O CHAMADO DE MARIA AO CANGACEIRO DO REI

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

E outra vez o Natal voltou.
Na montaria, o padre no ritmo do animal que escolhia com cautela onde apoiar os cascos. A lua branca sobre a Serra Desvanecer. As pedras soltas rolavam na terra seca entre os espinhos-de-roseta. O cemitério o esperava com a bocarra aberta. As suas orações em latim não o impediam de ser levado à boca da morte, ele ouviu ao começar a descer o serrote pelado de casas, de reses, de água. Na visão do povo era um anjo. Inseguro, sacolejava o asno Esperança-de-Nunca-Mais-Empancar que trazia o padre Velho.
O destino, sempre o destino; fosse favorável ou não, era atribuído a ele e tão-somente. Um cãochorro atravessou a feira. Acaso obra do destino?
Sentado num caixote de madeira, assim versava o poeta Ómiros:
Essa lua
somente
num céu
distante
tão perto
diz tanto
só mente
Sol na Lua
tão breve
o instante;
e se brilha
vaga-lume
nesse luar
navegante?
XLIX – Partiram 800 cangaceiros no Bando do Cangaceiro do Rei, e chegaram agorinha mesmo do Rio dos Currais. O grupo de guerreiros testemunharam o São Francisco cheio de gado que rumava sertão adentro após o fogo que se espalhou na queimada da cana-de-açúcar no litoral. O grupo seguia o seu líder que perseguia a Lua, e a seguia desde o Rio dos Currais. Cobrava de São Jorge a devolução de Maria. Corria a Lua, corriam os cangaceiros. A cavalhada atravessou riachos, rios, sítios, pedras, lajedos, terra seca, espinhos-de-roseta, povoados, aldeias, cidades, fazendas, atrás da Lua. O Cangaceiro do Rei jurava ver Maria na Lua; ele convencia todos os cangaceiros, que também viam o que o chefe via. Nisto não havia nenhum absurdo, cantou na feira de sábado, num caixote de madeira, o poeta Ómiros. O Cangaceiro do Rei provava que A era B e B era C, e os cangaceiros acreditavam. Cegos seguiam os guerreiros o artífice da guerra à Lua. O ritmo sincronizado da cavalhada sobre pedras, terra seca, espinhos-de-roseta. Passavam cangaceiros no lombo dos cavalos feito balas na perseguição à Lua. Era a genuína vontade do Cangaceiro do Rei ouvir dia após dia o chamado de Maria. Com ele, o Cangaceiro do Rei arrastava todos os seus comandados. O Cangaceiro do Rei, garganta de aluguel de tantos, liderava 800 facínoras. Os 800 agiam com perversidade. Os crimes eram cometidos com todo tipo de excessos. Na Serra Desvanecer, o cangaceiro Pasmo de canivete à mão, descascava uma manga e salivava com a língua presa entre os dentes e fora da boca; e a levava da esquerda à direita. De cócoras, o cangaceiro Pi Ôidijorvina rasgava à unha a jaca gigante entre os seus companheiros. Sob o comando do Cangaceiro do Rei espalharam-se no cocuruto da serra os 800 guerreiros; eles atiravam de rifles contra a Lua, espingardas, mosquetões, Luger, revólveres. Si vis pacem, para bellum! berrava o bando de armas em punho. Si vis pacem, para bellum! os cangaceiros rasgavam-se por sobre coivaras, pulavam montanhas de fogueiras, galharias... Si vis pacem, para bellum! Saltavam cangaceiros troncos derrubados, aos gritos de Si vis pacem, para bellum!
