A DIEGESE DOS CORONÉIS

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

O Liberdade de Expressão era lido na Espanha, Bélgica, Portugal, França e Inglaterra. O jornalista novaiorquino Brother Thomas veio de navio da cidade natal conhecer Santana, disse em carta, por ser fã do semanário. Saiu na seção das missivas dos leitores, no jornal do Dr. Cicrano. O padre Velho, responsável pela seção, promovia a cessão aos leitores.
Na sessão marcada pelo editor-chefe – o padre Velho – encontravam-se o padre, o dono de farmácia Polissíndeto e o jornalista pernambucano Lítotes na velha mesa de mogno de pernas altas. Quais as matérias da semana? quis saber Lítotes, e o editor-chefe lhe explicou.
Com a velha mania do padre Velho de publicar as suas injunções. Quando os amigos chegaram ao solar do Dr. Cicrano, onde O Liberdade de Expressão era escrito, o padre Velho escrevia com letras garrafais este título A Diegese dos Coronéis.
Na diegese, o padre Velho descrevia a história da manchete da semana. Com isto, a injunção deste número trazia personagens que narram sobre eles mesmos. A pena do padre separava a ficção da realidade que, ultimamente, andavam de mãos dadas nas construções narrativas.
Na saída do padre Velho do solar, a costureira Elipse o segurou pela mão e a beijou demoradamente, e o tio abençoou a sobrinha. Ela lhe disse que teve uma premonição com o marceneiro Zeugma morto a pauladas pelo cangaceiro Camundongo em lugar distante e ermo.
Oxi! surpreendeu-se. Rezasse mais, sobrinha. Fosse se confessar. A vida era cercada por ameaças e pecados.
Mas, tio...!
Eterna é a criança que existe dentro de seu coração, sobrinha. A criança é o renascer da vida. Vá em paz, e o Senhor a acompanhe. Deus está presente no coração das crianças.
Tio, mas...!
A função do pai, sobrinha, é educar as crianças.
O padre Velho descia a ladeira de acesso ao riacho Camoxinga sem saber como mandar um portador à Desvalida. O Dr. Cicrano precisava saber do aviso premonitório que o padre recebeu da sobrinha costureira, na saída do solar.
Desconhecia o padre que o marceneiro Zeugma, a serviço do Dr. Cicrano, foi jogado em cova rasa. Morto a pauladas pelo cangaceiro Camundongo.
O padre Velho não sabia como desfiar-se da conversa que teve com a sobrinha. A premonição da costureira Elipse era alinhavada nos miolos dele sem que ele conseguisse livrar-se das agulhas e linhas.
A costureira sobrinha do padre Velho chuleia sem que ele descobrisse um meio de mandar o portador Incontinenti à Desvalida. E neste labirinto corria sangrento Minotauro a devorá-lo com aquela conversa da sobrinha Elipse.
O assunto da costureira Elipse ia e voltava. E a cabeça do padre, que dizia a letra, a leitura e os cabedais, um redemoinho:
Os pecados capitais ainda eram sete? E os mandamentos, dez? Isto era o meio de como ensinar Ética?
Não fazia muito, as vidas guiadas pelos imperadores, súditos, marqueses, barões, baronesas... O que movia este mundo eram os carretéis da costureira Elipse? Os olhos de minha sobrinha costureira eram de ximbras.
Por orientações do Dr. Cicrano ao padre Velho, O Liberdade de Expressão começou a publicar matérias que inocentaram os cangaceiros. A linha do jornal desistiu da costureira Elipse com os cartazes espalhados “Salve a nossa cidade dos cangaceiros”.
O pecado do padre Velho era a realização de mudanças substanciais, e renovação definitiva da língua portuguesa; ele se autotorturava por isto. Latanhar as próprias costas com galhos com espinhos foliares, o padre Velho praticava isto de uma a duas vezes a cada mês.
Distantes do degelo da Antártida, cangaceiros a pé e a cavalo deixavam a Desvalida. Lutaram bravamente entre espinhos, na vegetação seca e retorcida.
