CANGACEIROS NO SERTÃO DE ALAGOAS

Contos

Pro Marcello Ricardo Almeida

O chocalho de uma rês desgarrada anunciava chuva ao sertão. Santana coberta por nuvens pesadas d’água.
A natureza era monstruosa, e não a mente humana; esta só interpretava aquela. Entre penas, papéis e tinteiros, debatiam Polissíndeto, o Dr. Cicrano, o jornalista Lítotes e o padre Velho a máxima da natureza monstruosa, na redação do semanário O Liberdade de Expressão. Toda natureza era monstruosa, e não a mente humana; esta só interpretava o mal.
Me passe o coalho! exigiu com rispidez o Dr. Cicrano sentado à mesa de D. Xântipe e do marceneiro de muletas, o seu marido.
É de seu gosto, doutor, o café de Xântipe? perguntou-lhe o marceneiro de muletas.
Ali, o doutor queria esbaldar-se na fartura. D. Xântipe, que estava na mesa, foi à cozinha, não sem antes fazer um gesto ao marido que lhe acompanhou.
Na cozinha, o casal:
Esse sujeito em nossa mesa não vale o que o gato enterra.
Fale baixo, mulher! sussurrou-lhe o marido.
Ele encheu Santana com conversas de que eu era bruxa! explodiu.
Neste momento, o Dr. Cicrano chegou à cozinha de D. Xântipe.
Jamais! justificou-se o doutor. Eu sempre tive a senhora como uma santa curandeira. Aliás, todas as curandeiras em Santana – perguntasse ao padre Velho – eu as tratava como santas, jamais bruxas; no máximo, conhecedoras dos segredos de Asclépio ou Esculápio.
Não falei! reclamou D. Xântipe em alto e bom tom.
Não foi isso, D. Xântipe! justificou-se o doutor. Não me interpretasse mal, por amor a Santana. Eu quis dizer, conhecedoras dos segredos de Hipócrates.
Hipócrates! questionou o marceneiro de muletas, que olhava o doutor de baixo a cima.
O Dr. Cicrano olhou o marceneiro de muletas de cima abaixo:
Eu quis dizer que D. Xântipe possuía o sagrado talento da cura. Como se distribuísse a sua arte talentosa de curar Santana.
Que fazia com essa faca, mulher! berrou o marceneiro. O doutor era nosso amigo. Não matasse o Dr. Cicrano.
Na Roída, o Dr. Cicrano acordou aos gritos:
Não matasse o Dr. Cicrano!
Sempre tive a senhora como uma santa curandeira.
Ultimamente, o Dr. Cicrano dormia pouco. Varava noites e noites envolto em baforadas, papéis, pena e tinteiro. Era Darwin, Kierkegaard, de quem não se livrava, era Comte, porque acreditava no progresso da ordem e era positivista, era Bergson, por ser amante da intuição.
Não matasse o Dr. Cicrano! ouvia como se ainda estivesse no pesadelo.
Como expulsar o amigo, o cliente, Xântipe? impacientava-se o marceneiro de muletas com a mulher. Eu fiz as estantes do Dr. Cicrano.
Fizesse o caixão desse desgraçado! gritava D. Xântipe. Esse desgraçado queimou todas as curandeiras.
O Dr. Cicrano pulou da rede, enfiou os pés no xoboi, olhou os caibros, viu os morcegos, reconheceu a Roída. Estava em casa.
Correu, abriu a porta, deixou o ar pesado, buscou o sossego na aurora. E o Dr. Cicrano foi visto de costas a caminho do curral onde o vaqueiro ordenhava as primeiras vacas.
E, de repente, como se quisesse dissipar dos sonhos ruins, o Dr. Cicrano começou a recitar em árabe, em alemão, em latim, em aramaico, em grego. Isto não assustou o vaqueiro, ele estava acostumado com as coisas do coronel.
Foi o finado pai, morto enforcado, quem plantou aquela jurema na cerca de espinhas-de-peixe. Velha jurema curou feridas brabas que apareceram nesta terra, disse o Dr. Cicrano a si, como se tentasse não deixar escapar a memória.
O vaqueiro viu que o doutor perdeu o leite da bondade. Era sujeito amargo das unhas dos pés aos fios na cabeça, murmurou o vaqueiro.
Sertões eram lugares silenciosos onde os sertanejos aprendiam a ser só o silêncio.