L – O Cangaceiro do Rei não dormia, não comia, não falava, a olhar a Lua na bruta madrugada. A cada dia, o Cangaceiro do Rei ouvia o chamado de Maria, cantava Ómiros sentado num caixote de madeira e com um pandeiro à mão. No sábado, gente comprava, vendia pitombas, seriguelas. Exercitava o Cangaceiro do Rei o juízo final. Imaginava numa viagem dentro da imaginação o Cangaceiro do Rei. A vida, a vida ávida sem Maria. Esbravejava o cangaceiro que a moeda da vez agora era a mentira; e quem a usasse mais, mais rico e poderoso se ria de quem não sabia rir, mentir, odiar. Mirava o cangaceiro o cavalo branco de São Jorge. O Cangaceiro do Rei a balançar o seu guizo, jurava vingança. Vinha o Cangaceiro do Rei com todos os 800 cangaceiros. O planeta Terra e o planeta Lua. Ria a Lua nos braços de São Jorge. Vinha do céu o calor, e a seca na terra lambida pelo fogo do dragão. O Cangaceiro do Rei na Serra Desvanecer, a mais alta no sertão. O que esperava o Cangaceiro do Rei eram espinhos. Mata altiva. Um planeta estranho. Nunca visto, disse o Cangaceiro do Rei. A cabroeira do cangaceiro a atacar. A cabroeira do cangaceiro via na Lua São Jorge, o cavalo e o dragão. A cabroeira do cangaceiro despejava tiros de clavinote na Lua. Lenta a morena parecia opulenta e grávida. De cócoras à Lua. A Lua enganava na mudança das horas. Serra Desvanecer nas alturas, Serra Desvanecer grudada ao céu, Serra Desvanecer próxima à Lua, Serra Desvanecer redonda. Lua lenta, lenta Lua. O Cangaceiro do Rei, na Serra Desvanecer, dum pulo com chapéu de couro à Napoleão derrubava a monstruosidade que julgava ser nem que caísse a Lua sobre muitas cidades: Eros não era mito, só um cangaceiro maldito.
LI – Invenções de antigos gregos legadas ao Cangaceiro do Rei atendido pelo realismo fantástico, canta e toca o cego Ómiros num caixote de madeira na feira de sábado entre as bancas nas ruas de Santana-Sem-Lua. O mundo só tiros, cantava Ómiros; e balas que saíam de armas e voavam mundo afora; voavam na rapidez da tempestade do vento feroz com a força de Éolo o Cangaceiro do Rei. Balas não atingiam a Lua, não atingiam a Lua os alagoanautas. Insistia o Cangaceiro do Rei na luta contra São Jorge. E caíam cangaceiros às pencas da Serra Desvanecer. Num peteleco, o Cangaceiro do Rei rolou serra abaixo, acabrunhado, enrolado em espinhos de mandacaru, um desenho: a letra Q era o Cangaceiro do Rei. Recuperou-se da queda. Achou um coiteiro da polícia que servia às forças volantes; arrancou-lhe todas as vísceras guardadas no abdome do homem; deixou que voraz bacuri no vazio em instante devorasse o homem; num zás, costurou tudo com barbante. O homem morria aos poucos e, de repente, ante a família: Não me humilhe! gritava o homem. Não me humilhe! Enquanto o bacuri roía o homem por dentro. E assim o Cangaceiro do Rei associou-se ao coronelato, com ele se alimentava, bebia e farreava com cachaça dos alambiques europeus e charutos importados. E a Serra Desvanecer tão alta era avistada nas nove capitais. Era localidade deveras estranha, Desvanecer, entre Cidade-Sem-Água-e-Sem-Luz-e-Com-Muruanhas, Nós-Tratamos-Mas-Não-Cumprimos e Murucututu.