Mulheres corajosas, homens valentes que desconheciam a covardia. A época era de pesado tropel de alpargatas de couro.
Firme cavalhada armava-se e enfrentava o sol do meio-dia. O Dr. Cicrano convencia cada oprimido de que a opressão fazia parte de sua realidade.
Sim, doutor! disse Camundongo, chefe de subgrupo.
Os cangaceiros espalhados.
O Dr. Cicrano convencia-os de que eles eram corpos vazios de alma.
Sim, patrão!
O Dr. Cicrano convencia-os de que eles estavam livres da lei e da fé.
Sim, meu patrão! disse Virgulino.
O Dr. Cicrano convencia-os de que eles estavam submetidos ao mando.
Sim, doutor!
Convencia-os desde a época de seu pai, que morreu enforcado, desde a época de seu avô que subscreveu a Constituição de 1891.
Sim, meu patrão!
No breu, os olhos deles pareciam refletir a luz das estrelas.
A imagem que se tinha dos cangaceiros era completamente errada. Saiu a manchete no semanário O Liberdade de Expressão. Imaginava-os como feras. Não era verdade, não era isto, dizia a matéria.
Os cangaceiros não eram e nunca foram a figura que se pintava do bicho de longos caninos e sangue nos olhos. Puro folclore; não no sentido etimológico.
Charges eram usadas no periódico com o objetivo de comercializar lendas urbanas a respeito da caatinga e dos bandoleiros americanos, nesta parte das Américas. Depois, disse Polissíndeto ao jornalista Lítotes, essa gente não era ente de outro mundo, não era gente agachada ao lado da vítima a sugar-lhe os derradeiros instantes de vida. 
Numa encruzilhada próxima a Santana, cabras muniam-se até os dentes com armas e balas novas. Calados como se sonhassem silentes.
A planície de branca vegetação, pedras, espinhos de roseta. A dominação era o silêncio e não a ânsia dos dominados se tornarem dominadores.
Clientelismo, chefe de subgrupo, bebia em cantil com outros cangaceiros debaixo de pé de umbu onde se encontravam cabras de outros subgrupos. Eles chegaram de um fogo cruzado; e até ali todos venceram léguas tiranas. Fizeram as suas guerras. Buscavam alimento, água e riqueza.
Muitos, antes de alcançarem a encruzilhada no sovaco da serra, foram várias vezes abraçados pelos espinhos. No fim do calor do fim da tarde, os subgrupos recuperaram o fôlego.
Eles falavam do enfrentamento às volantes, e riam, contaram às vezes nas quais abriam caminho à bala, e riram, os macacos que tombavam, disseram. A vida que estava viva hoje de manhã já não estava agora à tarde. 
Aves voavam em círculos feito balas. Altas, distantes do chão. Cansadas de voos, elas ocupavam galhos; todos altos, longe do chão.
Os cangaceiros davam nomes fictícios de coisas que ouviram falar, e as ignoravam completamente:
Aquele era Privilégio! disse um cangaceiro miúdo, pesado de armas.
Aquele outro Filhotismo! disse a cangaceira com ele, e riu.
O miúdo tinha óculos escuros, redondos. Duas espingardas em X presas às costas. Três revólveres – um par atravessava o cinturão cheio de balas, e no coldre de braço havia outro. Trazia no embornal balas da Luger.
A cangaceira do miúdo trajava-se de alegria. Com a sua indumentária de guerra, ela evitava os vestidos de seda, não dispensava as luvas com estampas florais. Coberta de joias e uma arma de cano curto. E broches de ouro alumiados de sol.
O pai dele era o Sr. Nepotismo! concluiu o miúdo.
No galho mais alto, Preconceito bicava Conceito.
Compadre cochilava, cansado de suas caçadas, das carniças obrigado a roê-las. Ao lado dele, não tão próximo porque seria ameaçada a estabilidade entre aparentados, observava o mesmo lugar o Protecionismo sempre de olho em tudo o que acontecia.
Os subgrupos contavam piadas e riam. Os cangaceiros de Conveniência na farinha com carne de caça, carne-seca distribuída entre eles. Cortava a carne à faca, à unha.
