E quem, afinal, eram os herdeiros legítimos?
Em Santana, Hermenêutico e Teratológico, acadêmicos na Faculdade de Direito do Recife, comemoram o Ano-Novo. No Bar da Sogra, abasteciam os copos de herdeiros necessários com descendentes, ascendentes, cônjuge etc.
No comércio, por mais que tentasse, o Cel. Bé do Algodão não se livrava das lembranças. O que existia (era a sua filosofia a cada ano-novo), existia por existir.
O Cel. Bé do Algodão, que foi Bé Carroceiro, que foi Bé Saboeiro, que foi Bé Bodegueiro e que foi Bé Sonhador, diferente dos irmãos. Um foi aprendiz de sapateiro, outro de marceneiro, uma irmã foi lavadeira, outra doceira. Bé, que foi operário numa fábrica de sabão em Recife, Pernambuco, tornou-se o Cel. Bé do Algodão. A sua semente de sonhador planejava fazer o primeiro conglomerado no sertão, onde nasceu e dele não cortou o cordão umbilical.
O Cel. Bé do Algodão e o padre Velho encontraram-se na frente do novo prédio da livraria, prédio recém-construído ao lado do templo de Santana. O sol anunciava o calor em brasas acesas, nas primeiras horas da manhã.
O padre Velho procurou sob o seu chapéu – se cada homem tinha chapéu, bigode, paletó de linho branco, o padre batina – alguma frase de autor. Ainda era pecado uma frase sem autor, no catecismo do padre.
Procurou frase de autor nos 73 livros da Bíblia; e foi aos Pais da Igreja, lá, vasculhou na memória cristãos dos primeiros séculos, ascetas, bispos, filósofos, e teólogos não ficaram de fora da pesquisa. Foi ao período de seminarista, foi à vida em Coimbra, Portugal, onde aprendeu sobre a teologia trinitária. Era pecado uma frase sem autor.
O ano, coronel... disse-lhe sem concluir ...era um período que terminava, outro que começava. Foi interrompido o padre Velho num esturro brusco do Cel. Bé do Algodão:
Já foi tarde!
O poder tinha diferentes comportamentos quando essa entidade gruda à pessoa, balbuciou o padre. Ressoava o já fosse tarde do coronel na cabeça do padre Velho.
Era mesmo tudo um grande logos. Dentro dos males só aos sábios cabia-lhes a felicidade, balbuciava o padre Velho, que olhava o letreiro que se pintava LIVRA. O homem convivia com a manifestação indiferente à alma.
O padre Velho notou que o Cel. Bé do Algodão perdeu a sua doutrina. A antropologia do coronel estava à beira do colapso.
Com o tempo, o padre Velho aprendeu a exercitar a sabedoria. Era a fuga que o evitava perturbar-se facilmente.
O Cel. Bé do Algodão dava ordens ao letrista que pintava o nome da livraria na placa. Instruiu-o nos pormenores. Dizia-lhe as cores. Ignorava o padre Velho.
Estudioso, meditativo, o padre Velho não se afastava de virtudes cardeais. Sabia ser justo, disse o padre Velho com o chapéu à mão e o corpo coberto pela batina preta cheia de botões pretos. Os pés num par de xoboi. Prudência, disse ter desde Coimbra, onde foi reles estrangeiro em terra estranha de curiosidades. Sempre temperado, o padre foi desde menino, pelo sol sertanejo.
Vamos, Ira! chamou o padre, o cãochorro, que dele não se apartava.
O Diário de Santana, o grande jornal da cidade, conhecido como único a não ser cavalgado. O Liberdade de Expressão era semanal, o Diário de Santana vendia anúncios, publicava notícias dia a dia.
As máquinas tipográficas ocupavam o mesmo prédio do jornal. Tipógrafos chegaram a Santana vindos do Recife. O dono do jornal contratou profissionais de comunicação com o objetivo de fazer mudanças no sertão. À época, o Cel. Bé do Algodão trouxe pintores e escultores à cidade. Escritores, poetas chegaram e popularizaram expressões de Pérgamo.
Vamos, Ira, que somos, afinal, uma casca de noz no oceano cósmico!
Cada vez que o Cel. Bé do Algodão era acometido por crises de nostalgia, o nariz começava a expelir aranhas. E elas desciam sobre o seu blazer, corriam no chão. Aranhinhas que deixavam um rastro de teia.