LII – Privado de sono, o Cangaceiro do Rei via a Lua transformar-se num corpo chato, chato e alongado, alongado e feio, e o feio ameaçava a Serra Desvanecer. O Cangaceiro do Rei viu a Lua mudar de cor, e foi de cor alaranjada a marrom-clara e foi a uma cor amarelada. O Cangaceiro do Rei viu pernas na Lua; julgou serem as pernas do santo, do cavalo, do dragão; eram seis pernas, e todas elas possuíam garras. A lua era um ovo no céu. Acordava do sono forçado e caía no sono o Cangaceiro do Rei de rifle à mão. Descia da Lua larvas e se espalharam na Serra Desvaneces; 800 larvas que se escondiam na serra e alimentavam-se de tudo o que que era vivo. As larvas transformavam-se em pupas e as pupas se devoravam. E privado de sono, cantava o cego Ómiros na feira de sábado, lutava o Cangaceiro do Rei contra o sono. Intensa coceira tomava o corpo dos 800 cangaceiros, que apontavam as suas armas à Lua. Apavoradas mulheres no Bando do Cangaceiro do Rei. Mulheres e homens – o cangaço folgava, ancho. Sátiros embriagados cantavam baladas, dançavam xaxado na Serra Desvanecer e cantavam os sátiros. Os 800 passaram um mês a espancar macacos. A Serra Desvanecer abrigava o Cangaceiro do Rei e os seus subgrupos de cangaceiros. Quem era feito de pó na terra, nesta mesma metamorfoseia.
LIII – Em sua terra, o cangaceiro nunca foi mestre da sorte, o Cangaceiro do Rei foi mestre do azar. Sabia ser a sepultura o seu trono.
LIV – O Cangaceiro do Rei jamais se apoltronava; ele tecia o destino traiçoeiro dos mortais, cosia uns na carne crua, sem unguento; em outros, o Cangaceiro do Rei costurava, ávido por sangue, parecia vampiro o bexiguento. Fama correu mundo; explodiu a fama lá de Girau Quebrado, a fama se foi adiante até o final de Lagoa do Nada; dela, a fama do Cangaceiro do Rei ganhou destaque no niilismo dos jornais diários com retratos, pinturas a pena, fitas de cinema, em letras de livros, de revistas. Na boca do povo morava o Cangaceiro do Rei. Animal de vida sagaz, vida feroz, verdadeiro mata-pasto; ele não foi outro senão o Cangaceiro do Rei. Algoz nas investidas, falso, traiçoeiro feito riacho salobro que botou água. Muito pior se comparado aos cangaceiros que vieram antes ou depois, fossem todos eles de Cabeleira a Tonho Silvino, Nhô Pereira, Lampião, cujos médicos na Bahia estudaram a anatomia na Faculdade de Medicina. A fama do Cangaceiro do Rei atravessou tempo estado-ser. Quem duvidasse era só fazer entrevistas aos médicos, na Bahia, cantava na feira o poeta Ómiros.
LV – O Cangaceiro do Rei, meninote, dava vida por briga, comia desgraças, andava qual cascavel, uma sucuri; a polícia dos Estados atrás em um feroz faz de conta. Ele encantava-se, perdia-se na escuridão. No labafero do dia era feio; quem não corresse dele morria de levar peia; e o cãochorro não ladrava. Corria o sol. Escondia-se o povo horrorizado com as estrepolias do Cangaceiro do Rei.
LVI – Desde o exato ano, o mês não sabido, o dia incerto, o Cangaceiro do Rei não identificado. Revelado o surgimento do Cangaceiro do Rei? seguia o seu canto o cego, na feira. Quem dava conta, quem sabia o paradeiro do Cangaceiro do Rei? Fugia a pé, fugia a cavalo o Cangaceiro do Rei. Voava montado em Afã o Cangaceiro do Rei. Quem dava notícias do Cangaceiro do Rei? Quizas a rua, quizas volantes, quizas matutos, quizas coiteiros, quizas cangaceiros. O punhal de 60cm na mão do Cangaceiro do Rei, na saboneteira, segurava-o no cabo a mão forrada de anéis caros. Quizas, quizas, quizas. Não lhe desse tudo. A casa era o chapéu, a comida e a pilhagem. A mulher cangaceira no Bando do Cangaceiro do Rei amanhecia com sorriso no primeiro dia, no segundo com ódio da própria vida, no terceiro procurava como escapar da cilada, não encontrava saída. O frio, principalmente ao amanhecer. Os cangaceiros carregados de tralhas dependuradas ao corpo, armas próximas às mãos. E nas breves passagens de galhos ferozes, maranhões de rusguentos espinhos aguardavam os 800 cangaceiros.
