E ele veio cobrar o que lhe deviam. Um sujeito simples. Viu o lugar com um olhar arisco, o franzino cangaceiro Conveniência, e investigou o beco sujo e ermo. Unhas enlutadas soltaram o cabresto na montaria, que ficou no primeiro monturo com uma récua de jegue. O domingo de luz e som do sino tocado por Patacão. As orelhas perscrutaram as casas até a bodega de Mané Cachimbo. No lugar do encontro marcado, o cangaceiro abriu a bocarra como se pirata fosse desprovido de sua indumentária, rendido pelo sono, pelo cansaço.
Na manhã de sol, o cangaceiro Conveniência, disfarçado, entrou na bodega de Mané Cachimbo. Na parede do estabelecimento foi deixada uma placa amarela:
Bodega de Mané Cachimbo
Onde a bebida era de graça
Conversa de gente grã-fina.
O cangaceiro Conveniência, igual a um ladrão comum, foi do balcão à mesa. Puxou um banco, numa aresta da bodega; naquele canto de parede, o cangaceiro via o movimento: quem entrava, quem saía era alcançado pelo seu campo de visão. Ele veio à cidade atrás de um acordo feito com um estafeta do Cel. Dr. Vil.
Mané Cachimbo, desconfiado, aproximou-se com um pano latrinário ao ombro e outro trapo sujo à mão; esfregou o trapo onde foi possível, na mesa. Riu. Quis saber se reconhecia aquele rosto, se ele era familiar.
Não viu semelhança entre o novo e os velhos fregueses, na bodega. Quis sair, o cangaceiro Conveniência lhe segurou o braço:
Uma cachaça! pediu-lhe.
Uma cachaça, concordou Mané Cachimbo.
No banco da praça central, na cidade Solossagrado, Hermenêutico iniciou um embate com Teratológico. Este defendia, com as unhas, os dentes e a doutrina, o direito ius naturale do cangaceiro pilhar; o primeiro demonstrava os riscos penais da pilhagem. Teratológico, com os truques que aprendeu no circo com o mágico Fubica, manipulava a opinião dos presentes; Hermenêutico provava pela linguagem, pelo sujeito e pelo objeto os erros de seu colega na Faculdade de Direito de Olinda, Pernambuco.
De longe, aquelas pedras representavam imensos crocodilos no leito seco do rio. Não eram crocodilos, eram inúmeros bichos pré-históricos. Nas margens do Panema sem água, os bichos mortos, só carcaças, os urubus circulavam no alto, desciam aves carniceiras, uma nuvem de vestes escuras, na areia do rio brigavam todos pelas carcaças de cãeschorros, de gatos, de cabritos, porcos, jumentos, vacas, galinhas, galos, raposas. E no extenso caminho de areia grossa a devastação, era a cor amarela que se misturava ao cinza. Os tons de laranja. O azul imenso, o céu. Na calha do rio pontilhado de pedras em formato de naves de planetas completamente ignorados, na imaginação das crianças que acompanhavam as mães em vestido de chita. As mulheres com pote sobre a rodilha na cabeça, que aliviava o peso do recipiente de barro onde se transportava água salobra das cacimbas cavadas com a quenga, a cabaça. A água tinha cheiro de mijo de vaca, a água tinha gosto de mijo de vaca. A água marejava no olho da cacimba, subia à borda. A cabaça mergulhava na água do Panema filtrada na areia. As mulheres enchiam os potes de barro, crianças as quartinhas, homens ancoretas. Os jumentos pastam a grama verde que resistia à margem do rio, fiapos de vegetação no leito entre as pedras pequenas, grandes quão as casas nas ruas de cima. Longe, nas serras do norte, às noites se derramavam em trovoadas. À noite, relâmpagos eram como se anunciasse chuva. Acolá. Nunca aqui. Lá. longe. Na madrugada, batia pingo gelado na pedra quente. Caiu chuva. Longa. Demorada. Correu água. Suja. A água carregou toda a imundície que ocupava o rio. Os ossos foram levados pelas correntezas. Água espraiou-se. Tomou o leito seco a água da chuva que caía nas serras do Estado vizinho. Pernambuco derramava água. Veio descendo boi morto, cacarecos, as carcaças que foram esquecidas no rio seco, os corpos abandonados em velhos cemitérios. O rio era um cemitério de bichos. A água tinha pressa, e ocupava o leito vazio. A água afastava toras de paus, garranchos, folhas secas, espinhos-de-roseta. Os bichos mortos sepultados sob as águas que voltavam a preencher o rio, tomar as margens, recuperar margens secundárias, e invadir chiqueiros de porcos, de cabras, de bodes, currais de vacas. Água que vinha se alimentava da plantação à sua margem. Uma plantação chocha, sem importância, miserável. A miséria tomava fôlego, saciava a sede, tomava gosto, era invadida pela força da água, que corria em desespero Panema abaixo em direção ao São Francisco. Passou a água nas vilas, povoados, adjuntos de casas, ruas, estradas, foi ávida, e praticou o pecado da gula, e invadiu casas, e abalou estruturas, e carregou móveis, e afogou camas, mesas, tamboretes, farinha, rapadura, pratos, talheres, panelas e outros utensílios. O rebuliço das águas carregou os bichos e os donos dos bichos, que se recusavam a perder sua riqueza. O Panema semeou o choro e a alegria. As margens ocupadas. Panema botou água.