E por mais que tentasse, o coronel não se livrava das lembranças. Àquela época, na virada de ano, vinham-lhe a mãe, o pai; a imagem deles queimada no incêndio da casa onde eles dormiam.
O luto era uma dor solitária. O sertão também era conhecido por vingança.
O Cel. Bé do Algodão via-se nas ruas do Recife, via-se na fábrica. O negror das ruas, quando saía da fábrica de sabão.
Sob a sombra, na alameda de oiti, o operário Bé deixava a fábrica após a meia-noite. Entrava no negror da Rua do Juá, após a ponte Buarque de Macedo; entrava no beco que o levava à pensão.
Na rede, ele sonhava com o vento nas craibeiras do Panema. Depois, os seus pés o levavam às Areias Brancas onde floresciam os ouricuris. Os pais dele o ensinavam a fazer chapéus com a palha seca de ouricuri.
Vinham de longe as vozes, os ritmos, o som do ritual Ouricuri. E era como se os revivesse. Aproximava-se uma crise hídrica irrecuperável. Armazenar toda a água era preciso. Planejava guardar grandes blocos de água congelada, como viu no estrangeiro, bilhões de litros em estado sólido.
Os frondosos, carregados cajueiros, transformavam as Areias Brancas em oásis, no sertão. Diante da casa de Bé, na antiga Rua da Cadeia, silentes viviam as baraúnas, elas não protestavam, elas não pensavam, elas não agiam.
Sobreviviam, em torno da cidade, famílias de grupos tribais. Com elas, Bé aprendeu a língua tupi. Ia e voltava com frequência à aldeia Povo da Beira-Rio.
Nessa aldeia, Bé era amigo de Iatê, filho do pajé Cariri. Cada vez que ia à aldeia, a mãe de Iatê, Carnijó, recebia-o com festa. Ela dominava a língua dos espíritos, e Cariri transitava entre o mundo de mortos e vivos.
Os negócios do Cel. Bé do Algodão prosperaram em diferentes períodos com a guerra, com o gado e com a exportação de grãos. Mandou muito algodão à Inglaterra. Planejava em Santana uma tecelagem. Comprou, vendeu terras; no São Francisco, transportes a vapor.
O padre Velho soube que Silepse era a escolhida pelo Cel. Bé do Algodão a gerenciar a livraria. Silepse como nome próprio era tão comum quanto Maria e José; homens, mulheres eram identificados nesse substantivo antropônimo.
A livraria às mãos de Silepse. Não Silepse que levantava casa, pedra por pedra, tijolo por tijolo. Silepse, filha do Cel. Silepse, chefe político no município de Léxico Encarnado, um remediado de terras e gado na região; filho do escravista Silepse, que perdeu tudo em 1888.
A costureira sobrinha do padre, Elipse, que não deixava a janela depois que diversificou o negócio de costura e começou a ensinar o ofício à juventude, via com frequência Silepse, filha do Cel. Silepse, atrás do Cel. Bé do Algodão. Ali, tinha coisa! murmurava Elipse cada vez que via Silepse.
No confessionário, o padre Velho ouviu de Silepse que o pai, Cel. Silepse, ainda não sabia que o viúvo Cel. Bé do Algodão visitava o travesseiro e os sonhos de sua filha, noite após noite.
Silepse, filha única do Cel. Silepse, foi residir em Santana, na casa de uma tia solteirona, irmã do coronel, por ser tinhosa e manter o pai em rédea curta. Na mudança de ares, Silepse trouxe de Léxico Encarnado o seu gênero discordante entre feminino e masculino, discordância entre singular e plural e a discórdia que envolvia sujeito na terceira pessoa e verbas que o pai lhe mandava na primeira pessoa.
A administração de Silepse na fábrica de móveis, antes de Bé do Algodão ser o Cel. Bé do Algodão, fez a venda aumentar e cresciam a cada dia. E todos os funcionários estamos satisfeitos! disse Silepse à cidade, conforme relatórios.
Em Santana, ele fez a primeira fábrica de azulejos e lajotas; e a primeira fábrica de móveis também foi outra de suas iniciativas. Com Silepse à frente da primeira livraria na cidade, disse o Cel. Bé do Algodão, capital se fortaleceria com capitalismo na circulação dos livros.