LVII – O Cangaceiro do Rei contratou cordelistas que cantavam a sua sina em feiras e esquinas. Em opúsculos os poetas eram gerados. O Cangaceiro do Rei sustentava-se e recebia a bela e polpuda comissão, nunca menos de 99%. Ai de quem não dissesse ser o maior herói brasileiro o Cangaceiro do Rei! Morria cedo no dia vindouro apedrejado. Debaixo de umbuzeiro, o poema era plantado; dele colhia-se poesia na rede de balançar.
LVIII – Jovens alistados à força, sentavam praça, corriam atrás de briga com os cangaceiros. E, com sorte – diziam uns aos outros em segredo no acampamento provisório nas casas abandonadas na caatinga – se lutava guerra, cangaço. Quem chegasse primeiro, com sorte, furtavam a fortuna que o morto carregava. Com sorte, ficava rico; com sorte, comprava terras; com sorte, enchia a terra de gado; com sorte, entrava no gosto popular com polpudo emprego, com regalias. E surgiu dentro dessa luta de bagaceira São Jorge e carregou num zás da Terra a beleza de Maria! urrava o Cangaceiro do Rei.
LIX – Maria era, ao Cangaceiro do Rei, outra Briseida.
LX – Naquele tempo escolhido pelo próprio tempo, na Lua São Jorge, no cavalo, lutava contra o dragão e protegia Maria das investidas dos 800 no cangaço. E o Cangaceiro do Rei não era novo em seus ardis. A comida do Cangaceiro do Rei era feita dentro da raiz fofa do umbuzeiro; a política do Cangaceiro do Rei era contar bravatas debaixo de umbuzeiro. Isto se encontrava nos livros em atas registradas pelo velho tempo. Volantes cercaram Serra Desvanecer, uma força abordou o Bando do Cangaceiro do Rei pelo Sítio Gravatá e outra volante foi por Areias Brancas. A truculência presente no trajeto à Serra Desvanecer revoltou o carreiro João Grilo, que era aliado ao Cangaceiro do Rei, e igual a tantos outros mundo afora com a mesma sorte e semelhante destino. O carreiro Grilo era um tipo sem que andava com, e vivia na labuta com a roça, na roca desde que esse mundo é mudo. O carreiro ludibriou as tropas, fê-las atacar um espólio inventado por suas velhacarias. É dele o feito de convencer Prometeu a prometer ao povo o fogo à história. E foi esse cristão carreiro, cantava o cego na feira, e batia no pandeiro, sentado numa caixa de madeira, foi essa criatura nascida na personificação e vivedor no Sítio Prosopopeia, possuía todas as formosuras às avessas. Foi ele quem vendeu a Judas por 30 moedas uma braça de corda. Viajou pela História, viu a quenga com cicuta na mão de Sócrates, e reforçou a dose. O Rei Leônidas foi orientado por quem hoje era carreiro no Sítio Prosopopeia durante a batalha das Termópilas. Acaso não iria ele favorecer o Cangaceiro do Rei em sua disputa com o santo? Ave-maria! cantou o cego na feira. Não foi, pois, o carreiro João Grilo quem ensinou ao Cangaceiro do Rei a envultar-se, a transformar-se em fênix, a subir ao céu metamorfoseado de ave? O realismo não era mágico, menos fantástico. Misteriosa era a vida. O carreiro presente estava durante o nascimento do capitalismo; viu a invenção ser inventada e nela deu impulso, cambalhoteou o cururu, pulou por cima do sapo. O Sarg. Polissêmico, um dos chefes de volante no cerco ao Cangaceiro do Rei, agia a eminência na iminência; sempre atento, observava o estrato no qual se achava a sua força e o extrato do conflito aos 800 cangaceiros na Serra Desvanecer. Incerta feita, o cangaceiro, faminto e só, em Mossoró, viveu dias arranchado numa hospedaria. Deixou aquela casa e ganhou o mato; caçou bicho mocó e o aprisionou. Como se fosse à caça, cantava o cego na feira, o Cangaceiro do Rei apontava o rifle em direção à Lua. Espalharam cabras em Desvanecer. Dias e dias, o