos. Tam e Tá eram pessoas sem tempo. Dó era o dono de bancas de revistas e jornais. Mi era músico profissional. Só era poeta ignorado com livros publicados que se amontoavam em casa; não havia leitores de poesia; e os livros que Só distribuía aos amigos voltavam à sua casa com a sua dedicatória gongórica e ocupavam os cômodos e os incômodos. Si procurava um teatro a qualquer custo onde apresentar-se; e, dramaticamente, Si sonhava em demonstrar como Si sabia cantar diferentes estilos musicais. Não sabia quem era Si? Era filho caçula do finado P. Bado, um comerciante de gado. A mãe de Si era a viúva D. Rusga; chegou molhada, sapatos encharcados; e viu Si drogar-se. P. Bado estirado numa poça. Foi recebido a tiros pelo comparsa de Si, a Segunda Pessoa de Seuninguém. Não! gritava D. Rusga. Por favor, não!
Foi crime, senhora dona Dodona?
Sim, Cleobulina.
Dodona, todo esse arrodeio terminava assim?
Os romances tinham essa fraqueza.
Não sabia.
O que um homem quer de outro homem?
Não sei, senhora, não! engasgou Cleobulina.
A terra! respondeu com amável sorriso.
Longe de Cruz das Almas. Na banca, o Prof. Monótono letrava qualquer um que quisesse letrar; isso sem saber o professor que exercia gratuitamente o letramento.
Havia uma comichão no Prof. Monótono que o motivava a letrar quaisquer pessoas que se deixasse contaminar pelo poder da leitura e da escrita. Um dos tocado pelo letramento do professor foi Cético, que foi, e não era mais o menino de recado de Cleobulina.
Cético conheceu o teatro. Durante o dia, ele trabalhava na banca de feira de Cleobulina; à noite, a sua dedicação era ao Teatro do Povo.
Na feira, o Prof. Monótono letrava, Cético atarefado com afazeres diários, Novesfora, este Pitágoras alagoano, comercializa artigos do Oriente, Grotesco amola facas, Engabelado rogava esmolas, Chucho bebia e contava piadas na garapeira da esquina, Promiscuidade passava com cheiro de rapadura, o velho Exploração vendia carvão, a família Variação Linguística fazia trocas, o pistoleiro Guabiru Lambujem procurava Cleobulina na banca.
Ela foi à Cruz das Almas! disse Cético ao pistoleiro.
Guarde, aí, esse pacote! pediu Guabiru Lambujem, filho do cangaceiro Camundongo, irmão do falecido pai de Cleobulina. Cético guardou o revólver do pistoleiro.
A mulher com a cabeça sob o véu prata, que frequentava a Igreja, e com ela o sinal da cruz, passou apressada na frente da banca de Cleobulina. Disse o bom-dia sem obter resposta.
Bazófia andava sumido. Havia semanas que não aparecia na feira. Fazia Trancoso, encostado na banca de Cleobulina, um cigarro na palha de milho.
A noite já era alta em Cruz das Almas. A viúva Dodona falava do avô e da manhã em que viu pela primeira vez a chegada de um navio negreiro.
Em Cruz das Almas, na cozinha de Dodona, Cleobulina ria e se fartava à mesa de doces e salgados. Nenhuma mosca competia com a gula de Cleobulina.
No Teatro do Povo, no centro de Maceió, Cético e mais 50 aprendizes de teatro amador ensaiavam a peça Reflexo no espelho. Esta peça foi achada entre os guardados literários de um dramaturgo santanense.
As caixas de madeira e ferro com textos de literatura e de pedagogia desse teatrólogo santanense ocupavam dois cômodos no Solar dos Anzóis. Amadores de teatro, no grupo Teatro do Povo, preparavam a situação dramática onde os cativos eram capturados nas florestas africanas, e selecionados nos cativeiros; e, dias depois, embarcados.
O ensaio era feito ao som forte da música tocada por metais. Vicissitude dirigia o espetáculo. O grupo ensaiava no exíguo prédio, sob a placa de madeira onde era lido Teatro do Povo, entre as esquinas da Rua do Sol e da Livramento.
Correm o homem nu, a mulher, a criança na densa floresta nos trópicos distantes! disse Cético, e seguiu o coro nos ensaios da peça no Teatro do Povo.
