O que se seguiu aconteceu em Alagoas; testemunhado por alagoanautas que viveram no Sítio Entorno. Assim versava o poeta Ómiros – era véspera de Ano-Novo – num caixote de madeira:
LXX – Cangaceiro no cangaço passava fome, passava sede. Eram homens cheios de dinheiros. O cangaceiro comentava entre outros cangaceiros. Nas quebradas, os cangaceiros procuravam as fazendas afastadas, nos sovacos das serras, nos descampados das pedras, roçados de mandacaru e no plantio de palma forrageira, nos xiquexiques, nas pedras soltas do tamanho de uma casa, do tamanho de um cágado, na terra seca e nos espinhos-de-roseta talvez encontrasse um filho de Deus que fosse à rua comprar secos e molhados ao bando. O coiteiro ia um tempo, outro tempo outro coiteiro ia; trazia o coiteiro da rua jumentos carregados, pensos caçuás com secos e molhados das bodegas, na rua; sacos de farinha, cachaça, rapadura, fumo de rolo, fósforo, jornais. Um dia, a polícia, na rua, desconfiava das compras, e, ouvia de donos das vendas: Matuto encheu caçuás, levou daqui burros pesados de compras; a polícia pastoreava, a polícia queria saber, a polícia fazia perguntas, a polícia descobria cabra que fazia compras e levava aos bandidos; a conversa corria na rua, o povo comentava e as crianças e as mulheres de tocaias, quando burros da rua saíam carregados de secos e molhados; as forças volantes queria o dinheiro, a polícia convidava o fazendeiro a visitar a delegacia; temendo surra, uma pisa que lhe moesse ossos, abandonava a fazenda, deixava as criações, largava filhos e mulher, fugia de casa e nunca mais queria voltar; o coiteiro que comprava secos e molhados aos cangaceiros, não era mais, não era fazendeiro, tornava-se cangaceiro caçado, cantava o nômade poeta Ómiros, que habitava o imaginário popular. Por tanto rogar o Cangaceiro do Rei aos santos e aos mundanos em lunáticos momentos da tarde, da noite, da madrugada, da manhã, do meio-dia... Rogava que a Lua descesse e viesse a ele; trouxesse-lhe melodiosa Maria única, ó minha unicamente minha Maria. Viesse ao encontro dos braços do cangaceiro armados de facão, punhal, clavinote, parabélum, água de cheiro, arroz-doce... Sobre o caixote, entre as barracas na feira de sábado, batia frenética a mão do poeta no pandeiro. De seus beijos... De seus verbos... Voluptuosa Maria, minha unicamente, minha ó Maria. O cangaceiro cobria Maria com forte correnteza de carícias. Minha unicamente minha Maria. Engravidava Maria. Dava-lhe filhos a serem criados por padres de Santana-Sem-Lua; e Maria ria-se, chorava Maria... Ó unicamente minha Maria; gargalhava Maria; o Cangaceiro do Rei e o bando. Em prantos, o Cangaceiro do Rei galopava Afã. Ó minha unicamente minha Maria, xumbregava o cangaceiro, aos moldes dos sapateiros, ele umedecia a sola com a língua, ele pregava o prego ligeiro em Maria. Maria gemia, chorava Maria como nunca. Ó unicamente minha Maria.
LXXI – Maria, Maria, Maria, Mariá – mulher de dois mundos – Maria presa à Lua, a sua nova morada, planetinha de fases. Maria na Terra. Maria na Serra Desvanecer. Maria do santo São Jorge, Maria no cavalo branco, Maria foge do dragão, Maria do Cangaceiro do Rei... Depois das chuvas, naquele ano, cantava o poeta, um louva-a-deus brincava de pulo de poça em poça d’água. Um fogoso bem-te-vi. Outro pio; era um joão-de-barro, que trabalhava na construção civil. Uma rã cantava o desprezo de seu amor. Balançava a cana-de-açúcar. A boca de Maria tinha gosto de pimenta-do-reino. Maria era um copo-de-leite. Era Maria castanha-do-pará. Maria couve-flor. Outro bem-te-vi rápido deixou o galho e se foi, talvez nunca mais voltasse ao sertão. Nem o escravizado José, disse o Cangaceiro do Rei ao bem-te-vi que se foi, após ter dito à rã que cantava o desespero do amor sem obter o cangaceiro resposta. Vendo o cangaceiro à breve vida na vida do louva-a-deus. Nem José sentiu tal prazer ao tornar-se Rei do Egito. O cangaceiro amplexava Maria imaginária, que também era Maria de São Jorge, Maria do cavalo, Maria do dragão... Nem Alexandre, aluno de Aristóteles, viu-se em tamanho eito; nem Bonaparte em batalhas... Maria imaginária riu-se do Cangaceiro do Rei. Arrochada Maria ao peito do Cangaceiro do Rei. Liberte-se, Maria, liberte-se! Maria sonhava, ó Maria, Mariá, ó Maria, Maria. Maria escutava minha unicamente minha Maria... Queria o feroz cangaceiro, reiteradamente dizia ao bando, apenas Maria na Serra Desvanecer; queria o cangaceiro vingar-se da Lua, queria lutar com São Jorge, brigar contra o dragão.