Por Silepse ser filha única do Cel. Silepse, este era paciente com ela, como foi paciente com a finada mulher, que também se chamava Silepse. Na casa da irmã solteirona, o coronel, em cadeira de palhinha, fazia o libelo acusatório aos ladrões, aos piratas, com os piores substantivos e os melhores neologismos.
Aonde ia essa cidade? perguntou o coronel à irmã. Tinha jornais, e cinema e até livraria.
A irmã entortou a boca num gesto de nojo. Um fósforo acendeu o charuto do coronel. Um dia, continuou o irmão, a mim era certo, eu me livraria da livraria. Era mesmo canalha! reclamou. Vivi em casa de canalhas. Nasci canalha? Filha minha ser funcionária de carroceiro! despejou o Cel. Silepse as cinzas do charuto.
A irmã entortou a boca e olhou aquele chão, olhou as cinzas do charuto levadas pelo vento. Não podia ver um cisco qualquer no chão que ia apanhá-lo com o indicador e o polegar; depois, passava as mãos por trás do vestido.
Uma vez carroceiro, prosseguiu o Cel. Silepse, uma vez cheirador de bufa de égua...!
Corria a irmã do coronel com pá, espanador e vassoura. Entortava a boca de nojo à sujeira.
Fabricante inútil de sabão, dono de bodega! não parava o Cel. Silepse. Um sabãozinho fedorento feito de imundícies. Inventou de presentear a minha, doce e ingênua, Silepse, com livraria.
A solteirona limpava as mãos no vestido. Entortava a boca. Passava pano nos móveis de mogno. O rosto com expressões de nojo. Rugas e linhas finas. E as rugas de expressões aumentavam.
Onde, minha irmã, houve disparate e provocação maiores!
As mãos ao vestido longo, que lhe cobria do pescoço ao calcanhar. Rugas de expressões. Manchas senis lhe cobriam as mãos.
Livros, irmã, livros.
Melanoses solares eram luvas nas mãos da irmã do Cel. Silepse, que ela tentava escondê-las. Manchas acastanhadas nos dorsos das mãos.
Pagou à equipe do pedreiro Silepse, isto era puro acinte, irmã, com ordem de erguer, e ergueu, aquele prédio de dois pisos grudado ao templo de Santana.
A irmã olhava o irmão. Acompanhava o comportamento dele com charuto entre os dedos.
Encheu caixote e caixote de livros, que vieram diretamente do porto do Recife! disse com cinzas ao chão. Soube?
Tudo se sabia, irmão! respondeu-lhe e, de canto de olho, olhava as cinzas no chão; e gritou, socorrida por três empregadas da cozinha com balde d’água, pano e vassouras. Quer um café, irmão?
Aceito! disse e lançou o tufo de cinza de charuto onde havia sido limpo.
Ela coçou as melanoses solares. Entortou a boca. Fez cara de nojo com a indiferença do irmão caçula.
Quase ordenei à jagunçada pôr tudo abaixo! disse ao receber a xícara de café. Se acordar azedo, mando queimar.
Mais café?
A nossa Silepse, irmã. Acredita? perguntou o Cel. Silepse que, quando se sentia pressionado, apertava o barrigão e expelia sulfeto de hidrogênio.
O coronel não sabia, sequer sonhava, a irmã sabia que Silepse suspirava pelo Cel. Bé do Algodão. Ela dizia a si mesma que ele era só outro velho derretido pela juventude de sexo oposto.
Não, tia! a voz da sobrinha na cabeça da tia. Ele não sabia.
Nunca admiti Silepse acabar-se no trabalho, minha irmã! mais baforadas. Silepse tudo possuía. Ela ganhou uma lâmpada mágica com pedidos infinitos ao gênio. O otário, aqui, ó! novas baforadas, que faziam o charuto em brasa viva.
Era verdade.
A qualquer hora, aparecia prenha do fidumaiégua...
Era mentira!
E ecoou na sala o verbo emprenhar no indicativo (ele emprenha), pretérito imperfeito (ele emprenhava), pretérito perfeito (ele emprenhou), pretérito mais-que-perfeito (ele emprenhara), futuro do presente (ele emprenhará), futuro do pretérito (ele emprenharia). Verbo saiu do indicativo, foi ao subjuntivo. Presente (que ele emprenhe), pretérito imperfeito (se ele emprenhasse), futuro (quando ele emprenhar). Foi ao imperativo ao deixar o subjuntivo. Imperativo afirmativo (emprenhe você), imperativo negativo (não emprenhe você). Acabou no infinitivo pessoal (por emprenhar ele).