O sertanejo não oferecia perigo, oferecia poesia. A natureza do sertão era um deus sem altar. Xiquexiques rasteiros ocupavam a terra; e as lajes recebiam bem os xiquexiques. Mandacarus se destacavam, na Roída. E era graças aos juazeiros que o vento soprava o canto do sabiá. O sabiá sertanejo era loquaz.
O Dr. Cicrano caminhava ao curral de pedras, onde as vacas mugiam por seus bezerros, e atrás dele o seguia a sombra da crueldade. O doutor carregava a tragédia por ter perdido a graça, nada mais nele era engraçado.
Nesta época, o Cel. Dr. Cicrano, que era dono das fazendas Desvalida e Roída, comprou a Fazenda Pelada, onde cultivava arroz no São Francisco, e a Faz. Desconfiança, na Mata, onde se derretiam os engenhos.
Em Maceió, distante a mais de 42 léguas de Santana, o silêncio quebrado pelo vaivém das ondas; praias extensas de areia branca e macia, todas ladeadas por coqueiros. Engenhos bambos das pernas; o senhor de engenho abandonava a casa-grande e entregava-se à decadência econômica.
No sol intenso de outubro, Polissíndeto, trazido do sertão pela Xepa, e um fotógrafo de Maceió, que interrompia a fala com os fortes e frequentes pigarros, conversavam na porta do Livramento, no centro da capital alagoana. A vida nem sempre foi som e fúria, disse Polissíndeto ao fotógrafo. 
O Liberdade de Expressão ouvia o fotógrafo cujas imagens exagerou com luz crua e sombras soturnas a existência de cangaceiros no sertão de Alagoas.
O papel não podia aceitar esse tipo de disparate! intimidou Polissíndeto o fotógrafo espremido na parede do Livramento, onde vidas foram tombadas.
Eu sou pai de família, meu senhor! desculpava-se o fotógrafo.
Não lhe perguntei nada.
Eu sou pai de família, compreende, arrimo de família, compreende, e com fotografia ajudo uma mãe velha doente, 15 irmãos, compreende, e um pai cego, compreende, além de mulher e filhos.
Como o senhor foi se meter numa embrulhada dessas!
Achei que fosse só um trabalho de rotina, não foi. Fui contratado pelo grã-doutor fluminense, grã-repórter, jornalista, superintendente do Jornal do Ser Tão.
Que confusão o senhor nos arranjou, senhor fotógrafo.
Juro que não sabia, meu senhor.
Não?
Não sabia que ele era sobrinho do Cel. Etc. e neto do coronel e Dr. Vil.
Não sabia?
Juro por todos os santos, no céu! pigarreou. Comecei a desconfiar quando ouvi do Cel. Etc. que o coronel e Dr. Vil, avô do jornalista, mandou dar um tiro na conversa.
O amigo puxava uma perna! notou Polissíndeto. Machucou-se?
Durante reportagem, na Fazenda Desvalida, acompanhei o Cel. Etc., disse o fotógrafo. Numa briga de bêbados, fui alvejado na perna, e ela nunca ficou completamente cicatrizada.
As imagens do fotógrafo mostravam sem contar sobre famílias que viviam ao redor do opulento Dr. Cel. Vil. Foreiros humildes, como se sabia, humildes e dependentes da terra espinhosa, mesmo com a assinatura de 1888.
Contou o fotógrafo a Polissíndeto:
Fotografei, naquele dia, na Desvalida, que currais e cercas, além das três serras, eram avassalados pela fome do opulento e patrimonialista sem credo Cel. Dr. Vil.
Essa família do opulento criava a própria moral. O opulento agia como se fosse superior, e talvez fosse. E o destino manifesto das famílias era só obedecer aos desejos do opulento, e talvez fosse.
Desobediência era paga com a vida, e talvez fosse. Família do opulento oprimia toda família que não fosse aliada à família do opulento, como era sabido – pigarreou o fotógrafo.
Polissíndeto o interrompeu:
As legendas em suas imagens vendidas aos jornais eram trituradoras.
Trituradoras, doutor? pigarreava.
O sertão não vivia em guerra a mando dos coronéis.
Conhecia famílias que tinham medo! pigarreava. Qual era a sua graça?
Polissíndeto! respondeu Polissíndeto ao fotógrafo. As legendas contavam as brutalidades nas imagens que o senhor vendeu aos jornais.
Compreenda...