Etrusco, o primo de Bé do Algodão, filho de Lídia, pai desconhecido, era o dono do cinema. Ele andava na cidade cercado por duas dúzias de cãeschorros. Aonde ia, Etrusco levava-os; até mesmo dentro da sala de cinema.
Durante uma conversa qualquer, Etrusco fazia-se presente com os seus maiores amigos que se sentavam sobre as quatro patas e lhe ouviam com atenção. Etrusco trazia exemplos a qualquer assunto que se conversava; tinha uma coleção de exemplos que os adotava em quaisquer temas e ria, ria até ficar sem fôlego. Os seus maiores amigos latiam, latiam, latiam, e Etrusco recuperava o ar nos pulmões. Latiam, latiam, latiam: Tem um osso aí! tem um osso aí! latiam.
O primeiro filme na sala Solossagrado (o nome do cinema era o topônimo de Santana) foi Cabotino. Dias após a exibição, o dono do cinema passou a ser chamado de Etrusco Cabotino.
O que é o capitalismo, é o capital?
Não! respondeu o padre Velho a Etrusco Cabotino, que vivia dedicado aos amigos cãeschorros, e não queria outra vida senão ganhar dinheiro e superar o primo Bé do Algodão. São os valores que circulam; se para de circular, cai.
Era? duvidou o dono de cinema, que se cobria de ilusões e senso comum.
Era só visitar a feira, disse o padre Velho.
Na feira, vendedora de manga ao lado da peixeira coberta de mosca. As cascas de mangas no chão de barro. As mangas numa cama de folhas de bananeiras. A vendedora pesada, sentada, impregnada do cheiro das mangas. A boca dela marcada, úmida, pegajosa com a polpa suculenta que escorria pela boca. Ela rasgava a casca da fruta. Cheirava. E a cor amarela pintava os lábios, as bochechas, os dedos das mãos, os antebraços. Escorria a linha que se dividia em linhas finas e grossas. Mexia os braços, espantava as moscas, que insistiam em rodeá-la. As moscas voltavam. Misturavam-se a vendedora e o cheiro da polpa. Sol. Sede. Suor. O doce da fruta. A boca. E a suculenta polpa escorria, descia lentamente no abafado da boca da vendedora de manga. Lento o dia. A ausência de sombras, a falta de vento. Prendiam-se às fibras da fruta entre os dentes da vendedora de manga, e ele continuava a meter os dedos na boca; puxava as fibras com as pontas dos dedos, com as unhas. Saboreava as mangas rasgadas à unha com a língua, com os lábios. Era como se saboreasse a própria salvação da alma. Lambia as pontas dos dedos, lambia os dedos, as palmas das mãos.
Isso, dessa vendedora de manga, não era engodo, padre?
Nem engodo, nem engano. Só era dono da manga se pagasse por isso.
E não era justo, padre? disse Etrusco, o primo de Bé do Algodão.
E os réis vinham de onde? quis saber o padre Velho do dono do cinema.
Fosse de onde fosse.
No município de Encanto, a 20 léguas de Solossagrado, na Faz. Bonito, o Bando de Conveniência fazia a festa com a força volante do Ten. Fazregra. Morria cabras de ambos os lados.
Te entrega, cornudo!
Não me entrego, macaco!