A conjugação com o pronome oblíquo átono O veio em seguida. Indicativo presente (eu emprenho-o) /antes/, pretérito imperfeito (eu emprenhava-o), pretérito perfeito (eu emprenhei-o), pretérito mais-que-perfeito (eu emprenhara-o; nós emprenháramo-lo), futuro do presente (eu emprenhá-lo-ei; nós emprenhá-lo-emos) /antes/, eu e a jagunçada, futuro do pretérito (eu empenhá-lo-ia). Verbo caiu no subjuntivo presente (que eu o emprenhe), pretérito imperfeito (se eu o emprenhasse), futuro (quando eu o emprenhar). E se foi esse verbo, na fumaça que saía do charuto à boca, ao imperativo afirmativo (emprenhemo-lo nós), imperativo negativo (não o emprenhemos nós?) e o verbo chegou ao infinitivo pessoal (por o emprenharmos nós).
Ano-novo, leitura nova! comentou o padre Velho com a iniciativa do capital do Cel. Bé do Algodão. Finalmente, meu filho, havia coisa nova debaixo do sol. Era assim que se fortalecia o capitalismo: com a circulação do capital.
Na sombra da varanda da fazenda Engenho de Rapadura, o Cel. Bé do Algodão visualizava o jornalista pernambucano Lítotes. Ex-funcionário do Cel. Dr. Cicrano, no semanário O Liberdade de Expressão.
Ele vinha. Ele aproximava-se. O seu andar era como se estivesse com as calças cheias à procura duma moita.
No jornal do Cel. Bé do Algodão, Lítotes era o editor de redação, escrevia as edições no Diário de Santana. Ao ser indagado se se sentia bem sob a nova bandeira, disse Lítotes:
Feliz, coronel, por não servir mais ao ancien régime.
Caía uma chuva fina sobre janeiro. Eram as nuvens que passavam sobre a Engenho de Rapadura.
Por que não priorizava as matérias sobre desunião na família? perguntou o Cel. Bé do Algodão ao jornalista pernambucano Lítotes.
Esse assunto, coronel, não vendia jornal.
Família passava maus bocados, Lítotes. Provocava, ameaçava. Desejava mal. Atava mãos e pés, Lítotes. Desunião completa.
Senhor...
A família só desejava o que era ruim, Lítotes. Não se unia, porque odiava fulano. Não se aproximava, porque desgostava de beltrano, desejava matá-lo.
Coronel...!
Essa caixa...
Que caixa?
A família.
Ah!
Era belo papel de presente à venda de jornais.
Na varanda da Engenho de Rapadura, o Cel. Bé do Algodão viu a imagem do jornalista desaparecer. Foi fácil convencer Lítotes a mudar de bandeira; disse o jornalista que o seu trabalho anterior era feio, fraco e fedorento.
Cercado por frondosos cajueiros, cujas copas subiam acima do alarido de passarinhos, na Engenho de Rapadura, o Cel. Bé do Algodão viu o caminho, no qual se foi Lítotes, era a imagem do dono de farmácia Polissíndeto. E este também foi contaminado pela mosca tsé-tsé.
Na redação do Diário de Santana, Polissíndeto era copidesque. Com ele vieram Hipérbole e Pleonasmo, que não gostava de ficar por baixo da professora de português, a sua mulher Hipérbole. Pleonasmo, professor de matemática, foi incluído na parte contábil do jornal do Cel. Bé do Algodão.
Na cidade, uns tinham poços e outros posses! comentou Hipérbole.
A família ia ladeira abaixo! disse Pleonasmo à mulher. Fazia tanto tempo que a família olhava o precipício, como disse o padre Velho, que o precipício não lhe abandonou mais. A família era o próprio precipício, Amor.
Na Engenho de Rapadura, um cãochorro histérico começou a latir numa inútil intimidação ao Cel. Bé do Algodão. Insistiu o cãochorro sem sair do centro do terreiro; ameaçava avançar, recuar.
O Cel. Bé do Algodão viu dissipar-se a conversa na redação do Diário de Santana. O cãochorro desistiu de latir, sepultou a cauda entre as pernas, abaixou as orelhas, sumiu no mato.