Era crueldade a desonra! a voz de Polissíndeto abafou a voz do fotógrafo. Li sob as fotografias que, quando não se pagava com a vida, o preço era servidão pelo resto da vida; e a servidão era transferível, herdada pelos descendentes do cativo.
Cada vez que o fotógrafo abria a boca, Polissíndeto o interrompia:
Capangas nunca foram ajuntados por coronéis; vaqueiros não eram o que as legendas dos jornais exibiam, eles eram destemidos. As fotografias pintaram, porém, cangaceiros com sangue nas armas.
O fotógrafo pigarreou. Abriu e fechou a boca. Espremido no Livramento.
Li que os cangaceiros tentavam esmagar o poder de mando. Isto, ó senhor fotógrafo, o que as fotografias vendiam? De jeito nenhum. Aquelas suas imagens vendiam que os cangaceiros eram associados ao poder.
Polissíndeto não parava:
Cabeças cortadas, no sertão, eram tantas... Iguais as cabeças-de-frade. Decapitadas e zunidas sobre lajedos escaldantes, ó senhor fotógrafo!
O fotógrafo foi impedido de falar. Polissíndeto não parava:
O senhor fotógrafo acaso alguma vez soube que cangaceiros combatiam injustiças com injustiças? O meu pai era beato. O senhor fotógrafo precisava ouvir isto. Beatos combatiam injustiças com jejum, orações, procissões e promessas, e com as missões, e com a fé na vida eterna.
Polissíndeto emocionou-se ao lembrar-se do pai beato. Reduziu o ritmo e a voz ganhou tom melódico:
Sem o pecado não podia existir nenhuma moralidade cristã. E o beato temia a moralidade cristã. Beato não amarrava Santo Antônio ou flagelava-o num altar dourado por causa de sua ingratidão com as mulheres solteiras que queriam se casar.
E os beatos não maltratam mulheres, não as privam do bom casamento. Mulheres, ó senhor fotógrafo, não eram aquelas que aparecem nas fotografias vendidas aos jornais.
As suas imagens mostravam que as mulheres queriam fugir da canga dos pais; e era o pai quem botava a canga nas filhas e tocava a vida delas com uma vara de ferrão. Beato, senhor fotógrafo, não afogava Santo Antônio, não, senhor.
O senhor nunca ouviu falar que um beato pôs um santo de ponta cabeça. Ouviu?
Não senhor! conseguiu expressar-se o fotógrafo entre um pigarro e outro.
O senhor nunca ouviu falar que um beato foi amarrá-lo de cordas; queimar os seus pés.
Não, senhor.
Mesmo que a imagem fosse só uma pedra, acreditávamos, porque ali agia um espírito, ó senhor fotógrafo.
Sim, senhor.
O beato, às vezes ficava mudo num canto de casa, não comia por causa do obrigatório jejum em nome de pecados, no mundo. A vontade era entrar mar adentro. Começou o celibato que nem sacerdote; e calças cediam a vestido, nas cerimônias. O meu pai beato arrastava o povo em procissões.
Neste ponto do desabafo de Polissíndeto ao fotógrafo, a voz demonstrou que estava embargada. E Polissíndeto arrastou uma secreção da garganta como se arrastasse, com uma concha de quenga, uma água suja no fundo do pote. 
Nunca mais botei os pés lá! pigarreou. Fui na Desvalida, S. Polissíndeto, por ter sido levado à força de pagamento que recebi do neto do coronel e doutor, o repórter, e escritor, e jornalista, doutor, superintendente do Jornal do Ser Tão.
Fazer o que o senhor fez era ofensa grave! e atrapalhou a justificativa do fotógrafo.
Quê!
O senhor não tem religião? inquiriu-lhe Polissíndeto.
Tenho, sim senhor. 
Se tem, não parece. 
Juro por esta luz que me alumeia.
Por que o senhor vendeu fotografias mentirosas de que havia cangaceiros no sertão?
Por dinheiro! respondeu de chofre.
O senhor não temia pela sua vida?
Sim.
Tomasse rumo! zangou-se Polissíndeto. Se arrependesse e tivesse medo de tocaia, cabra.
Tomasse rumo o senhor! respondeu-lhe na mesma moeda.
És de onde, cabra?
Nascido e criado no Sítio Cthulhu.
Ao ouvir falar no Sítio Cthulhu, a boca de Polissíndeto murchou. Como se a cama dos dentes secasse.