Ameaçava anoitecer. Dentes arreganhados eram vistos no alto da serra. E as gargalhadas espalhavam-se pela planície de pedras soltas na terra seca, e o vento carregava os espinhos de roseta.
Cabras deram fé de que, na última luta, Assíduo ficou de fora.
Tombado? quis saber Conveniência, o Cangaceiro do Rei.
E cabras moeram o tema:
Ferido na grota? 
Assíduo fazia parte de um subgrupo, aceito no bando de Virgulino, que jogava cartas com o Dr. Cicrano, na Desvalida, onde apostam cachaça doutros países, onde traçaram as empreitadas de guerra. Nunca houve compra e venda entre eles; acordaram sobre determinada coisa ou direito reivindicatório. Assim, cabras realizavam uma obra segundo as suas instruções.
No sovaco da serra, veio anoitecer na encruzilhada. Caiu a noite, primeiro sobre as folhas do umbuzeiro plantado na encruzilhada próxima a Santana. Os cangaceiros armaram os seus de dormir, e os cães que os acompanhavam, em absoluto silêncio, olhava-os com reverência e medo.
Mulheres de cabelo curto, cabras de cabelo longo. As mulheres no bando em vários vestidos, cabras cruzavam-se com as armas de fogo, alforjes, cantis, munições, fura bucho. Riam.
Nascia neles a vontade do canto, o desejo da dança. Resumiam a vontade e o desejo na atenção se vivos quisessem permanecer. 
Na noite densa, todos eles pareciam peixes fora d'água. Seres fósseis tão antigos quanto os dinossauros.
Na madrugada, uma cangaceira pariu.
No extremo silêncio, a criança veio ao mundo. Sem gemidos da mãe, sem choros do machinho, disse o pai que o cobriu em limpas vestes. Mais tarde, um coiteiro levaria o recém-nascido à rua.
No princípio, a jovem mãe resistiu em doar o seu recém-nascido. Um grupo de mulheres a convenceu:
O amor cega quem ama! as mulheres experimentadas disseram à jovem mãe. Como cega quem desama. O amor envenena como quem tropeça e cai no precipício a quem se engana. O amor tão cobiçado por quem se faz tantos sacrifícios, porque o amor sempre tem pressa. O ciúme na paixão interrompe vida a própria vida.
Em Santana, Iabassê descia da Xepa em paletó, chapéu e uma gravata borboleta. Chegava de Maceió; deixou o Recife de trem. Trazia com ele um médico a Santana, o Dr. Agibonã, que propôs ao capitalista Bé do Algodão criar uma imprensa revolucionária.
O capitalista estranhou aquele adjetivo. O Dr. Agibonã insistiu na inovação e, ao invés de saltar de banda, apresentou a Bé do Algodão a originalidade com a Gazeta de Santana.
O Dr. Agibonã trazia o nome do novo jornal à cidade na algibeira. Mostrou o projeto, disse onde imprimi-lo no Recife, conhecia um parque gráfico. Era com a Gazeta que poderíamos, disse ter falado com o engenheiro responsável pelos primeiros estudos, ressuscitar a perenização do Panema.
E seria com a nossa Gazeta de Santana, disse, que iríamos rivalizar com O Liberdade de Expressão. O capitalista tirou o chapéu de massa, levou a mão à testa, desceu a mão à boca, coçou demoradamente o bigode – como se visse futuro no adjetivo trazido pelo Dr. Agibonã.
O uso do adjetivo não era tão ruim na narrativa! disse o Dr. Agibonã.
Não? perguntou Bé do Algodão. Não era isso que eu costumava ouvir.
O adjetivo não era tão ruim quanto se falava.
Ebômi abria a porta do comércio. Arrastava à porta do mercado sacos de 60kg com farinha de mandioca.
Ãglória, a lavadeira que voltou do Rio a Santana e abriu a primeira escola de francês na cidade, casou-se com o comerciante Ebômi.