Após a roça de melancia começavam as mangueiras pesadas de manga rosa com a sua polpa doce, suculenta. Um dia, chegou do Recife com ideias e o relho à mão. E, ontem, chamado pelo pai de caricatura de oportunista. Hoje, uma das maiores fortunas.
Lia o Cel. Bé do Algodão um, entre tantos jornais espalhados no chão de cimento grosso e pedras miúdas, na varanda da Engenho de Rapadura.
O cheiro de mato verde envolvia a casa-grande construída antes de 1888. Queimaram os arquivos, repetia, queimaram os arquivos! o coronel ouvia a voz do vento:
Queimaram os arquivos, repetia, queimaram os arquivos!
Ultimamente, ele disse, as notícias provocavam náusea.
O vento continuou a carregar a mensagem sobre os arquivos queimados. A casa-grande tinha as janelas abertas; as portas foram rasgadas pelo vento. E o tempo mudou, distanciou-se de 1888.
As águas dos últimos meses favoreceram o sertão, ele disse. E a caatinga explodiu em cores vivas e vidas.
O Cel. Bé do Algodão aproveitou as chuvas e pediu aos empregados que armazenassem toda a água. O sertão signo de Balança, e isto por si explicava ao entendimento comum a escassez d'água.
Uma época abundante d'água, ele disse, outra escassa.
Corri o vento dentro de casa.
O Panema não saiu do projeto do empreendedor em perenizá-lo. Grandes açudes foram construídos em suas fazendas, cisternas imensas. Ele represou o Panema em vários pontos onde passava. Fê-lo com água mesmo sem chuvas que em Pernambuco o alimentam.
No Segundo Reinado, correu o dedo na leitura, os grupos de cangaceiros pipocaram, ele disse, feito pipoca caramelizada na rapadura. Os jornais aos pés do Cel. Bé do Algodão chegavam carregados de cruezas do cangaço.
Nesta época, o Cel. Bé do Algodão, além do jornal, criou a primeira fábrica de sabonete em Santana. Este topônimo Solossagrado foi escolhido pela loja, com exposição permanente dos produtos da fábrica de sabonete. Com essa fábrica, a cidade, visível de Manaus a São Paulo, era conhecida por Capital Brasileira da Perfumaria.
Lítotes e Polissíndeto visitaram a memória do coronel. Vieram, lentos feito grama, na alameda de ouricuri, que levava à casa-grande. O Cel. Bé do Algodão viu dois vultos que se aproximavam; os vultos lembravam os pais mortos na casa queimada; a imagem que se formava nos contornos mostrava os pais que foram assassinados enquanto dormiam.
O direito do defunto era o descanso, ele disse.
Viu o coronel que cada coisa viva tinha medo da morte; desde o minúsculo inseto que rastejava, ou aquele que voava, ou outro que vivia imóvel, ou ainda o que parecia sem vida. Fosse a folha na árvore, o galho, ou graveto verde, o pé de capim, a rosa, o espinho no caule, a árvore, a água que alimentava o gado.
Quero vê-lo na festa da padroeira! disse o padre Velho ao coronel, durante a inauguração da livraria.
Pessoas passavam na calçada da livraria e olhavam, lá de fora. Livros nas estantes, nos balaios, nas mesas.
Na língua, o doce de rapadura que se misturava ao café amargo, que acabou de sair da torra e foi batido e na água quente. Não era a luz da ciência que iluminava o coronel na varanda defronte ao gado que buscava no cocho sal, não, viu o seu filho de longe.
O vento mexeu no cabelo branco do pai.
Era a falta que fazia ao coronel a presença da mãe, D. Xântipe, e do pai, o marceneiro de muletas. Da varanda do engenho via-se a cidade vestida de branco com chapéu de couro que era a impressão que davam as telhas; as ruas estreitas ladeiras; a torre imponente do tempo de Santana marcava a hora na sombra do sol.
O filho do Cel. Bé do Algodão saiu cedo com o seu pai. Caminharam pela fazenda. Subiram a trilha que levava às piscinas naturais.
Estreito era o caminho tortuoso no qual não cabiam dois homens, ombro a ombro, entre a vegetação fechada, ocupada por pedras soltas. Morro acima.
Por horas nesta caminhada. Pai e filho, que se seguravam onde possível senão caía, machucava-se, quebrava osso, rasgava pele, lesionava um tendão, tropeçava, trilhava o pé.