Em Sergipe, Poço Redondo. Em Alagoas, Sítio Cthulhu.
O padre escreveu sobre a grota, covil de cangaceiros, no Sítio Cthulhu. O Liberdade de Expressão atenuou com todos os eufemismos disponíveis na pena do jornalista Lítotes sobre o que acontecia no sítio de ódios, rancores, barbáries.
O desejo dos cangaceiros ultrapassa todas as vontades. Foi a manchete.
Polissíndeto estava no passado. Viu o pai, que havia morrido, viu o avô já no reino da glória, viu o bisavô com quem conviveu até o dia de sua morte.
Não fazia muito, passaram por Santana os franciscanos. Meses depois, os nazarenos, que eram das graças divinas; espalharam-se, e multiplicaram os beatos, e condenaram os amancebados.
O avô e o neto Polissíndeto conversavam, no alpendre. O neto disse ao avô que viu na feira uma mulher cega, sem dentes, que tocava triângulo:
As almas de cabras acabaram-se no inferno;
E os corpos de cabras serviram de alimento:
Urubus comeram carnes, cães roeram ossos.
Isso? perguntou o avô ao neto.
Foi! respondeu-lhe.
Certeza? insistiu.
Não parava de tocá-lo! irritou-se.
Eu já fui a diversas feiras na vida! lembrou o avô. Essa eu já conhecia de outras feiras.
Conhecia, vovô?
Vi e ouvi essa artista que cantava isso desde quando eu era menino! disse o avô, na rede de balanço. Papai já conhecia e a conhecia o vovô.
Então, era a mesma artista! disse o pai de Polissíndeto, que veio participar da conversa, no alpendre da casa.
E não saía desse tom, o triângulo dava o preço, o povo na feira jogava moedas ao chapéu preso aos seus pés. Isto foi na feira com o sol alto.
Na madrugada de terça-feira vieram nas trilhas de pedras, terra seca e espinhos de roseta os carros de bois carregados de quartinhas, pratos, xícaras, bules e potes de barro. Nas primeiras horas do dia, a feira começou a receber os feirantes, que eram muitos, como sempre, e espalharam-se pelas ruas com anúncios dos produtos e as novidades e os preços.
Quando aconteceu o êxodo? quis saber o pai de Polissíndeto, que então acompanhava o entusiasmo do filho.
Eu vi uma menina que não tirava os olhos de mim, meu pai.
Viu?
Um vendedor de remédio veio como se fosse o pai dessa menina, e não era. Veio com poderes de curar doenças conhecidas e desconhecidas.
Números viam-se de longe e podia-se contar a curiosidade do povo em volta do vendedor de xarope. Deuteronômio era o nome dele; foi a primeira coisa a dizer, e o povo que lhe cercava não parava de chegar cheio de curiosidade. O povo queria saber o que sairia daquele xarope miraculoso.
Foi quando apareceu Josué, o nosso primo, e falou que conheceu juízes em sua viagem à Bahia. A feira foi ficando animada. Duma rua magra surgiu uma zabumba que pedia esmolas à santa.
Um mendigo estendeu a mão em direção ao cortejo à santa. Os tocadores de zabumba disseram a ele maia dúzia de putaria; e o pedidor de esmolas desejou que as doenças do mundo atingissem os zabumbeiros.
Os retratistas cochilavam sobre os retratos; os coxos deixavam o mercado de carne, outros saíam do mercado de farinha. Nas portas dos mercados, velhas portas altas e estreitas, os cochos de sal. Dependurada nas portas, a carne-de-sol.
Por que não parava com todo esse arrodeio? zangou-se o pai.
Falei, porque o senhor exigiu que fosse contado de gênesis ao apocalipse.
Falasse, só os evangelhos! exigiu o pai. Não alongasse o conto; contasse.
Polissíndeto parou, pensou, e, finalmente, disse que os evangelhos foram escritos por quatro evangelistas e, caso eu me casasse com a menina que não tirava os olhos de mim, meu pai, seria inevitável a multiplicação dos pães e dos peixes. Polissíndeto ficou em silêncio, e observava a resposta do pai, e via o jeito do avô.
Alguns vinham com sorte, outros nem tanto! riu o avô de Polissíndeto.
Vovô conheceu os escravos que fugiram da fazenda, que era do avô do coronel, porque vovô era do tempo da escravidão, e um escravo fujão retornou ao seu dono. Foi imediatamente levado ao tronco e espancado até a morte. Não foi isso, vovô?