A 15 léguas da troca de ofensas intimidatórias e tiros mortais entre volante e cangaceiro, a língua dos riachinhos, que abasteciam sítios em Solossagrado, seca. Os riachos tinham as mãos postas. E, mais tarde, as grossas nuvens d’água se despejaram no semiárido alagoano. Derramaram-se. As águas ressuscitaram vidas. As nuvens estacionárias como se derramassem peixes. O manto de folhas secas e a sujeira desceram ao encontro do rio. As urtigueiras, onde beija-flores faziam ninhos, devastadas pela força das águas. A cama dos cágados inundadas, a enchente levava os filhotes, matava-os afogado. O tamanduá-mirim foi surpreendido pelas águas, surpreendidos o veado catingueiro e o tatu-bola. O gato-mourisco fugiu da cheia, levou os filhotes presos aos dentes. A raposa pulou de banda ao fugir da enxurrada. Os caititus foram levados pelo riacho gordo d’água. O padre Velho, sem chapéu, O Liberdade de Expressão numa cadeira na varanda do casarão, testemunhou o tributário do Panema veloz ao encontro do rio que invadia residências, largo, cobria mato, pedras, cercas, currais, casas. Gente à beira do rio, o povo presente ao espetáculo das águas.
À noite fez cessar a chuva. Ergueram-se as lamparinas de fogo. Insetos alados, que eram muitos, miúdos e muitos, muitos e traídos à luz que os fez girar num bailado insistente como se alguém fosse festejar a morte.
A 10 léguas.
Te entrega, cornudo! protegidos atrás da cerca de pedras soltas, voavam gritos e balas sob um sol de pleno estio. Só os mandacarus ficaram indiferentes à guerra.
Não me entrego!
Cercaram a casa de farinha. Tiros começaram, a cinco léguas de onde passava o Panema grosso, imponente, ligeiro.
As chuvas da véspera encheram os açudes. As telhas úmidas. E as casas cansadas d’água, abastecidas. As cisternas pela boca. A sede do gado saciada. As preces ouvidas.
E uma gota d’água tocava a folha de flandres de quando em vez, e de vez em quando se repetia a queda de outra gota sobre a superfície da folha. Isto por horas, como se reverberou durante dias, semanas, meses, anos, décadas. A gota d’água voltava e voltava sempre voltava infinitamente voltava e voltava e se arremessava sobre a folha de flandres. O suor na testa do cangaceiro Miúdo. O suor lhe escorria. Grosso. Fino. Molhava o chapéu, molhava à testa, e corria no rosto, molhava pescoço afora, e empapava-o, afogava os sovacos, ensopava o peito, ia à barriga e descia às partes baixas. Escorria como a sentença de morte lavrada a execução no próximo instante. Uma, duas, a gota d’água batia na folha de flandres tchã! e batia ...tum! batia ...tchã! e batia ...splesh! seguia ...plat! batia ...plet! ...splait! ...splesh! ...tchã!
Foram minorados os tiros, minoradas as ofensas mútuas durante a peleja. O cangaceiro Miúdo rastejou pedras, terra seca e espinhos-de-roseta, como se ele estivesse contra o mundo.
Irmão! disse Miúdo. Deixar o cangaço não era desonra.
Não? duvidou Conveniência, chefe do bando.
Vivíamos juntos desde menino! disse. Essa escolha não era mais a minha.
Não? não acreditou Conveniência na conversa de Miúdo.
Esse é um País grande, sabia?
Sabia! disse-lhe.
Ontem, tivemos nas correntes; hoje, nas armas.
Só se colhe o que se planta, Miúdo!
Esse caminho onde termina?
Ora veja! cuspiu de banda, e falou baixinho. Na peleja, Miúdo.
Viver da cuia deles, é? encolheu-se Miúdo entre as pedras grandes como se matasse o tempo e assim evitasse morrer antes do tempo. E ficar pedra nessa luta, é? Como se não pudesse plantar lavoura, era, Conveniência?
O cangaceiro Miúdo rebelou-se.
Quieta, Miúdo! disse-lhe.
Miúdo convenceu-se de que, era só o lado de lá mexer os cordéis, o lado de cá ficava animado.
Óia... gaguejou Conveniência. Não me ofendesse desse jeito, Miúdo!
O lado de lá tinha a alma da cambada de cá presa a arames farpados.
Deixa de conversa, Miúdo! rastejou-se Conveniência; buscou abrigo atrás dum lajedo com partes lisas, outras ásperas, escuro, ocre e prata, e seguiu a sua luta. E não me fale mais em Goiás Velho.
Desde o mais primitivo dos cangaceiros, nenhum cogitou seduzir o sertão a fazer o que fez o Haiti. De lado a lado, a troca de vilipêndios e balas cortavam pedras, terra seca, espinhos-de-roseta a três léguas de Solossagrado.