Vamos aumentar a demografia santanense! a lavadeira que voltou do Rio e abriu a escola de francês propôs ao comerciante. Ele demonstrou felicidade ao ouvi-la. Vamos estimular a natalidade em Santana!
Ebômi enterrou a mão sob as roupas de Ãglória, foram tantos beijos, logo chegaram os abraços. E abraçaram-se, e sonharam em outras línguas. Santana começou a aumentar a população na época de Ãglória e Ebômi.
Um camponês de acentuada ignorância, infinitamente rústico e simplório, entrou em Santana com o filho recém-nascido do casal de cangaceiros. Apurado em seu traje peculiarmente ridículo. Usava perfume de fragrância nauseante.
Como a criança não se sufocava debaixo daqueles panos imundos? disse a costureira Elipse ao vê-lo passar atrás de seu vaidoso asno que o chamava de Esperança-de-Nunca-Mais-Empancar.
A costureira Elipse trazia de dentro de casa as suas gaiolas e as deixava em pregos na parede na frente de casa. Santana acordava àquela hora.
Os canários recebiam o afeto da costureira Elipse, que os tratava feito gente. Dois cardeais-do-nordeste festejavam o banho de sol.
O homem da roça enveredou-se ladeira acima. A todo o tempo caminhava atrás de seu animal, apressadamente.
Presunçoso Esperança-de-Nunca-Mais-Empancar, comparado à música, lá ia à frente do dono, casas acima, num adágio saracoteiro.
Eita, burrim dus oitchu d’iabu! vociferava o janota camponês, sob o olhar de censura da costureira, vestido de um alinhado e branco terno de linho e botinas apertadas, reluzentes como as novas.
Iabassê era pai de Ebômi e sogro de Ãglória, que voltou do Rio e deu asas à primeira escola de francês em Santana. O casal morava com Iabassê, que era viúvo e cortejava Abiã.
Em Santana, tijolo por tijolo trazidos numa carroça de burro por Iaô, irmão de Abiã, que era a mais nova da casa, erguiam quatro predes no Miado da Gata, a rua nova parida próxima ao Panema. Abiã trabalhava de pedreira, e começava já nas primeiras horas do dia com o irmão Iaô, que tinha mais de dois metros de altura.
O asno Esperança-de-Nunca-Mais-Empancar parou na porta residência do casal Prosopopeia e Polissíndeto. E o homem da roça, com a criança envolta em panos, bateu palmas.
Trazia, senhô, este bizunguinha ao senhô, por ordens...! disse o janota, e lhe entregou prata, e lhe entregou ouro, e lhe entregou um bilhete que era a cara das injunções do padre Velho.
Este texto que Polissíndeto recebeu das mãos do homem da roça oferecia recomendações e instruções de como educar a criança recém-nascida. O bilhete explicava como criar o menino que o janota, atrás do asno Esperança-de-Nunca-Mais-Empancar, chamou de bizunguinha.
Criá-lo-ia Polissíndeto e a sua esposa Prosopopeia.
Na cozinha, Prosopopeia fazia o café da manhã quando o homem da roça de paletó e chapéu bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Gemeu a porta.
Prosopopeia com o seu vestido composto na altura dos joelhos, sapatinho baixo, decote em V. Disfarçadamente mostrava as pequenas saliências. 
A criança era um pacote enrolado. Polissíndeto, com um sorriso discreto, botou a cara – ele e a mulher – no olho da rua. Ambos viram o pequeno embrulho nos braços do homem da roça de paletó e chapéu.
Misto de felicidade e medo. Os olhos fixos no futuro.
Não houve felicidade maior de Prosopopeia e Polissíndeto ao receberem nos braços aquela criancinha tão miúda. O modelo sertanejo era o casal ter uma dezena de filhos, no mínimo. Faltavam ainda, a Prosopopeia e Polissíndeto, nove crianças iguais àquela. Nem que isso exigisse perder o maior órgão do corpo e ter que esperar que nascesse outra pele. 
Na semana, O Liberdade de Expressão publicou que os cangaceiros não eram aves de rapina com garras ferozes e bico de navalha. Eram dóceis como toda a gente sertaneja.