No topo estava o melhor mirante do município. Era uma testa de pedra que se lançava ao abismo, à morte. O lajedo tomava toda a extensão circunscrita pela caatinga inexplorada.
O Cel. Bé do Algodão viu na plantação a árvore de Santana. Foi assim que Santana nasceu, disse. Era uma vez uma sesmaria, filha da capitania hereditária de Pernambuco. Alagoas não existia. Março de 1771. E Martinho Vieira comprou uma fazenda com um irmão e nela foi construída, 16 anos depois, a capela de taipa à Santana. Em torno do arraial passaram as semanas. No patriarcado de Martinho, sete filhos. O patriarca gerou Joaquim, que gerou Camilo, e dele veio Virgínio, e de Virgínio, José, pai de Maria, mãe do músico José, pai da escritora Maria.
Neste lugar, pai e filho viram, planejaram o pioneiro jornal diário na cidade. O Diário de Santana, com o prédio próprio, criado na fotografia daquele instante. O seu nome ocupava a parede direita
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mandou o Cel. Bé do Algodão escrever em caligrafia irretocável. O nome do jornal era visto em toda a cidade. A sede do Diário de Santana era um prédio com três andares, e o nome do periódico se iniciava no telhado e chegava ao piso.
Em cada andar, uma equipe trabalhava. No térreo, a secretária recebia os visitantes e clientes do jornal; no segundo andar, ao qual se tinha acesso por escada de madeira, era a redação; no último, após outro lance de escada, estava a administração.
Os jornaleiros, que eram muitos, cedo apregoavam pelas ruas as matérias do Diário de Santana. As notícias eram embaladas na voz dos vendedores de tragédias.
As primeiras reportagens, no Diário de Santana, davam conta do Cangaceiro do Rei. A lua tão pálida se foi da Terra, desgarrou-se. Levou com ela Maria, no cavalo branco de São Jorge. A Lua foi atingida, balançou. Ouviu o estrondo?
Apologia do Cangaceiro do Rei, disse o coronel, escreva e publique-a.
O editor Lítotes, que era apaixonado pelo cangaço, justificou o Cangaceiro do Rei. O jornalista prometeu ao dono do Diário de Santana escrever a sua obra-prima.
Lítotes havia convivido, no Recife, com um colega de profissão que falava, em lugar da língua materna, alemão e francês. Nas redações, ele era chamado de Francesalemão. Consciente da própria vaidade, o Francesalemão regozijava-se por ser assim reconhecido. Até o dia em que recebeu severa sumanta de dois marinheiros dos países das línguas que falava, e emudeceu.
Conveniência, na pena de Lítotes, foi artesão de couro em Penedo. Lá, o menino foi criado pelos parentes de sangue batavo. Cresceu Conveniência com o sangue dos guerreiros de Nassau. Vivia de seu trabalho honrado.
Isso não era verdade! protestou Polissíndeto.
E quem estava interessado na verdade! provocou Lítotes. Polissíndeto se mostrou ofendido com a réplica do jornalista pernambucano.
A redação parou em torno do ringue. Iniciaram-se pequenas apostas nos galos de briga. A classe gramatical de galo, disse a professora Hipérbole, nome masculino... etc... etc... As asas curtas ergueram-se. Caudas com penas longas. Polissíndeto e Lítotes de cristas carnudas.
O compromisso com a verdade ficou no pó da História! disse Lítotes, e a redação o aplaudiu.
Escreva a sua obra-prima, homem de Deus! disse o marido da professora Hipérbole, o professor de matemática Pleonasmo. Minta, minta o quanto puder.
É o que diverte o circo no dia a dia! enfatizou o jornalista Lítotes.
Qual seria a vantagem do poder da leitura se não fosse divertir-se! gritou o professor Pleonasmo, que tinha apostado umas boas pratas na força da pena do jornalista Lítotes.
Chegamos a um acordo, meu caro periodista! disse o coronel. Pôs a mão no ombro de Lítotes; e a mão pesada fez um afago ao ombro do jornalista. Então, homem!
O senhor aprovou o meu texto sobre o Cangaceiro do Rei?
Apenas, seguiu o coronel, ignorantes crentes de que eram sábios.
Não foi à toa, coronel, que o grego disse saber que não sabia.
Então, homem!