O cangaceiro Miúdo escapou num rasgo de areão. Conveniência gritava, e atirava, e recarregou a arma e os impropérios à mãe dos adversários.
Nenhum cangaceiro reivindicava uma vida melhor ao povo. Zunir de balas ricocheteiam nas pedras, sepultados projéteis nos corpos, sepultados na terra.
O tempo era veloz na sombra de umbuzeiros, na sombra de cajueiros, na sombra de umburanas, na sombra de mandacarus, na sombra de mangueiras, e as sombras de ouricurizeiros tomavam a terra de areia branca. Os pés em xobois vincavam a terra fofa, a areia fina.
Velhos angicos reclamavam a sequência de zunidos, lascas de cascas de angico na terra seca. Cercado por cangaceiros de Conveniência o curral e a casa de fazenda, entre Solossagrado e Pão de Açúcar, no Sítio Pitomba.
O tiroteio derramava-se do Sol, derramava-se da Lua. E a coruja cantou o seu canto; os sapos também cantaram.
Tenente, esse eu peguei quando fugia pela roça de macaxeira.
Eu não era do bando, senhor soldado; eu era o dono da terra tomada.
Longe, a serra dava luz à humanidade. O galo cantou e agitava asas com frenética insistência; calou-se e se foi bicar. O sol no mato, o sol sobre as coivaras, o sol iluminava os velames, os juás; iluminaram-se as estacas, as madeiras de cerca, iluminaram-se as folhas dos umbuzeiros.
As telhas velhas sobre a casa possuíam manchas escuras que formavam desenhos como em cavernas. Diante de casa, as coleirinhas voavam, e pulavam de talo em talo de capim. No galinheiro sem graça e sujo, as galinhas libertadas no sonho dos gambás.
O pai ordenha as cabras, no aprisco. Assoviava. Os galos-de-campina cantavam. Galinhas corriam, perseguiam escorpiões.
01 – Sentou-se o bodegueiro Mané Cachimbo ao lado do cangaceiro Conveniência e o tratou como velho amigo. Eles conversaram o que acontecia na cidade que ganhou o topônimo de Solossagrado. Mané Cachimbo contou sobre o crime que ligava o Cel. Dr. Vil à morte do Cel. Cordeiro da Paz Carneiro.
Pescou alguma coisa, pai?
Hum-hum!
Hoje não tava pra peixe?
Hum-rum!
Pai.
Hum?
Não sabia se soube da conversa na venda do Mané Cachimbo.
Hum-hum!
O Cel. Dr. Vil ameaçou de morte gente do Cel. Cordeiro da Paz Carneiro.
02 – Sentado o bodegueiro Mané Cachimbo ao lado do cangaceiro Conveniência. As garrafas acumulavam-se na mesa. Mané Cachimbo e o cangaceiro Conveniência às gargalhadas. Outros frequentadores na bodega de Mané Cachimbo jogavam cartas. Mané Cachimbo contou ao cangaceiro Conveniência que foi o filho do Cel. Cordeiro da Paz Carneiro o primeiro a ver o pai tombado entre o açude e a estrada.
Que bicho é aquele? Parece a peste dum cão. O diabo arranca os nacos. Xô, peste!
03 – Mané Cachimbo bebia e fumava ao lado do cangaceiro Conveniência. Nem se importava mais com o balcão. O pano sujo jugado ao ombro. Sepultava o chapéu de palha cada vez mais sobre as orelhas. Empolgou-se no enredo de sua narrativa. Disse Mané Cachimbo ao cangaceiro Conveniência que a viúva, no dia do velório, proibiu a família de vingar-se.
Não matarás. A casa era de todos os 17 nazarenos de pedras, terra seca, espinhos-de-roseta. Era só falar no pontudo de rabo, o pontudo de rabo aparecia; chegou o opulento Cel. Dr. Vil. Sem vinganças na casa. A morte de teu pai ainda era mistério, como era mistério nosso universo, como era mistério a vida eterna depois da morte.
04 – Mané Cachimbo e o cangaceiro Conveniência aprofundaram-se na intimidade como se fossem amigos desde criança. Conversaram naquele domingo de sol até que a Lua veio substituir o Sol. À noite, a bodega de Mané Cachimbo ficou acordada. Chegou à segunda-feira de conversas, risos, tapinhas nas costas, apertos de mãos. Na ponta de rua, onde Mané Cachimbo alimentava a sua bodega, passou atrás de oito ancoretas o aguadeiro Mil-Ciências.