Canta o coro:
Ladram os cãeschorros. Tropéis bestiais. Bárbaros captores.
Segue o coro:
Sequestra-se a cada dia mais e mais. Rufa o navio barcaça no oceano. E o porão cheio. Em ferro a carga. Açoites cortam o ar. Estalam. Dilacera-se a carne dos cativos.
O coro feminino:
No Atlântico ecoam gritos. Cúmplice, o vento sopra. Seguem os tubarões o navio barcaça.
O coro masculino:
O navio barcaça viaja com as velas cheias.
Velhos, homens fortes quais tufões, esperneiam. Gemem. Pedem perdão. Mulheres nuas, nas correntes, entre dejetos, lama pútrida, rogam.
Em Cruz das Almas, na cozinha da viúva Dodona:
Há um sonho que me acompanha desde aquela manhã na qual fui com o vovô ao porto! disse Dodona à Cleobulina. Desde criança, naquela data em que fui levada a ver o navio chegar da África.
Vejo em cada sonho os olhos dos desembarcados que se arregalam em um terrível espanto. Os corpos nus cortados a relhos. Os grilhões nos corpos são arrastados. As correntes em fila indiana.
Aproximam-se os cativos do mercado. Acordo no meio da noite e vejo nas paredes do meu quarto.
E a criança que eu fui também se encontra nestas cadeias. E sinto-me espremida e esmagada como os dedos numa porta. Vejo uma mancha disforme no chão.
Em meu quarto tudo é breu, mesmo quando está iluminado! continuou a dizer a viúva Dodona. Na cabeça, só o barulho das correntes, as ondas no cais, o choque da água do mar no casco de madeira do navio barcaça feito féretro.
As ondas quebram com violência. Socam as pedras por vingança. Logo se entregam às ondas à praia, as ondas já vencidas.
Cansadas, as ondas dissipam-se. E outra onda, e outra, e outra, e outra, e outra, e outra, e outra, e outra já ressurge e se arma. E se ergue. Quanto poder, meu Deus, há nas águas!
Quanta energia as águas trazem, Cleobulina! disse Dodona num alívio. E, não demora, outra onda vem. Ergue-se também corajosa. Viva. Revive. E ataca outra vez as pedras. Enfrentam as ondas os arrecifes.
Os recifes gemem? Não. Ficam calados. As rochas submersas abaixo da superfície.
Uma noite é tão pouca, poucos são os dias. Há muitos dias já não durmo, semanas, meses, anos talvez.
Eu vou dormir, Cleobulina, e não consigo. Estou convencida, Cleobulina, a medicina não é minha amiga. A fé já me abandonou. Talvez possa contar com o teu auxílio.
Como, senhora dona Dodona! disse a voz de uma Cleobulina saciada com tão boa comida.
Logo amanhecerá em Cruz das Almas! gemeu Dodona.
A viúva Dodona oferece um bosque à Cleobulina. Isto a deixa pensativa e saciada com tão boa proposta. Um bosque à sua escolha caso lhe cure alguma de suas ervas mais secretas.
Conhece alguma erva misteriosa? investigou Dodona.
Uma que lhe cure o mal-estar. Uma que salve da inexplicável maleita. Ela toca levemente no braço da convidada, Cleobulina vê as mãos da viúva Dodona, os dedos cheios de anéis caros, pedras ricas.
Como escapar desse madeiro? busca Dodona resposta.
A lembrança daquele quadro da chegada do navio com a sua carga era o que mais lhe apavora. As figuras frágeis acorrentadas. O baque das ondas outra vez no casco, outra vez nas pedras.
Sabiá-laranjeira já anuncia a manhã. O sol de ouro já banha Maceió. As cores mudam lá fora. Vê-se da cozinha as mudanças nas cores. O barco navega no azul-piscina. A sombra cede à luz. O sol brilha feito uma nave passageira.
Já duvido, duvido tanto, Cleobulina, duvido sempre, logo a dúvida volta, e duvido outra vez, duvido constantemente, duvido a cada instante se sou viva ou se morri. Em minha volta tudo é escuridão e sepultura.
Não me importa se a brisa bate em minha porta essa hora da manhã. Não me importa se a luz, se o sol ilumina outro dia. E não me importa a sombra das palmas dos coqueiros, a sombra que fazem as folhas da jaqueira. Os coqueiros sepultados na areia em minha porta.