Por isso, coronel, ele foi considerado o mais sábio, por dizer que não sabia nada; diferente de quem não sabia, que dizia saber.
Se eu fosse ver tudo, caro amigo periodista, acabaria cego; só não cegava porque me recusava a enxergar tudo o que via.
Sob a supervisão de Lítotes, o Diário de Santana ousava na diagramação, nunca economizou nas imagens, títulos bizarros. Os pensamentos negativos se associavam ao medo. Os animais eram os inimigos imaginários do Cangaceiro do Rei, escreveu uma leitora ao Diário de Santana.
As oportunidades atraíam as pessoas. O comércio fazia a riqueza circular. Santana era uma cidade em construção sob o voo do carcará.
A prostituição surgiu de uma dívida primária, e se estabeleceu na periferia de Santana. E a violência da insônia transformou a cabeça na oficina do nada. Cláudia, tu és carne, e nela fui uma vez, no açude, disse o filho de um cangaceiro criado na casa do dono de farmácia Polissíndeto.
Esse rapaz passava as noites nas ruas da cidade a estalar o chicote nas pedras, na poeira do chão nu. Gritava versos. Narrava dantescos sonhos. Noites, noites, ele dizia, dançassem, noites, dançassem!
Por que isso, filho? perguntava Polissíndeto de gorro, chinelo e pijama.
Veja, papai, tanto horror perante os prédios!
O sertão abençoado pelo Sol. Antiga estrela reverenciada como divindade celebrada por milênios, restava-lhe pouco mais de cinco bilhões de anos a ser poeira estelar cósmica.
O Cangaceiro do Rei foi a figura crepuscular do cangaceirismo desde as caravelas. E assim foi. Era o crepúsculo do fenômeno sociológico do cangaço.
Harmonias foi a primeira capa do Diário de Santana.
O Cel. Bé do Algodão ficou horas sobre as letras, as linhas sobre as imagens, os textos que narram a criação de Harmonias. A região que seria um novo Estado, sob o domínio dos cangaceiros, estava geograficamente localizada no extremo oeste de Sergipe e Alagoas que avançavam sobre a Bahia, longe da pancada do oceano.
Nas terras baianas, o naco maior porque compensa a lasquinha tirada de Sergipe e a fatia de Alagoas. O pirão permanecia na boca de quem ganhava com o banditismo.
Isso antes da Grota do Angico. Os cangaceiros com o seu próprio território ocupado por famílias. Nenhum casal de cangaceiro entregava mais filhas e filhos à doação compulsória.
Por não se adaptar à vida costeira, o povo denominou o inadaptado com o substantivo cangaceiro. Caracterizava de maneira ofensiva, qualificação assim a quem vivia sob o escudo da pele de cabra à deriva de crimes violentos.
Molhava o Cel. Bé do Algodão as pontas dos dedos na língua e passava a folha do Diário de Santana. Na Engenho de Rapadura, todas às meias-noites ele ouvia o mesmo choramingar na camarinha escura.
As cabeças foram trazidas, há quanto tempo, e expostas nos degraus da igrejinha defronte ao quartel; mais tarde, a macabra exposição viajou a Maceió. Ficou do lado de fora da capelinha a alma dos cangaceiros eternamente presa à cidade.
O que existia depois disso era o além, disse a si mesmo como se quisesse se convencer do que disse. Lá, depois daqui, bem acolá, diferente de cá. És uma mentira, Cel. Bé do Algodão! disse, e bateu com o relho na bota. És uma mentira, uma mentira igual a todas as outras.
Uma mula atravessou o cercado. Narinas alertas à procura de espiga de milho, um resto de palha. Resfolegou a velha mula.
O vaqueiro Quimerismo surgiu por trás da cancela. Parecia um espécime criado no mínimo por três espécies, na Engenho de Rapadura.
Morro entre morros, no mato; juro que mato. Era mentira, só mentira. Nada mais na face da História se escondia, cantava o vaqueiro Quimerismo. Assobiava o refrão. Uma mentira descoberta, outras mentiras se descobriram. E se alastrava a mentira com áurea de verdade. Que era áurea, era uma aura, irmão, era outra mentira, áurea, aura, aura, áurea, e o refrão era mentira.
Na camarinha, Algodão ouvia a cada noite o choramingar de uma velha. A rede do coronel o Cel. Bé do balançava, gemia sem a intervenção humana. Ele ouvia que homens e mulheres eram seres antagônicos a se igualarem no final das paralelas.