LXXII – Cantava na feira de sábado o poeta entre as bancas de mangas, mamões, laranjas, bananas, melancias, pitangas, seriguelas, pinhas, pitombas. Marat, ao ser traído por Charlote, decerto em seu peito arfante, jamais sentira a pancada da morte nunca, jamais, disse o cangaceiro ao bando. Cavalgava no tropel o cangaceiro sobre Afã. Esquipava. Sentira o Cangaceiro do Rei o que sentia Maria, o que nenhuma Maria sentiu. Ambos imaginariamente como platonicamente se entregaram ao forno, a uma fornicação descomunal que lembrava sans-culottes. Maria, ó Maria. Très petit, Maria, très petit. Não foram nada se comparados a essa fornalha desenfreada de Maria e o Cangaceiro do Rei. Sehr winzig, Maria, sehr winzig! Preenchia Maria onde mais o cangaceiro chorava, sehr winzig onde mais o cangaceiro sorria, onde mais o cangaceiro sofria, très petit, onde mais o cangaceiro queria, très petit, onde mais gargalhava e ria Maria nos braços do santo guerreiro, na garupa do cavalo de São Jorge, guardada pelo dragão. Ó minha unicamente minha Maria... O Cangaceiro do Rei recebia o que lhe dava Maria. Qual cheia estivesse a Bastilha, ainda assim não findou o tenebroso Período do Terror. A natureza conferira a cada qual o direito em desfrutar de tudo; tudo igual, tudo era próprio e tudo era natural no tal direito.
LXXIII – Cantava o poeta, na feira. Em átimo instante, o fogo do Cangaceiro do Rei. O fogaréu. Maria quis morrer em pleno gozo. Inobstante. Frequente. Qual louva-a-deus que devorava o parceiro pela cabeça durante o ato. O cangaceiro dizia os seus ditos benditos, malditos, infinitos desejos aos ouvidos de Maria e morria a lhe forrar o seu pescoço de beijos; queria morder a veia que lhe conduzia sangue ao coração. Corpos entregues às chamas descobriram flâmulas de São João; corpo quente de Maria matava a fome de mais de um século de fome quão Paulo escreveu sobre a paciência do amor. O Cangaceiro do Rei saciava-se em Maria, ó Maria, e Maria no Cangaceiro do Rei na garupa de Afã. Devorava-lhe primeiro as estrelas, no chapéu, Maria comiam-lhe estrela por estrela, símbolo por símbolo, patuá por patuá, depois o chapéu de couro e seguia comendo cabelo, testa, sobrancelhas, olhos, nariz, boca, queixo.
LXXIV – Os sentimentos do cangaceiro em relação à Maria borbulhavam em erupção. O Cangaceiro do Rei foi cliente e foi escravo, e foi patrício e foi plebeu. Em Maria, o cangaceiro foi cônsul, pretor, censor, edil e gestor; firmou nela o comitatus. O cangaceiro não praticava heresias por Maria. O cangaceiro ajudava na construção da igreja Santa Sofia, mesmo bizantina, o cangaceiro reclamava ao padre coiteiro do cangaço. Cantava o poeta em dia repleto de feira, toldas que coloriam a cidade.
LXXV – Os versos épicos, cantava o poeta, eram cantados pelo Cangaceiro do Rei, cujo coro cabia ao bando. Maria, ó Maria, Mariá imaginária, na Serra Desvanecer. Cangaceiro era lobisomem que rolava com Maria aos uivos, repetidos uivos; ambos desnudos, na Serra Desvanecer. Onças. Maria e o Cangaceiro do Rei, ambos eram fogos-corredores que lambiam comitatus. As suas labaredas incontroláveis lambiam o mato seco, as coivaras... Se acaso Shakespeare de fato existiu, feito Machado que resistira às agruras da escravidão, o seu teatro algo mais não faria senão reinvenção das invenções. Faltaram ao teatro elisabetano Maria e o Cangaceiro do Rei numa “Tempestade” em “Sonhos de uma noite de verão”, e na “Medida por medida” ou em “Como gostais”... Sussurrava Maria ao Cangaceiro do Rei o seu quero mais, quero mais, queromais... Batia frenético o poeta no pandeiro e cantava os seus versos no dia de feira.