S. Cachimbo, disse Conveniência, matar era uma doença nesse povo.
E era! atrás da mesa, concordou o bodegueiro Mané Cachimbo.
Esse povo, S. Cachimbo, quando começa a matar-se não para mais.
Mais cachaça?
Um pouquinho!
Assim tá bom?
Mais um pouquinho...
Quem aqui não conhecia o Cel. Dr. Vil, irmão do Cel. Etc. Aquele com filho que escreve em jornal, no Rio. No meu tempo de batalha em cabroeira, andei de Jeremoabo a Bom Conselho sem nunca me topar com aquela peste. Lutei diferentes lutas no Raso da Catarina.
Foi?
Corri de clavinote, rifle, mosquetão.
A cachaça de Mané Cachimbo, as conversas de Mané Cachimbo naquela bodega soturna, mesas lambuzadas de garapa, Conveniência foi da realidade à fantasia. Viu a luta, participou das pilhagens.
Divertia-se a diversão dentro do cangaceiro Conveniência. Na bodega de Mané Cachimbo, Conveniência despojado da estética do cangaço. Conveniência era só um matuto entre outros na bodega de Mané Cachimbo.
Na fantasia do cangaceiro Conveniência, a cabroeira era da música e da dança. O cangaceiro Jupiá soltava estes versos:
Mulher de cangaceiro vivedora tanto
E cada cantor dentro de verso ligeiro
Só desconhecia que no sertão havia
O canto que o cantor fazia de notas
Como a juriti se fazia dentro do canto
E visse essa noite coberta de estrela
E sendo amor não carecia de pranto.
O cangaceiro Paial carregava no bolso da memória a glosa e quis glosar. Sem palavras que pudessem completar mais de dez em resposta a um desafio, o mote não foi além deste dístico:
O sucesso do amor
Evitava desencanto.
O cangaceiro Gravatal, que batia a lâmina da faca no cano da espingarda, começou um solfejo. Disse lá, e disse dó, e disse mi, e disse sol. Soltou os versos:
A toada que se fazia
Só fazia por encanto
Só fazia por encanto
A toada que se fazia
Já trouxesse a arma
A guerra vai começar.
O cangaceiro Meleiro acompanhou o solfejo do cangaceiro Gravatal. E se foi no rito da faca no cano da arma:
O preá que se comia
Só comia por comer
E a luta que se fazia
Fazia-se só pra viver.
Soprava vento atroz
E zumbia parabellum
Não se aproximasse
Daqui, papo-amarelo.
O cangaceiro Campo Erê, também do Bando de Conveniência, fez força, puxou algum solfejo sem sucesso. Dançou, tropeçou. Distanciou-se da fogueira e do assado; de cócoras, disse os versos:
Voltando da terra sagrada onde Jesus nasceu
Briguei com o Sinédrio mandando ao cemitério
Primeiro um centurião coxo, caolho e banguelo.
O cangaceiro Rio Neguinho derramou a garrafa de cana goela abaixo. E bebeu outra garrafa, e seguiu mamado:
Nessa luta de Campo Êre, eu não fui; já podia ver.
Foi a luta que levou todo o mundo a beber até cair.
O cangaceiro Areia Branca, que se acomodava numa rede e puxava palha de milho seca do bolso, picava fumo, corria a língua na palha, batia nos bolsos à procura de fósforos, queimava o palheiro, procurava versos. Assim versejava:
Não caía em embolada
E nessas emboladas aí
Não ficava mais na terra
Agora meu jeito era sair.
Pescaria um irmão artista
Eu não saía de embolada
E eu não deixava de lutar
E lutava de arma na mão
E furava o bucho num já.
O cangaceiro Xaxim, tirava som das mãos, fazia a batucada. Batia os pés, batia o chapéu nas pernas, sapateava. Olhou o céu, e soltou a voz:
E eu cantava a festa
Que era o caminho
Hoje deixei em casa
Minha faca, meu fuzil
Irei amanhã cedinho
À casa de meu amor.
O cangaceiro Menino, mensageiro no Bando de Conveniência, que levou à casa do padre Velho o bilhete com a ameaça de extorsão à cidade no valor de 9:000$000 contos de réis; em seguida, jogou-se nas águas escuras do tributário do Panema. Este cangaceiro fez tremer a língua entre os dentes, e cantou:
A história falastrona
Fala e vive a história
Mastiga a sua farinha
E bebe cana há horas.
Ó, como eu era credo
Que bebia da história!