Na Desvalida, os homens surgiram em trajes brancos, e circulavam pelos corredores. Eram todos coronéis. O dono da Desvalida, o Dr. Cicrano, era unha e carne com o Cel. Etc. que mandava sem ser mandado.
De quem era filho? o coronel sempre perguntava. Quem era o teu pai?
Toda a aristocracia sertaneja se encontrava naquele banquete. Não eram filósofos num debate sobre a origem do Amor. Todos eram patrimonialistas num debate sobre como fatiar à vontade; quem tivesse força ficava com o maior naco.
Na casa-grande, os coxos serviam em bandejas de prata. As mulheres corriam. Os convidados chegavam a cavalo; acompanhava-os o padre, cabras, jagunços e capangas. A região lia na cartilha do Cel. Etc., se quisesse manter a paz.
Prevaleciam os interesses do coronel da vez. Sempre a mesma história.
Em cada fazenda um velho e bravo que se apresentava sereno como a pomba e ardiloso feito a cobra-coral. Em toda a parte, um espia trabalhava; trazia e levava informações à fazenda, onde o coronel se balançava numa rede.
O povo recebia os coronéis de braços abertos numa imitação à divindade que pendia num madeiro. E eles retribuem com apertos de mãos, tapinhas nas costas, abraços.
Por que o Jornal do Ser Tão resolveu me atacar? quis saber o Cel. Etc. e fiquei surpreso e sem resposta. Eu conhecia o teu pai, conhecia teu avô, conheci a tua avó.
Quando o jornal fez matéria, ofendeu o coronel? esta foi a minha tentativa em trazê-lo a um campo neutro, sem os seus capangas que acompanhassem a conversa.
Não era a minha intenção falar diretamente com o dono do jornal, disse o Cel. Etc. Eu queria falar antes com o superintendente.
Agradecia, Cel. Etc.! reconheci. Obrigado pela deferência.
Na opinião de Vil, meu irmão, desse um tiro nesse assunto.
Um tiro, coronel?
Meu filho! disse-me o Cel. Etc. ao apoiar o braço gordo em meus ombros. Esse nosso mundo era governado por nós. Tudo o que acontecia ou deixava de acontecer, acontecia ou não acontecia por causa de gente como nós.
A casa da fazenda ficou lá atrás. Havia jagunço em toda a parte. Um ou dois coiteiros. Os beatos eram rivais de todo este quadro. Distanciamos eu e o Cel. Etc. acompanhados pelos capangas armados, que o protegiam.
Meu filho! depois de soltar duzentas pestes e seiscentos diabos. Deram com os burros n’água todos os falatórios de que sertão era isso, era aquilo.
O silêncio viajou no descampado. Ouvia-se o canto dos pássaros. Aroeira e baraúna distantes. O curral de pedras abrigava o gado.
Falatórios, meu filho, eram desonestos. E eu conhecia o teu pai, meu filho, conhecia teu avô, conheci a tua avó. Não passasse embaixo de escadas. Tinha medo? Deveria. Ouviu falar em lobisomens?
Ouvi.
Ouviu falar em cemitérios onde se via fogo-corredor?
Ouvi.
Essa gente estava cheia de nove-horas! cuspiu o Cel. Etc.
O poder do coronel vinha de Campos Sales. E os gaviões abriam as asas. A Desvalida cercava-se de cangaceiros quais arames farpados.
O Cel. Etc. palitava-se. Não havia mundo que superasse uma buchada de carneiro, uma carne de bode, o sarapatel, a cachaça de jabuticaba.
Eu conhecia, meu filho, o teu pai, conhecia o teu avô, conheci a tua avó. Deixasse governar quem fosse acostumado. Ademais, o teu valor aqui, tão longe do Rio, tão longe de casa, era o de redigir a ata e fazê-la circular.