Cangaceiro do Rei queria atirar dentro do Sol e apagar a Lua. Corria-lhe a água da testa e os olhos do Cangaceiro do Rei numa reclamação. Era como se perdesse a pontaria, a valentia, a vontade em atirar e derrubar a caça. O corpo fechado se abria. Maria, Maria! urrava de gozo o Cangaceiro do Rei. Desde o tempo em que viveu dias naquela pensão, no centro de Mossoró, aprendeu a enfrentar as forças sempre a favor do sol e nunca contra. No bolso da camisa tinha o Cangaceiro do Rei um espelho. O sol cegava os atiradores. O Cangaceiro do Rei apontava o espelho em direção à Lua: queria cegá-la. O espelho do Cangaceiro do Rei alumiava as carnes grávidas sobre os montes e os lajedos. Os coronéis sertanejos viviam de gabar o cangaço; o povo apertado dentro do laço, dentro do nó da carestia. A economia se ria do povo, ria-se. A economia oscilava, batia no povo de urtiga. Coronéis forjados no aço desde as capitanias; o cangaço sem lei assombrava o demo sentado numa bacia na qual ele se refrescou do fogo eterno. O povo rezava em procissões e promessas. Fazia o povo o caminho e os valores presos ao pecado original com os olhos pregados às nuvens. Na Serra Desvanecer oscilavam os dias entre o tédio, a alegria e as felicidades momentâneas. A Coluna, a Coluna! uniam-se os berros de combate dos cangaceiros do Cangaceiro do Rei junto a outros cangaceiros. Seguiu a luta dos cangaceiros cegos na campanha. Dias esmolambados na Serra Desvanecer. Cabras acompanhados de companheiras na companhia de quem era de repente puxada da casa materna tirada. A lascívia e a corrupção emburacaram no vazio da viola, atravessaram elas a boca da história. Os cascos de cavalos nas pedras, os arreios chocalhavam. Batia a sela no vaivém da subida. Os estribos, os pés, o vaivém das pernas. A luta dos cangaceiros cegos a acompanharem a cegueira do Cangaceiro do Rei, o seu mestre. Contaminados seguidores pelas palavras do vento. A vingança do Cangaceiro do Rei contra o que o destino lhe fez. Maria na Lua, Maria da Lua, Maria pela Lua, Maria era a própria Lua, Maria plena de si levada por São Jorge, pelo cavalo. Via o Cangaceiro do Rei o dragão. Cavalos no cangaço sobre as pedras, os seixos. Arreda, arreda! urravam os cangaceiros no antropomorfismo das estrelas, das pedras, dos seixos, de sapos, cururus, rãs, jias. A violência enfrentada, o látego, o castigo. O Cangaceiro do Rei não falava sobre a criação do desejo mascarado e devastador. A luta do Cangaceiro do Rei ecoava na Lua. Derramava-se a lua na terra do Cangaceiro do Rei como acinte. As mulheres no cangaço arrancadas de casa sob o grito aterrador, porque sabia que nunca mais voltaria a ser o que era; acompanhavam os cangaceiros, jovens meninas de sorrisos interrompidos, olhares baixos porque tímidos, desconfiados, chamados pelo povo de olhares de cangaceiras, jeito de cangaceira. Sedentas por fuga. As jovens meninas mulheres de cangaceiros queriam voltar à casa dos pais, assustadas; reverem os seus irmãos, reverem os seus pais, reverem tios e avós, reverem os seus parentes todos, as reses no pasto, o curral, leite, queijo coalho, tapioca na goma da farinha de Mani. Jovens meninas ocultas fechavam a matraca, crianças vítimas de jararacas ensandecidas pelo ciúme. Desvanecer, Serra Desvanecer. Meninas amarradas a cangaceiros contra as suas vontades, as virgens, as viagens, a doce vida, sedosa, maravilhosas sertanejas na secura de jovens cangaceiros que lhes prometiam risos, gargalhadas enlouquecidas, batalhas na caatinga, as festas de dança, leite, mel. Belas inocentes, crianças e adolescentes vítimas das jararacas no cangaço do Cangaceiro do Rei.