O cangaceiro Luzerna pulou da rede e aproximou-se do fogo aos pulos. E encangou um verso em outro:
E o mundo agora em guerra
Feroz brigava como satanás
E com mil diabos, essa peste
Fugiu doido, correu do inferno.
Um grito, ele não voltava mais.
O cangaceiro Maçaranduba, na viola, dizia versos em dueto com Sombrio, que era cangaceiro de acordeão. Maravilha era do canto; cantava e passarinhos paravam o canto, queriam ouvi-lo, talvez aprendessem um pouco.
O cangaceiro Maravilha soltava versos, e o cangaceiro Palhoça soltava rimas. O cangaceiro Major parecia forjado na cantoria e no aboio. Quilombo tinha o passatempo na poesia. Quilombo e o cangaceiro Piçarra cantavam lorotas.
O cangaceiro Ipuaçu, que vivia preso ao Bando de Conveniência, tirava de alforjes cantos. E fazia trejeitos com os braços e as pernas:
O céu escureceu num repente assustador
Cobriu-se céu de estrelas e uma me chamou
Não queria subir se deixasse aqui meu amor.
O cangaceiro Arvoredo, que era da cor da guerra, e o cangaceiro Tigroso, o de canto sincopado, bateram as mãos nas pernas. Cabras ensaiaram xaxado, fizeram gestos com os braços. Houve quem agitasse o corpo, girasse o chapéu no dedo:
Num triz se fazia uma viagem de Europa a Bagdá
Ontem passei em Jeremoabo e hoje terminei aqui
Deitado num belo oásis eu bebia comia pão e jabá
E amanhã por essa hora sonhava no Saara dormir
Nessa vida aqui no deserto se guerreava sem parar
Bebia vinho com os amigos roubado do velho sultão
Pelejava no mato invadia conquistava terra Maracá
Não deixava sertão pagasse quanto quisesse pagar.
O cangaceiro Vargeão e o seu filho, cangaceiro Vargem, próximos ao fogo à direita do São Francisco, cada qual com um facheiro. Fazia o fogo retornar da morte a cada vez que agitava no ar o facheiro, que se acendia em labaredas:
Cante seu canto daí
Que eu canto o meu
Ó daqui desse canto
O meu canto e o seu
Canto cantado canto
O canto mais cantado.
A noite penetrava na carne dos cangaceiros. Levantavam-se barracas entre paus e uma corda; entre eles, chitão grosso jogado por cima da corda ia ao chão onde era preso na terra por quatro ganchos e fazia uma empanada com duas quedas; no colchão de folhas se dormia. O cangaceiro sem instrução primária, Porã, grudou-se à versificação feito patativa-chorão:
E eu cantava o canto misturado
Com os canto dos companheiro.
Quando tombava a noite pesada
Tumbém escurecia cedo à vista
Se esquecia logo não alembrava
Grito de caititu e voz de seriema
Em quarqué parte nesse mundo
Tinha uma nova guerra em curso
Voava bala beija-fulô desprezado
E eu vi outra abeia sem sua hera
Vi inté um besouro sem cabresto
E o voo duma broboleta sem fulô
Se eu morresse no meio da mata
Da muié fosse grota e fosse gruta
Óia, óia, essa terra me fazia favor.
O bodegueiro Mané Cachimbo ocupava um lado e outro, na venda escura, prateleiras encardidas e cheias de garrafas. Cheiro de querosene e carne seca.
Mané Cachimbo atrás do balcão, nas portas da rua. Olhava o movimento.
A bodega de paredes grossas era rasgada por seis portas estreitas e altas fechadas com duas folhas de madeiras que se abriam ao meio, verticalmente, eram dois pedaços de portas. Uma tinta verde derramada nas portas.
Em cima da bodega foi construído um abrigo onde Mané Cachimbo vivia com os filhos e a terceira mulher. Comentava-se que a primeira fugiu da morte com um soldado, e assim evitou ter o mesmo destino da segunda mulher do bodegueiro, que morreu furada pelo ciúme de Mané Cachimbo.
Havia na bodega de Mané Cachimbo cheiro de rapadura. À frente do copo de vidro grosso, o cangaceiro Conveniência suspirou. Olhou as linhas nas mãos:
Teve alguma vez saudades da mãe? perguntou a Mané Cachimbo.
O dono da bodega não lhe respondeu.
O cangaceiro Conveniência se foi do banco na frente da mesa onde bebia, e atravessou uma das seis portas abertas na bodega, e ganhou a rua. Caminhou. Sumiu num beco. Os jumentos comiam capim.
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