ATA DE ACORDOS DOS ACORDADOS NESTE TEMPO DE DESASSOSSEGO
Reunidos neste dia, na Fazenda Desvalida, o Coronel Doutor Cicrano, o Coronel Sinestesia, chefe no município de Gramas; o Coronel. Símile, chefe no município de Tapas; o Coronel Metonímia, chefe no município do Ui; o Coronel Zeugma, chefe no município de Semântica Tardia; o Coronel Silepse, chefe no município de Léxico Encarnado; o Coronel Poli, chefe no município de Pragmática das Pedras Verdes; o Coronel Hipérbato, chefe no município de Vocábulo; o Coronel Etc., chefe no município de Faca Cega; o Coronel Doutor Vil, chefe no município de Aroeirinha; o Coronel Popeia, chefe no município de Tessitura de Acordo; o Coronel Antítese, chefe no município de Figura Roxa; o Coronel Paradoxo, chefe no município de Paráfrase; o Coronel Perífrase, chefe no município de Escritura Real; o Coronel Hipérbole, chefe no município de Nova Realidade; o Coronel Clímax, chefe no município de Reconhecer; o Coronel Analogia dos Perdidos, chefe no município de Mocó; o Coronel Elipe, chefe no município de Paradigmas; o Coronel Retórico dos Enforcados, chefe no município de Parâmetro Pios das Pedras; o Coronel Morfossintático, chefe no município de Carvão; o Coronel Eu, chefe no município Serra dos Elefantes Azuis; o Coronel. Lito, chefe no município de Fonética Abecedário; o Coronel Oxímoro, chefe no município de Barqueadas; o Coronel Cordeiro da Paz Carneiro, chefe no município de Poço da Lama; todos comprometidos a se converterem à Justiça, ouvirem mais do que serem ouvidos, e agradecerem mais, e recusarem benesses, e ajudar sem esperar ajuda, e reconhecerem nos outros a irmandade sem nenhum direito em lhe maltratar, e serem limpos, e serem protetores, e praticarem a solidariedade não apenas em dias santos e feriados, e conhecerem os dias santos, e participarem de todas as comemorações religiosas, e zelar pela terra e tudo o que nela habita, e confessarem pecados, e se arrependerem por tê-los cometidos, e praticarem o bem sem desejar o mal, e perdoarem e não esperar recompensa, e comungarem, e abraçarem os amigos e os inimigos igualmente, e contribuírem com a educação do povo de nosso Senhor e de nossa Senhora, e valorizarem tudo o que existir no sertão. E, assim, fica acordado entre os coronéis presentes, que subscrevem este resumo do que foi discutido nesta sessão, na qual se convencionou em assembleia que nenhum coronel assentaria sobre a vida de outro ou os seus apadrinhados; ficou também de comum acordo, como lavrado e subscrito na presente ata: nenhum coronel apadrinhou cangaceiro nem jagunço ou cabra e não mantinha capanga com finalidade oculta em praticar vilanias; era parte deste contrato entre coronéis a solidariedade entre as famílias nesta data e neste lugar reunidas e sob a proteção de nosso Senhor e de nossa Senhora; ato contínuo o de fazerem leises sobre o que foi firmado pelas nossas mãos e vontades, na presença do honrado e venerado Doutor Cicrano, primo do Doutor Sicrano, neto do doutor que subscreveu a Constituição de 1891 e foi amado por todos. E, em ato contínuo, acordo submetido ao voto, votaram unânimes, numa demonstração de que unanimidade não era desassossego. Eu, superintendente geral do Jornal do Ser Tão, redigi esta ata e a subscrevi; igualmente subscreveram os coronéis supracitados e subscritos, neste ano de nossos Senhores.

O Liberdade de Expressão publicou a ata redigida pelo jornalista do Jornal do Ser Tão, que era impresso no Rio. No solar, o padre Velho, cansado da luta, reunia textos injuntivos, a serem publicados no próximo número do semanário O Liberdade de Expressão.
O padre Velho ouviu tiros na rua, quando realizava pesquisa na biblioteca do Dr. Cicrano. Espiou por uma das janelas no solar onde o jornal era escrito por ele, o da farmácia, Polissíndeto, que era um pai de primeira viagem, e o jornalista pernambucano Lítotes, cujo único filho o renegou.

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