LXXVI – O povo em torno do poeta Ómiros. O mundo esqueceu a vida, perdeu-se na poesia da caatinga. No som do pandeiro. No galope de Afã se aproximava da Lua o Cangaceiro do Rei, na Serra Desvanecer. Ave gigante abanou asas violentamente sobre os amantes com a velocidade do vento no azo de Calipso linda ninfa; antes, a imagem de uma mulher feiticeira reapareceu súbita ali naquele ermo Desvanecer; parecia ser Circe que tudo podia em feitiçaria: transformava homens em porcos, onde a corja do Cangaceiro do Rei, em sua odisseia desvairada, estava naquela hora Maria e o Cangaceiro do Rei; eles pareciam encantados; estirados na poeira; a mortalha da ave tateava com as suas penas um destino duvidoso sobre a Serra Desvanecer.
LXXVII – Numa fonte fria repousava o calor de Maria afogada. A sede lavava o pejo distante da Lua. Deitada e desnuda, longe da casa de São Jorge, do cavalo, do dragão, Maria repousava da guerra amorosa, na guerra de beijos. Os lábios quentes de Maria na fonte fria do Cangaceiro do Rei. Na Lua, luziam os sonhos do cangaceiro, os sonhos de Maria.
LXXVIII – Exaustos. Descabelados. Maria e o cangaceiro. Ofegantes... Sob um dos inúmeros umbuzeiros – Serra Desvanecer – ave gigante abanou outra vez as suas asas navegantes violentamente sobre os amantes; e tiveram o Cangaceiro do Rei e Maria guerra dos abraços e dos beijos por quantos dias nos braços loucos, gemidos qual o cio de tantos gatos.
LXXIX – Uma pantomima, cantava o poeta, na ágora de volúpias, o comitatus... As luxúrias novamente, mais, mais comitatus... Irrompera-se noutra tromba d’água na Serra Desvanecer. E naquele dia o Cangaceiro do Rei e Maria foram rhamapithecus e foram australopithecus... Ele foi homo erectus, no frescor de Maria; ela lhe escorria o negro cabelo, dir-lhe-ia ele todos os segredos do universo, e os segredos da vida, e o sentido de estar aqui nesta viagem cósmica na esfera Terra. O Cangaceiro do Rei lambia, cheirava a pele morena de Maria, todos os feromônios sentia – cantava o poeta Ómiros, e repetia o refrão na música criada no espanto do olhar esverdeado de Maria. Vivia o Cangaceiro do Rei na boca de Maria desenhada pelas pontas dos dedos, e revivida no galope de Afã, o Cangaceiro do Rei, olhos cerrados, com o rosto de Maria emoldurado na concha da mão. Em montes e morros, o cangaceiro subia e lentamente descia. Batia alucinado o poeta no pandeiro, cercado pelo povo na feira.
LXXX – Doce cheiro de laranjeira perfumou o ar na caatinga. Serena, tranquila, ligeira paisagem de uma visão antiga dos dois amantes a rolarem naquele chão de pedras, terra seca e espinhos-de-roseta. Cavalgava o Cangaceiro do Rei o cavalo Afã. No chão semiárido o perfume de Maria. Na caatinga onde o perfume do limoeiro espraia-se, ia a todos os continentes. O mundo era uma fila na calçada do cinema porque queria ver a fita de Maria e o Cangaceiro do Rei. Conhecia Maria e o Cangaceiro do Rei todas as línguas, os porquês e as conjunções adversativas, não obstante. De soslaio, se foi misturar por entre amantes, na sala de cinema, no som da fita, nas páginas lidas em linhas magnéticas, em linhas escritas. Perfumaram limoeiro e laranjeira. De longe aproximavam-se em Afã os amantes e, por instante, a imensidão do universo absolvia a pena cujo bico era molhado no tinteiro. Rápido, veloz corria a montaria Afã sobre a qual cavalgava o Cangaceiro do Rei, abraçado imaginativamente à Maria. Dizia ao bando de cangaceiros ser ela e ele nas folhas, nos frutos do limoeiro, da laranjeira – e ambos, por um quase, não viravam folhas e se tornaram galhos e se fizeram sementes.