Isso era lido nos Evangelhos! reclamou o pai de Polissíndeto, e perguntou se o filho estava apaixonado pela menina que não tirava os olhos do filho.
Houve naquela feira, quando o pai insistiu que lhe contasse como o filho acabou sendo ameaçado de morte, uma proposta de cavar uma botija, ficar rico, feita por aquela que parecia ser a filha de Deuteronômio, quando não era, porque Deuteronômio não tinha filha.
Botija? o avô arregalou os olhos, surpreso. Onde? olhava um e outro, sem resposta. Naquele cemitério, atrás da igreja?
O avô não parava de falar. Antes, tinha que dormir três noites no cemitério. Na primeira, nuvens escuras de marimbondos que derramavam trovoadas com ferrões; na segunda, todas as covas eram abertas; na terceira noite, sexta-feira de lua cheia, a lua clareava a escuridão e entregava a botija.
Bastava esperar à meia-noite; depois da madrugada, antes da aurora, vinha à luz num fogo-corredor e apontava o lugar da botija. Era só aproximar-se com a pá e o enxadeco e cavar o pote de ouro no chão do cemitério.
O avô só parou de falar ao ouvir o neto:
Começamos a nos tocar e, de tantos toques, eu e ela... Ela com a pele dos braços e das coxas encaroçada, carocinhos miúdos, arrepios. Vi o bico dos peitos tesos furarem o vestido de chita, que ela puxava e cobria as pernas.
O avô, que estava deitado, sentou-se na rede. Enterrou os pés no xoboi. Ouviu do neto Polissíndeto:
Depois que vi tantas coisas que jamais imaginei existirem, ela deixou que a sua mão ficasse em cima da minha mão. Foi um abraço, foi o beijo, um aperto, o cheiro. Alguma coisa aconteceu, papai.
O avô curvou-se em direção à voz de Polissíndeto. Este disse:
Ela escorregou-se na parede, deitou-se e não quis saber se o seu vestido de chita subia demais, e deixou as pernas à mostra.
O pai preocupado. O avô atento.
Eu vi, papai. Eu vi, vovô.
O quê!
O quê?
Ela viu o que eu via. Mostrou, com jeito, que tinha gostado daqueles gestos que eu fazia. Ela autorizou que eu lhe fizesse, e eu fiz.
O avô deixou a rede e ficou em pé. O pai sepultou o rosto nas palmas das mãos.
Foi bom, papai. Foi bom, vovô.
Bom? o pai perguntou.
Só? o avô quis saber mais.
Ali, eu experimentei toda a minha humanidade na humanidade dela.
Era pecado mortal! o pai sentenciou.
O filho, diante do pai e do avô, disse ter avançado nas classes de palavras sem cerimônia, e disse que lhe despejou substantivos sem demora, cobriu com adjetivos a menina que não lhe tirava os olhos, disse pronomes, e usou numeral, e driblou os verbos. Algumas de suas interjeições vieram à tona. E as conjunções se desentenderam. Preposições e advérbios tornaram-se etéreos na presença da mulher que não tirava os olhos de mim.
Era sábado em Santana. Chegava e saía o povo na feira. Vendedoras de corações-da-índia, coentro, cenouras, maxixes, chuchus, cheiro-verde, cebolas, cebolinhas, tomates. Passava com balaio equilibrado na rodilha sobre a cabeça, D. Xântipe. E vendilhões apregoavam laranja, banana, mamão, manga, caju.
Ela era uma flor que ele encontrara no deserto. Era como gozar o gozo da própria vida.
E quem foi essa ofendida? o avô questionou o neto.
Protegida do Cel. Hipérbato! o pai respondeu à pergunta de seu pai, ao ver a aflição desenhada no filho Polissíndeto.
Pai, o coronel podia me proteger? perguntou Polissíndeto, e ficou à espera de resposta.
Na frente do Livramento:
O senhor, S. Polissíndeto, veio de Santana a Maceió afrontar este ganha-pão dum fotógrafo?
Não me julgue precipitadamente, senhor.
O fotógrafo desistiu de conversar com Polissíndeto. E saía calçada afora, quando ouviu:
Vim atrás dos seus negativos, de suas imagens nos jornais. O Liberdade de Expressão pagava. Não queria ver as penas espalharem-se mundo afora.

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