LXI – A loucura era irmã do tempo que morava dentro da solidão. O Cangaceiro do Rei, durante intervalos na batalha, fazia rimas internas contra o santo guerreiro que raptou Maria e a levou à Lua sob os bafos do enfeitiçado dragão. Criava rimas externas o Cangaceiro do Rei, fazia intercaladas e dizia rimas alternadas, cantava versos em estrofes com rimas emparelhadas que davam aos fonemas o sabor da breve morte. Nos intervalos dos tiros, o Cangaceiro do Rei só gritava o nome de Maria. Maria nos braços da Lua. Maria nos braços do santo. Urrava o Cangaceiro do Rei nos braços de Maria se imaginasse, na boca de Maria, nos olhos de Maria, nas pernas de Maria, nos pés ligeiros de Maria, na pontaria de Maria, nas falas de Maria, nos beijos de Maria. No trote de Afã, o Cangaceiro do Rei acompanhava Maria, que lavava roupa, e Maria acocorada em um caldeirão. O Cangaceiro do Rei misturava as rimas, combinava as sílabas poéticas, fazia as suas rimas perfeitas, dizia também as imperfeitas e mantinha o equilíbrio entre as rimas. Cangaço aprovava as rimas do Cangaceiro do Rei. Alimentava-se de saudades o Cangaceiro do Rei, cantava o cego na feira, frenética a mão do poeta batia no pandeiro, Ómiros sentado num caixote de madeira. Corria o Cangaceiro do Rei, parado o Cangaceiro do Rei trançava o cabelo em cangaceiras, cantava-lhes coisas de Maria ninar.
LXII – Lua voltava toda noite, cheia. Que Lua louca! fazia o Cangaceiro do Rei rimas pobres com guerra e céu, rimas ricas com luar. À época do cangaço, época de primogênitos cangaceiros trazidos por Portugal em noz de caravela que fez a travessia no Mar Tenebroso, as famílias no oco do sertão de três opções faziam promessa, mato, casamento a ser parente de desonrados cangaceiros. Chuá! a água no Mar Tenebroso. Chuá! Pés na areia de protegidos da sorte, da nobreza, protegidos do Rei. A pé avançava cada vez mais o cangaço aliado à oligarquia. Quem não escondesse a filha, quem não encontrasse marido, acabava no bico dos baderneiros. Suspiravam à janela meninas que ouviam mentiras históricas do Cangaceiro do Rei que lutava contra São Jorge. Sonhavam as meninas nas janelas o dia em que um cangaceiro viesse lhes salvar das garras do pai, das unhas da mãe, dos dentes do homem irmão, do primo, do tio, do avô, do vizinho a lhe propor cabresto. Nas janelas, as moças meninas à espera da cabroeira de homens jovens, poderosos, valentes, sem lei e sem ordem que os impedissem de cometer violência. Meninas moças, jovens donzelas na calçada de casa, na rua, uma rua de casas, nada mais, uma vila, na panela sobre o fogão, da panela ao fogo queriam pular as meninas viçosas a desejarem o aço com as coxas na garupa do cangaceiro; e todo rapaz de juízo queria experimentar o poder de ser ou não ser guerreiro afoito no Bando do Rei que determinava a legislação no sertão por ser tão poderoso o cangaço. A ira do guerreiro dilacerava o coração demonstrado nos gritos em batalhas. O Cangaceiro do Rei não podia recuar, não podia trair, não podia deixar de cumprir a sua promessa em recuperar Maria. E as meninas moças, jovens donzelas sequer sabiam o que era a vida no cangaço, as perseguições das forças, perseguições da seca, as perseguições de traição, perseguições da fome, as perseguições do sono, e as ferozes perseguições de coronéis rivais, as perseguições de governos rivais. E Desvanecer era o refúgio. Na Serra Desvanecer, ela e ele longe de volantes. O Cangaceiro do Rei nunca arredou da lua. Santo de olhos de raios vigiava de sua morada às investidas do Cangaceiro do Rei! cantava o poeta Ómiros:
Essa lua
somente
num céu
distante
tão perto
diz tanto
só mente
Sol na Lua
tão breve
o instante;
e se brilha
vaga-lume
nesse luar
navegante? No lado escuro da Lua ficava escondida Maria por seu raptor. Aqui em baixo, as virgens nos adjuntos de casas miseráveis e trágicas, elucubravam vítimas do cangaço picadas por jararacuçus: veneno de cobra no couro. Bagaço dava coices, resfolegava; enxeridas batiam e lascavam as pedras, terra seca e espinhos-de-roseta a pancadas violentas. Não era qualquer força que arriscava escalar a Serra Desvanecer e enfrentar o Cangaceiro do Rei. Nenhum cavalo de Troia era parido no sopé. No pé, as forças atiravam a esmo na cabeça da Serra Desvanecer, as forças esbravejantes, elas atiravam sem parar, metralharam árvores, balas trocadas, como ricocheteiam projéteis, os urros de filhos cãescachorros sem-vergonhas, cabras covardes. Meninas moças, jovens donzelas, debruçadas ao peitoril de janelas. Moças jovens donzelas que suspiravam encontraram sossego nos braços de quem pudesse tirá-las da opressão dos pais, de irmãos, as jovens donzelas indóceis. Meninas moças e jovens donzelas rabugentas, moças jovens, donzelas de coxas opulentas, cantava o cego na feira como se lesse o seu cordel imaginário. Lindas e indomáveis moças meninas sem juízo nem destino no zunir das balas na batalha no Bando do Cangaceiro do Rei, na Serra Desvanecer. E os filhos delas despejados nas mãos dos padres, dos compadres que moravam na rua em casa de duas águas.
LXIII – Em Desvanecer, dentro de mata fechada, homem e mulher acarinham-se, mulher e homem de língua se uniam em lajedos, pedra cinza com manchas do tempo. Homem e mulher que faziam cama. Lugar de onça, lugar de cobra. E na Serra Desvanecer, mulher e homem que mal se deitavam logo se levantavam à luta.
LXIV – Cangaço, cangaço! ecoava a manteiga de garrafa, na Serra Desvanecer. Cangaço, cangaço! cantava o cego sentado numa caixinha de madeira. Se não seguir os cangaceiros, eles matavam todas as suas criações, os pais, os irmãos. Ocuparia o reino dos césares o reino divino; na procissão de rua em rua, os beatos cantavam hinos. Mundo de paz e justiça, não precisava haver intriga. Cangaço, cangaço! ecoava. Outras mulheres vítimas do cangaço, picadas por jararacuçus. Entre ais e uis, elas com braços esguios. Silhuetas de jovens mulheres, a sombra de cangaceiros. Nos ares da mata, caatinga fechada, desenhos entre os galhos de mulheres cangaceiras em fuga na batalha. O combate arde o sertão, o medo, a fera acuada, tiros, palavrões que povoavam a morte. Cangaceiros admiravam as destrezas de inúmeras rosas, as júlias e florenças, assunções, marias, graças e socorros, as bernadetes e vitórias, lourdes e fátimas guerreavam sem pares, mulheres de tudo. Garbosas mulheres sertanejas entre ões e senões e talvezes. Pindorama, Serra Desvanecer exalavam flagrantes fragrâncias. Fogosos casais. Cada corpo de olhar sagaz de Tupã em arfantes seios de Jaci; gigantes mulheres em íngremes pedras, terra seca, espinhos-de-roseta.