LXXXI – São Jorge, na Lua, voltava de suas batalhas por Maria. Deu por falta de São Jorge. Por dentro remoía-se o santo guerreiro, e disse ao dragão e ao cavalo, vê-los era inaceitável; São Jorge não permitia a imaginação do amante cangaceiro. Não sabia São Jorge que o dragão sabia do sumiço de Maria. A ave gigante sobre os amantes era o dragão. Quem abanava as asas imensas violentamente sobre os amantes? O dragão. O fogaréu do dragão lunar ia descer e destruir o cangaço? Não. São Jorge preparou as armas na Lua; viu o dragão à caça dos cangaceiros do Rei. Infâmia! Não amaria outra vez. Calúnia! Maria, o santo guerreiro repete. Injúria! Não desceu São Jorge da Lua. E cantava, na feira de sábado, o poeta cego, velho e cansado de viver preso ao imaginário.
LXXXII – Morena Maria deitada sobre as folhas secas do umbuzeiro... os montes, os seus morros, os seus vales úmidos, as coxas, os túmidos seios... saracoteia Maria o corpo de Maria era a letra S num ziguezague do maranhão de emaranhados. Os braços, as pernas de Maria. Pernas, boca do Cangaceiro do Rei fez S no candeeiro; choveram os tiros do cangaceiro; não demoraram a chegar os tiros e o zás acertou à lamparina e alumiou balas do pau-ferro à baraúna. Maria, em momento assim, viu anchos pássaros voarem e viu rolas; revoada de sanhaços sobre a sua cabeça oca. Batia frenético o cego poeta no pandeiro, ria-se, suado, era como se chorasse, sob os aplausos do povo próximos ao templo de Santana.
LXXXIII – Ninguém nunca imaginou de repente cair da Lua um monstro colossal: boitatá das alturas, uma serpente do mal lá de cima, da Lua de São Jorge. Armas de guerra. O dragão e o cavalo olhavam a Terra, olhavam eles a Serra Desvanecer, eles olhavam Maria e o Cangaceiro do Rei sob a copa do umbuzeiro. São Jorge viu a Serra Desvanecer. Ouvia o Cangaceiro do Rei que cantava loas à Maria. Odiou Maria desnua, deitada, pedia bis, Maria em forma de X; o cangaceiro era um T, e era um touro em valei Maria. A serpente de São Jorge, a ave gigante, abanava as asas com violência, como única ciência no sertão, e abanava as asas sobre os amantes com a velocidade do vento! gritou o cangaceiro Éolo. Não esperou receber ordem de São Jorge a ave monstruosa que buscava em voos rasantes devorar nacos na carne dos cangaceiros. O dragão descia com asas imensas, o dragão sobrevoava a terra, sobrevoava a Serra Desvanecer direto em cima de Maria.
LXXXIV – Urrava o bando de afoitos sob a liderança do Cangaceiro do Rei. Pulou a cabroeira do mato. Os cangaceiros aos urros: Às armas, às armas! À matança, companheiros, à matança! Homens cruéis, mulheres à luta. Travou-se a ferocidade da guerra. Braços, pernas a granel; talhos, furos profundos. Fogo; armas de ponta, palavras, gritos, cegos, corpos chacinados na enorme poeira do albatroz lunar. Os cangaceiros enfrentavam a fúria do dragão lunar que voava sobre a terra. Indomável Cangaceiro do Rei era um bonsai que enfrentava um baobá. A querela foi deveras inflamável na Serra Desvanecer entre os cangaceiros e o dragão da Lua. São Jorge ria, ouvia os gritos de socorro de Maria. E as forças volantes, no sopé, sem saberem o que acontecia no chapéu da serra. Embaixo, entre pedras, terra seca e espinhos-de-roseta, as forças multiplicavam-se, volantes que se dividiam, impossibilitadas em enxergar a nuvem de pólvora no chapéu da Serra Desvanecer. Havia no chapéu da serra a nuvem cinza; raios, raios e trovões que acendiam relâmpagos, no chapéu da Serra Desvanecer.