É escura, é escura, Cleobulina, a minha sepultura! disse com a expressão de pedra talhada na cara da viúva Dodona sentada à mesa ao lado de Cleobulina sob a luz da manhã.
Use, Cleobulina, as tuas ervas, a tua cura! disse como se quisesse fazer um silêncio dramático. A tua ciência use-a. E cure a enfermidade que me aflige.
Cleobulina fez-lhe o gesto com o jeito de quem viajava em pensamento.
É só o que me resta, Cleobulina! disse, e tocou o braço de Cleobulina que a trouxe da fantasia à realidade. Ver uma pessoa morrer não é uma experiência boa.
Tudo aqui poderá ser teu! disse com um estalar de dedos. Fique com esta casa, com estes móveis, com estas roupas, com estas terras, com este bosque, Cleobulina.
Me desculpe. Me perdoe. Aluguei um imóvel condenado, podre por dentro e por fora.
Este luxo dos cuidados, que me acompanha, já não me cabe. E em tuas mãos entrego todos os meus medos.
Talvez, quem sabe, uma de tuas ervas me aponte à cura e liberte-me, por fim, Cleobulina. Uma de tuas sortidas e curiosas ervas, definitivamente, arranque o que trago comigo. Liberte-me da sepultura.
Vovô tinha os bigodes retorcidos. Uma lente no olhar. Ele ainda costuma visitar-me onde estou. Arranquei das paredes as pinturas. Queimei os seus livros e as suas roupas, os seus chapéus. Não sai daqui o cheiro dele em meu corpo.
Fiz viagens ao extremo Norte, ao Leste tantas vezes fui. Agora já não me submeto a ir. Vi tudo. Vivi tudo o que existe e é vivido.
Conheço a Europa de ponta a ponta. As Américas as tenho todas de cor. Fui e voltei à Ásia desde criança; eu e o meu avô. Evito outros continentes que me fazem lembrar minha riqueza, meu destino.
Não quero seduzir, Cleobulina, tenha certeza.
Cleobulina sorriu.
Pode comer tudo o que desejar nesta mesa, Cleobulina.
Cleobulina agradeceu.
Me salve! jogou-se Dodona aos seus pés. Me liberte com teus chás. Já fiz todos os sacrifícios sugeridos pela ciência. Fui em busca de saúde nas pocilgas. Pernoitei em cemitérios imundos. Em hospitais me deitei com todas as doenças, acompanhei os seus gritos. Nos presídios os horrores. Percorri desertos a pé.
Caminhei descalça sobre a neve. Corri sobre o mar congelado. Jejuei. Fiz promessas, sacrifícios, caridades.
Agi como age o cruel. Rastejei. Não consigo dormir nunca; e estou sempre acordada. O sono me apavora. Tenho medo de sucumbir.
Sugira-me, Cleobulina, quaisquer das folhas, qualquer erva do herbário. Indique-me as folhas certas. Me leve ao ervário. Mostre-me as folhas mais raras que houver.
Não duvide, Cleobulina, de minha bondade.
Não, senhora dona Dodona, não.
O que é o amor? disse e riu Dodona. É um sentimento hostil. Possessivo. Vingador. Vi acontecer com o meu avô comigo.
Nada o separava do amplexo arrochado, nem o brado que repetidas vezes eu bradava. Vovô não me dava ouvidos. Beijava-me dos pés à cabeça. Gritava, gritava e gritava, e ele não me ouvia.
Posso me alevantar, senhora dona Dodona?
Não! exasperou-se. Espere! disse numa demonstração tênue de carinho.
E passou a mão na mão de Cleobulina. Passou a mão levemente sobre o braço. E sorriu com a cara de Nosferatu. A imagem nos cartazes de cinema em Maceió. A viúva Dodona de Cruz das Almas não demorou, segurou-lhe firme no braço.
Os caninos tão sedentos. Sem reflexo no espelho, a viúva Dodona ria.
Diante de Cleobulina há uma espécie de conto fantástico com a realidade ilógica presa dentro da lógica. As figuras dos contos populares cuja superstição se espalhava na cozinha da viúva de Cruz das Almas.