LXV – Violência de longe, trazida pelos colonizadores às terras tupis, às terras de povos autóctones, originários, terras além-mar às quais traziam novos cativos afogados no próprio sangue da travessia. Atlântico era o cemitério de cativos nos versos! como se lesse cordel cantava o cego numa caixa de madeira, na feira de sábado, e batia frenético o couro do pandeiro. E a violência chegava à poeira do tempo. Bichos com o olhar de peixe se perdiam no encanto da noite, encanto da caça. Caçadores caçados. As forças volantes dormiam. Era o tempo do desafogo e nele se afogavam cangaceiros. Eram gnomos, fadas, seres horríveis, mais que quasímodos ao lado do feio, esquálido, górgonas, espantalhos. Mundo do tempo sem tempo, separado pela película da noite. Cangaceiros procuravam abrigo sob as pálpebras de suas mulheres mágicas, onde só eles caçavam proteção.
LXVI – Todos iam dormir àquela outra noite, menos o Cangaceiro do Rei. Após fornicar mais do que o tempo, ele não dormia, não bebia, não comia, não falava. O Cangaceiro do Rei olhava a Lua pela madrugada, era o seu ofício de guerreiro. O Cangaceiro do Rei na Terra, Maria na Lua. O Cangaceiro do Rei flutuava em direção à Lua. Ele matava à espera de Maria com arroz-doce; era o romantismo do Cangaceiro do Rei banhar-se em água de cheiro. Quão untuosa a cabeleira. Planejava o cangaceiro falar aos padres leitores de antigos gregos, transformá-lo em grilo-pássaro e realizar o destino: ir à Lua no espaço de um mês lunar.
LXVII – Textos e imagens pululavam nos jornais: charges, retratos, colunas de entrevistas, reportagens. Batalha Desvanecer acompanhada. Foi Borba Larápio, publicaram. Os navios negreiros, a matança de Ancião. O mundo assistia tudo sobre o Cangaceiro do Rei nas edições de jornais.
LXVIII – Dissesse ao menos solidão, dissesse saudades...! cantava o cego na feira de sábado. O Cangaceiro do Rei exigia poderes. Corpos em lajes frias. E de madrugada, na Serra Desvanecer, miava e ria. O Cangaceiro do Rei chorava e ria; exigia do santo guerreiro que lhe devolvesse Maria. Na rajada de balas, o Cangaceiro do Rei subia no cajueiro mais alto trazido por pássaros e brotou na serra o maior cajueiro do universo; nele, o Cangaceiro do Rei tentava alcançar a Lua. Ameaçava, jurava o cangaceiro ir desde a Serra Desvanecer ao Juazeiro de Cícero, de joelhos. Esfolava o Cangaceiro do Rei os joelhos nas pedras, terra seca, espinhos-de-roseta, esfolavam os joelhos por Maria.
LXIX – Ia o Cangaceiro do Rei à Lua. Escalaria o lado sem luz. Faria um furo no plenilúnio. Esvaziava a lua cheia. Disse o Cangaceiro do Rei à Lua: Deixasse de ser lua! Lua caísse na Terra em cima da Serra Desvanecer. Queria o cangaceiro ir à procura de padre simoníaco que fizesse negócios. Rezasse com força até a Lua cair. O cangaceiro neurastênico, ria da cara da Lua. E dia e noite repetia o Cangaceiro do Rei os pinotes, os piparotes, pronto a derrubar o santo da Lua, a pronto de matar o dragão e fazê-lo pasto aos urubus. O cemitério o esperava com a bocarra aberta. As suas orações em latim não o impediam de ser levado à boca da morte, quando começou a descer o serrote pelado de casas, de reses, de água.
Essa lua
somente
num céu
distante
tão perto
diz tanto
só mente
Sol na Lua
tão breve
o instante;
e se brilha
vaga-lume
nesse luar
navegante? Sentado num caixote de madeira, assim versava o poeta Ómiros. E as nuvens pesadas d’água se afastaram; e, num pinote, sobre elas cavalgava o Cangaceiro do Rei. Corria a Lua no céu sem luz, e levava com ela Maria em nave briluz, inatingível, faísca elétrica na atmosfera. Acompanhavam o tropel a luz e os cangaceiros Ribombar e Trovão.
Essa lua
somente
num céu
distante
tão perto
diz tanto
só mente
Sol na Lua
tão breve
o instante;
e se brilha
vaga-lume
nesse luar
navegante?

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