LXXXV – Nenhum magistrado ouviu as querelas, as questiúnculas, tampouco viu as filigranas. O fogo comia na Serra Desvanecer de estrago nas caatingas em brancas nuvens. Foi quando ecoou um terrível brado. Miligramas! pediu socorro um cangaceiro a outro. Sai daí, desgraçado, o monstro da Lua vai te pegar! alertou de berro em berro e de berro na mão o cangaceiro Quimerismo, que devorou o próprio irmão no útero materno no qual foi gerado em prolongados meses de estio. Maria fora levada de volta à Lua no cavalo rápido de São Jorge. O sol nascia atrás de uma carrapateira. O Cangaceiro do Rei gritava em vão: Devolva Maria! Devolva Maria! Devolva Maria ao Cangaceiro do Rei. Maria não era da Lua! gritava Conveniência, o Cangaceiro do Rei. Maria minha unicamente minha Maria. Ó Maria! Devolva Maria! Não era mulher da Lua. Devolva Maria! Água da manhã na boca do cangaceiro secava o momento arrebatador. Maria voltava a morar na Lua, onde entediada vivia. Não saía do quarto Maria. Não tirava os olhos da janela Maria. Esfregava paredes Maria. Eternamente na janela. Devolva Maria! Maria na Lua à espera de um gênio que se desprendesse das paredes e realizasse todas as utopias de Maria.
LXXXVI – Com um tiro no paiol ficou tudo breu. Caíra repentino raio. A luz do dia súbito morreu, e o Cangaceiro do Rei quedou-se em bi bemol – como se dizia no dia a dia, no Sítio Barroco – e, em derredor ao Rei e aos comandados, braças e léguas de gente morta. Dona Morte nas roças juntava de carroças as carcaças de homens, mulheres, crianças, bichos, formigas, aranhas, mosquitos, cavalos, peixes, aves velhas, avós, avôs, mães, pais, irmãos, cunhados, noras, sogras, rãs, sapos, jias, galinhas, galos, gritos, choros... O Cangaceiro do Rei e o bando riram ao verem fugir do fogo a raposa do século.
LXXXVII – O cangaço alquebrado. Naquele triz, o solstício. No reino de mais de 500 soldados em grito único, no sopé da Serra Desvanecer, uníssona revolta, contra 800 cangaceiros sob o comando do Cangaceiro do Rei, em uníssono ataque. Os pés velozes sobre a terra seca, pedras, espinhos-de-roseta. E tudo era cinza, e tudo era corte, e tudo era vísceras, e tudo dores em Dolores, e tudo reações aos gritos de novos ataques, de novas quedas, novas derrotas. Sucederam em torrente as balas dos cangaceiros do Rei no couro do dragão lunar. Ressurgiu natalício aos afogados em aguardentes de sangue nos sítios das redondezas, desde o princípio, desde o velho Sítio Barroco cantado e decantado. Sem nuvens. Azul ardente. Saraivada de balas ao sopé da serra sobre as volantes e ao chapéu da serra no couro do dragão. Reagiu o dragão com fogo, mais fogo. Balas, mais balas no couro do dragão, por horas, por dias e dias, semanas e semanas, por meses, por anos intermináveis. O cangaceiro Bucho de Lama, que era chefe de subgrupo, foi o primeiro a ser levado à unha pelo dragão; ele e o seu subgrupo subiram à Lua. Restaram aos cangaceiros na terra mortes na caatinga morta, feridos lutos de cangaceiros imóveis e mudos. O dragão lunar voltou à serra e girou em luta desigual; monstro colossal contra simples matutos armados na luta sem saber por quê. Choveram balas, rajadas; nenhum tiro perdido.
LXXXVIII – Mais tarde, o dragão retornou à Lua semimorto ao guerrear. O dragão fitou o desconforto e despencou-se em chagas, o estorvo. O azul piscina oceânico ei-lo turvo. Sangue. O estrondo ouviu-se. Abalou em breve abalo e outra vez e outra vez a Serra Desvanecer onde se escondia o Cangaceiro do Rei. Era a sua cabroeira morta? Morreu o Cangaceiro do Rei? Fugiu o cangaceiro que liderava os bandidos? Aonde foi o cangaceiro? Onde morava? O Cangaceiro do Rei estava vivo; eram as cartas que chegavam à redação dos jornais. Trilhões de entes marinhos rolavam na areia das praias forradas de verde, pintadas de palhas dos coqueiros. Outros trilhões nas ribanceiras do rio São Francisco à cidade de Maceió. Todos se banqueteiam do monstro lunar. Clemência! relutou a demência do gigante e ficou pequeninho, o lupanar, com o estrondo nas águas. Nem a procela aguentou Caribde; logo acordou o estrondo; o livro antigo aberto onde dormiam as palavras e, com redemoinho, vergaram-se ar e terra dando passagem com o peso do dragão ao mar. O monstro agoniado caiu da Lua e provocou nas águas de sal tsunamis.