Um conto de fadas sem duende e outras criaturas estranhas com poderes mágicos. Um conto que começou maravilhoso, repleto de assuntos reais. Conto extraordinário cheio de mistérios, medo e melancolia na voz da viúva Dodona.
Não se assuste comigo, Cleobulina.
Não, senhora dona Dodona, não.
Eu te quero bem.
É?
Cleobulina, quebre minhas algemas. Nasceram nesta casa de meu avô poucos, muitos foram comprados e agregados outros, outras vieram por causa de testamentos e apostas. O velho vivia de jogos com vidas humanas que lhe fez amealhar fortuna e impor o medo nos corações.
Toda criança é trágica. A criança é o caminho, ele dizia. Ele quem? Velho avô. Esta velha aqui diante de tudo foi criança e trágica. A tragédia é uma marca que não se apaga.
Tem uma sombra na cortina? perguntou a viúva Dodona.
Sombra na cortina? quis saber Cleobulina; e olhou os quatro cantos.
Sim! irritou-se. Tem?
Não vejo.
Eu vejo! mais irritada. Tem uma sombra atrás da cortina. Não tem?
Não.
Um rato, uma fofoqueira que merecia receber a espetada da morte. Não minta, Cleobulina. Tem. Tem uma sombra na cortina.
Uma sombra na cortina?
Talvez.
Talvez o quê!
Talvez tenha uma sombra atrás da cortina, senhora dona Dodona.
Não falei!
Quê!
Que tem uma sombra por detrás da cortina.
Tem, Cleobulina?
Tem uma sombra atrás da cortina.
Eu ouço passos vítreos toda noite, às vezes durante o dia. Passos vítreos. Eles percorrem toda a casa. Passos vítreos. Sabe o que são? Passos vítreos. E eles estão aqui agora.
Onde?
Passos vítreos, Cleobulina. Passos vítreos em toda a casa. Eu ouço. Aqui, aqui dentro. Passos. Às vezes, eu penso. Mas só às vezes. Eu penso nos passos do vovô. São as batalhas das estéticas aqui, aqui dentro do meu lar.
Não ouvi.
Já teve um lar, Cleobulina? Certamente. Não sei. Mas isso não importa! Já passou fome, Cleobulina? Mas isso me parece inominável. Já teve medo? E isso também não importa! Vejo que tens cara de gentinha. O que importa é que o futuro do futuro é não ter futuro.
Futuro, senhora dona Dodona?
Eu ganho dinheiro fácil! riu ao dizer. Aliás, sempre ganhei. O dinheiro brota em cada colchão. Eu tenho um advogado em cada esquina a meu serviço. Nunca sonhei. A minha família não é pobre. Nunca foi.
Eu já nasci no caminho dos sonhos. Minha vida foi marcada por mortes.
Mortes?
Sucessivas, Cleobulina.
Todo dia ao meio-dia, a mamãe filha do vovô apanhava de palmatória. E obrigava o vovô que a mamãe lhe mostrasse as palmas das mãos. E a mamãe obedecia. Durante todo o dia, eu esperava que a mamãe me obrigasse a mostrar as palmas de minhas mãos.
A mamãe tinha sempre próxima a ela a palmatória. Vovô ao meio-dia lhe chamava:
Traga-me à palmatória.
Eu não questiono, Cleobulina, a tradição.
Não, não senhora! concordou Cleobulina com a boca cheia de brioche.
Não! enfatizou. O que existem são a luminosidade e trevas. Onde tudo se vê e se compreende e se aceita e se convive na mais absoluta paz de espírito.
Paz de espírito...! repetiu Cleobulina as últimas palavras da viúva Dodona. Cleobulina ficou cada vez mais admirada de mesa tão rica, de lugar tão limpo, de ambiente tão calmo. Com a boca cheia de brioche.
E as trevas onde tudo é confuso. A mentira apresenta-se como verdade. A fome como única opção. A dor como prazer. O escárnio como diversão. E o ódio como passatempo.
É? com outros brioches na boca e nas mãos. Cleobulina habituada a ver barracos em beiço de rios, ao lado dos esgotos em Maceió, deslumbrava-se com brioches e o canto de sabiá-laranjeira que anunciava outra manhã.
NO BOSQUE DE CLEOBULINA
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 02/02/2025 - 23h 08min

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