A princípio, o coronel julgou que estivesse entre o sono e a vigília, onde coisas assim surgiam e perturbavam a alma. Nas noites seguintes, logo após a meia-noite, voltava o choro baixinho da velha.
A cavalhada. O tropel dos cavalos do Cangaceiro do Rei. E atravessavam os riachos secos, os terrenos pedregosos, as escarpas, pulavam os buracos. Ele ouvia, baixinho, o choro da velha.
Os bandos de cangaceiros seguiram à extinção. O cangaço entregou os pontos; o encanto se desencantou com as mortes e as prisões. Os pistoleiros vieram substituí-los.
A arenga de cangaceiros ficou no passado, ele disse. O mundo caminhava outra vez e outra vez e outra vez à outra guerra, como se não se livrasse nunca das brigas. Um vizinho, logo se desentendia com o outro por causa da estrema, por causa do muro, uma gaiola, um latido, um miado impaciente, sem propósito, repetido. Outra vez, desabava o mundo na enxurrada em época de chuva parca.
A rede ia, voltava a rede. Ele ouvia, baixinho, o choro da velha.
Como foi fácil a vida aos que a conheciam, macia e iluminada, amarga aos que a ignoraram. Todos dependiam de favores. Não era difícil encontrá-los de mãos estendidas à espera de esmolas, ele disse. Virei o mundo às avessas, trouxe os maiores, os melhores e os entreguei aos miúdos, caso quisessem sair da mediocridade.
A rede ia, a rede voltava. Ele ouvia, baixinho, o choro da velha.
Esperei uma semana, um mês, dois, seis meses, um ano, dois, e o tempo se derreteu feito areia na ampulheta; não vi resultado, só admiração e surpresa. Mereço o reconhecimento de quem conquista. Modorra, sempre a modorra, em toda a parte sempre se encontrava a modorra, a velha modorra em cada lugar na cidade, em cada casa o desejo irresistível de evitar a vigília.
Ouvia, baixinho, o choro da velha. A rede ia, a rede voltava.
No genuflexório, cabisbaixo, mãos postas grudadas ao terço, o Cel. Bé do balançava pedia perdão dos pecados, buscava formas de remissão. Degreda... degreda... Ouvia no sonho recorrente. Enforca. Decapita. Degreda. Dormia mais um pouco. No genuflexório, cabisbaixo, mãos postas grudadas ao terço. A mão direita batia no peito. Culpa, minha máxima culpa. No genuflexório, cabisbaixo.
O que havia adiante, na encruzilhada? Vivia a velhice que mamãe e papai não viveram. Via aproximar-se o dia. Qual? Os filhos crescidos, sumiram; ficou Bezinho, na Engenho de Rapadura. O que lhe fazia ver que a velhice o alcançou era quando tudo o que via, sabia que tinha visto. Levantou-se, limpou os joelhos, dirigiu-se ao altar.
O Cel. Bé do Algodão era popular, abraçava as pessoas nas ruas, ninguém se afastava, gostava de ouvi-lo falar. Era um adjetivo de dois gêneros, populista, prometia o que nunca teve a intenção de cumprir.
Correram os meses do novo ano. Chegou o dia de Santana.
A multidão caminhava e cantava nas ruas da cidade. Os hinos de louvores entoados por mulheres e homens. As ruas cheias. As crianças acompanharam os pais na procissão.
De longe, destacava-se a imagem de Santana na estrutura de madeira. E braços e mãos e rostos disputavam levar o andor ornamentado por flores, tecidos coloridos, fitas douradas.
Aproximava-se o cortejo festivo carregado pelos ombros da cidade.
Na procissão de Santana, o Cel. Bé do Algodão era um dos que levavam o andor. Os coronéis não viam o Cel. Bé do Algodão com bons olhos.
Ali vai, disse Teratológico ao colega Hermenêutico, o primeiro dos nossos plutocratas.
Um brinde ao futuro!
A conta no bar foi paga. Na mesa, ficaram as garrafas e os copos vazios. As cadeiras solitárias, na calçada, eram arrastadas pelos retardatários atrás dos fiéis de Santana.
Nesse dia, o Bar da Sogra abriu falência. Restou-lhe a tabuleta no alto da porta de madeira cujas cores de tinta sobre tinta foram descoloridas pelo sol.
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