LXXXIX – Por diferentes motivações – Cangaceiro do Rei, na vegetação esturricada, por causa da lânguida Maria gritava: Devolva Maria! Devolva Maria! Atrás do dragão e de São Jorge no cavalo branco com uma lança à mão – reconheceu ser vã a luta? Não. Toda a dor alheia parecia, o Cangaceiro do Rei disse aos cangaceiros, e a dor do fim era a mesma do começo. Devolva Maria! Devolva Maria! Poseidon e Éolo, na Serra Desvanecer, fizeram os cangaceiros tremerem; e dos 800, sobraram 200, e destes ficaram apenas vinte. No sopé, as volantes sumiram na poeira do chapéu da serra que desceu e os devorou no sopro do dragão da maldade. Respondiam ao Cangaceiro do Rei as sombras antigas de Poseidon e Éolo: Desistisse da luta vã! e as palavras de Éolo e Poseidon se repetiam. O cangaceiro, sem compreender o gira mundo, girava o Cangaceiro do Rei e o bando de aloprados. Caía, vinha pesado, sem autorização dos deuses, nos mares de Maceió, dos ventos em Maceió, numa estrondosa queda. O dragão sangrava. A Lua órfã do dragão. Belo cagaço, sofreram deuses Éolo e Poseidon. A culpa era do Cangaceiro do Rei? Porque havia sempre culpado; devíamos sempre procurar a quem culpar, a culpa era sempre de alguém... Éolo e Poseidon dialogavam. Íamos falar hoje, disseram na Serra Desvanecer, com os cangaceiros e as volantes e pôr fim ao cangaço.
XC – O Cangaceiro do Rei, feliz pela derrota do dragão, ficou possesso com a vitória dos opositores seus ao saber que as volantes encantaram-se, receberam no peito medalhas, gozaram galardões, aumento de soldo, de sol e mudaram naquele dia as forças a vida insossa com sal. Naquele dia, jurou vingança o Cangaceiro do Rei com os seus vinte bandoleiros. Cresceu-lhe ódio a São Jorge. Tamanha a gana em matar lhe veio. Se finado guerreiro Alexandre, aluno aristotélico, professor na Macedônia, enfrentou e viveu a cordilheira Hindu Kush e pouco sacrificou os seus, por que ele, que era o Cangaceiro do Rei, mais malvado, não iria mais longe no Mar Salgado? E como está na História, nos livros da escola, o Cangaceiro do Rei vingou-se primeiro do dragão. Mesmo o intento indo a custo, o Cangaceiro do Rei amontoou cadáveres até a Lua de gente sua e das forças. Na crina da Serra Desvanecer, o Cangaceiro do Rei construiu a sua pirâmide de corpos, feito Leônidas e os 300 espartanos que desafiaram Xerxes. O Cangaceiro do Rei amontoou os corpos dos soldados que o combateram, os mesmos que brigam contra os cangaceiros na ilusão de acabar com o cangaço, como César combateu o mundo e Moreira tombou em Canudos. O Cangaceiro do Rei construiu uma muralha de mortos. O Cangaceiro do Rei mediu e não mediu esforços, feito um Hamlet, ele matou ricos, matou pobres, e amontoou os corpos; assim, o Cangaceiro do Rei teceu a sua escada de defuntos. Cantava na feira o cego poeta itinerante. E o povo aplaudia-o. A feira, de repente, parou. Viva o poeta cantor! gritavam, voltavam a gritar as crianças e aplaudiam o artista. Foi assim que o enredo do Cangaceiro do Rei fez chover fama e fortuna ao poeta.
XCI – Com as mortes se espalharam as notícias verdadeiras e as falsas notícias; e a preferência às notícias que vendessem jornais. Chegaram notícias em Triste, em Tu, em Vós, Quebrangulo, Rio de Janeiro, Recife, Santana do Ipanema. Na carreira, as notícias atravessaram as águas do São Francisco em Sergipe; na Bahia não se falava em mais nada. Nas feiras de rua, o Cangaceiro do Rei não obedecia mais ao comando do Rei. Os cangaceiros cortavam o sertão. Estes cangaceiros faziam qual arado à terra: amontoavam cadáveres por diversão, empilhavam os mortos sobre os quais riscavam os cascos dos animais, e, assim, os vinte cangaceiros subiam à Lua.
XCII – Não mais se sabia como os amores de Maria começaram, e perguntavam-se: Era-se o fim das eras? Julgava-se ser castigo. A Lua balançava, ameaçava fugir da visão da Terra. Na caatinga, o ranger das feras. O cangaceiro fazia o Brasil dançar o xenhenhém. Autoridades episcopais exigiam de governadores providências divinas a todos os pecadores na história do cangaço. Já não era estória, sequer História de um trancoso, era a palavra; e tudo o que se ouvia sobre o cangaço era que Ninguém era Nemo, que voltava vinte anos depois ao governo em sua ilha onde muitos ansiavam ser uma ilha.
XCIII – Formou-se, por fim, disse o cego cantor, grande cemitério gótico na Serra Desvanecer sob o governo do Cangaceiro do Rei. Esperança não trovejava; tão-só aguaceiro de desgraça, temor da morte, tremor de terra seca, pedras, espinhos-de-roseta. O povo fugia dos sítios. Vilas, povoados desertos. Nenhuma vida era vista no planalto. Todas as vilas abandonadas. E o agouro ao lado uh-uh; era a coruja quem prevenia os cangaceiros da breve morte. A Lua flutuou e quase caiu.
XCIV – Quem São Jorge era um guerreiro lunar? E Maria talvez outra Betsabá? E o Cangaceiro do Rei acaso outro Urias? Jorge matou o dragão, o dragão suicidou-se? Foram as balas dos cangaceiros no couro do dragão. Absalão acaso quem foi? São Jorge subjugou aquela quimera? Os moabitas, os filisteus, os amoritas, os arameus? Maria, mulher bonita, a concupiscência Maria foi somente outra vítima no sertão?
XCV – Surgiu das profundezas o Cel. Dr. Vil, o temível e o voraz, o inimigo mortal do Cangaceiro do Rei. Ignorantes beberam a cicuta das forças à força. E o povo apático e medroso temia o crepúsculo. Na lua cheia não se mexia um músculo. E no sertão jamais voltou a ver-se crime analógico entre as forças e o Cangaceiro do Rei, como noticiavam os jornais sobre a histórica Serra Desvanecer.
XCVI – Três mulheres de boa idade foram queimadas, como se fazia na Inquisição, que de santa recebeu apelido em Portugal, Itália, Espanha, Brasil e França. E o que faziam as três levadas à fogueira de São João? Faziam comida ao cangaço, varriam boatos, lavavam fuxicos. Faziam o que essas mulheres queimadas na fogueira de São Pedro? Elas plantavam milho e colhiam sopas de legumes, no mês de junho, no mês de julho. E agosto foi um prato sem gosto! declarou à reportagem o Cangaceiro do Rei. Publicou os jornais que, no calor de doido, o remédio era comer melancia. E, no sertão, os crimes famélicos denunciados foram arquivados.
XCVII – Dentro da insegurança que se estabeleceu, o povo praguejava amiúde e era aplacado por orações, jejuns. Surgiu o homem a quem o chamavam de Santo Beato da Lua Passo, que foi contra as maldades do Cel. Dr. Vil e contra o cangaço. O beato repetia os ões e os senões, o talvez e o quem sabe e o quando; isto se o mundo não se acabasse esse ano.
XCVIII – Após os fatos ao chão sobre os fatos ocorridos, caso em rua qualquer, ou feira, alguém identificado da cabroeira do Cangaceiro do Rei, logo levado, torturado; num já confessava ter Jesus crucificado, ter oferecido alguidar de barro com água a Pilatos, apedrejado Madalena e, pulava de história a História, na estória do tempo, e num já incitava o povo em Roma, instigou o povo na França, abusava da guilhotina, induzia o povo à violência em São Petersburgo, provocava distúrbios em São Paulo entre integralistas, responsável por rebeliões em presídios, excitava também Maria e o Cangaceiro do Rei. Na roça e na urbe, o povo cabisbaixo respeitava o cassaco baixo e temia a ratoeira do Cel. Dr. Vil. Foram tempos macambúzio e de maus-tratos e de abusos nos quais viveram o Cangaceiro do Rei e o seu bando.
XCIX – Declarou o Cel. Dr. Vil, em artigos publicados no semanário O Liberdade de Expressão, que a sua missão era descobrir a verdade e se São Jorge salvou Maria da astúcia do Cangaceiro do Rei. Queria o coronel saber se Daniel adentrou a cova de famintos leões. Cel. Dr. Vil, na batalha, levou certeiro balaço; caiu ferido e chorou. Os médicos, na tropa, deram o coronel como morto; os soldados abandonaram o coronel defunto, temeram a morte próxima. Ouvia-se tropel dos cascos dos animais; ouvia-se o tropel no sopro de Éolo. O Cangaceiro do Rei escalou muralhas de mortos, escalou pirâmide de corpos; subiu o Cangaceiro do Rei direto à Lua. E o Cel. Dr. Vil levantou-se da morte. Se foi o coronel semeando rosas; perdeu as pétalas de único estalo. O mundo escureceu. Travou-se guerra perpétua; sonetos absolutos e poesia pretérita cujas personagens epopeicas não sabiam nada sobre mérito.
C – Os trabalhadores da vinha, perguntou o poeta ao povo, conheceu-os? Além dos meninos na praça. Não sabia? cantava o poeta Ómiros. A ovelha perdida, quem não a salvou? O pai vigilante. E a pedra rejeitada? Era outra passagem: a pedra. O grão de mostarda. Os dois alicerces. Os dois devedores. Além dos dois filhos. Ainda a dracma perdida. Lembrou-se? O fariseu e o publicano passaram, eu os vi. Foi o fermento. E também a figueira. Estéril? O filho pródigo tinha um filho. E a grande ceia? Casamento e jejum; o joio e o trigo. Na Bíblia, o juiz iníquo, em Lucas, me lembro. Os lavradores maus. E a pérola de grande valor, era outra passagem. A rede. Os primeiros lugares. O rei que vai à guerra. Sim. O remendo com pano novo. O rico e Lázaro. O avarento rico. O tesouro escondido. O jovem rico. O semeador. O vigilante servo. Os talentos. A semente. O servo fiel. A semente de mostarda. Um administrador desonesto. Era um amigo importuno. Isto encontrava-se. Nunca leu? Conheci nas bodas. Ouvi dizer que a casa estava vazia. Coisas novas e velhas. Os vinhateiros maus. O pai era o construtor de uma torre. O credor era incompassivo. Havia o dever dos servos. As dez virgens? Ouvi falar. Me parecia que se encontrava também. O vinho e os odres. Vi o bom samaritano, conversei e lhe pedi conselhos. Bela Lua a casa de São Jorge. Ele vivia eternamente em galante moradia. Os jornais noticiavam com retratos, testemunharam a luta do Cangaceiro do Rei e o bando, o santo guerreiro, o dragão e Maria. No nicho de formoso harém, no vaivém, a lua foi uma dessas fáceis composições poéticas com desculpas de ser Maria refém do santo guerreiro que disputava com o Cangaceiro do Rei e o bando de fora-da-lei a serviço de alguéns que destronaram jagunços, suplantaram capangas e vaqueiros recontrataram; vaqueiros sangue de bronze e de ferro, na construção das Américas. O Cangaceiro do Rei escreveu as suas memórias nos tribunais lunares; os juízes em todas as cortes papéis acumulavam. Em uma das entrevistas do Cangaceiro do Rei foi escrito que um cangaceiro só não era cangaceiro, cantava o poeta. O cangaceiro carecia doutro se um dia quisesse cangaceirear. Cangaço, pois, nenhum havia sem adjunto de bandoleiros. Não existia tampouco violência sem cangaceiros.
Não posso dormir, cantava o poeta Ómiros o amor à caatinga. O sono me apavora! disse a velha senhora com medo de sucumbir. As vacas vão atravessar a estrada, época de leite, bezerros novos, qual um sonho. A idosa, mulher do tempo, ficou calada; aguardou vaca por vaca, desabalada, a ssubir os degraus na escada de pedra que dava acesso ao curral, no Sítio Gravatá. A fêmea do poema ou da história lutava e assim evitava que morresse o seu enredo. Sem poder. Seu maior temor? Envelhecer. No cocho, o sol, o sal onde as vacas lambiam. A velha presa à lembrança, a sua única herança, onde foi jovem quão o alvorecer. O seu vigor, as suas palavras, a sua alegria jorravam igual tormentosa sangria. Os seus romances, o amor, as fantasias se foram.
Acabou a sua história.
Assim aconteceu. Naquela mesma tarde, uma mosca caiu numa panela de carne. Afogada no molho e a morte por um triz, morreu. Disse antes de ter comido e bebido, cantava o artista de rua na rua da feira de sábado, que enfrentou a Morte sem dificuldades. Do fabulista Esopo eis uma verdade: Há quem suporte a morte com facilidade? Existe aquele que não a associe a pensamentos tristes.
Só o sol no final da tarde, quando as barracas na feira são desmontadas. E as folhas secas são levadas pelo vento. Só o barulho hipnótico do relógio na parede do templo de Santana que traz recordações ao balanço da rede. Anoitece. Termina. Só resta o silêncio.
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