SANTANA COBERTA DE PENAS

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

A epiderme do sertão era a palavra. O mundo aprendeu a comunicar-se pelo texto, e os documentos ligavam o presente ao passado.
O jornalista escrevia o seu texto como se orasse, e pedia sorte à sua viola. Vivia numa época estranha. O seu trabalho tinha um preço e, no entanto, a sua escrita era graciosa.
As células morriam e renovavam-se, não eternamente, e a sua divisão era sempre limitada. No pescoço vincado se encontrava a idade do jornalista. Veio do século passado, viu coisas que Santana duvidava existirem. 
Estavam no mesmo hotel o jornalista Lítotes, que veio do Recife, e os que vieram de outros destinos, Apóstolo, Apóstrofe e Apóstrofo. Um na tapioca com queijo coalho, outro diante de um prato de cuscuz, o último na coalhada. Lítotes palitava os dentes e via a feira que tomava a rua.
Caminhou a feira desde a mais longínqua eternidade até chegar aos dias nos quais se encontrava. Em toda a parte, cordéis espalhados sobre toldas, chás em pequenos montes de folhas no chão de barro, buracos e pedregulhos.
Feiras representavam aurora de rosadas maçãs que acordavam o dia. As civilizações que se perderam no tempo criaram as feiras. Em Santana, a feira foi criada pelo avô dos primos Dr. Cicrano e o Dr. Sicrano.
Beijos eram roubados na feira, os chapéus levados pelas lufadas, moças perdiam-se e outras encontravam-se. Passarinhos em gaiolas, rezadeiras com olhares pios.
Couro curtido vendido e comprado na feira. Os tangedores de burro bravo. Vaqueiros encontravam-se bêbados. Carro de boi e o seu canto. Bichos miúdos, bichos graúdos.
Na escola até ontem o professor de matemática puxava o cabelo de aluno que desconhecia as quatro operações. Os dedos fortes do professor prendiam um chumaço de cabelo no fim do pescoço e levantava-o, o aluno, sentado, ficava nas pontas dos pés; os colegas riam um riso abafado na pressão do castigo, e os maus-tratos persistiram no convencimento de que somar significa adição e diminuir subtração e vezes multiplicação.
A professora de português, na sala ao lado, arremessava tocos de giz, apagador, distribuía reguladas nas mãos de aluno que desconhecia, salteadas, as classes gramaticais. Beliscava-os.
A irmã de Anistia, professora Amnésia, que trabalhava na mesma escola, lavava a boca de aluno com sabão cada vez que tropeçasse em paroxítonas, oxítonas e proparoxítonas. Ela apertava o aluno até este soltar todos os ditongos orais decrescentes e crescentes de cor e salteado, e também os ditongos nasais.
O sorriso do palhaço era o choro! repetia a cada manhã no refeitório do hotel o jornalista. O seu alimento tinha um preço, velho amigo, era chegada a hora do trabalho, tirasse a sua música das cordas na viola.
Só a feira era livre. O povo na feira demonstrava a sofreguidão de estar vivo. Todos se achavam na feira.
Disfarçados, cangaceiros e gente de volante misturavam-se nas feiras ao lado dos carteados de porta de bar, nas gargalhadas enormes que estremeciam os alicerces do sertão. Gritos, facas, facões, repentistas, aboiadores, poetas selvagens, galinhas, porcos, bodes, cabras, ovelhas, ovos ocupavam as bancas nas feiras coloridas pelo sol.
O dia de feira era festa insuperavelmente frenética na alegria contagiante entre beatos, jagunços, capangas, cabras, religiosos, messiânicos, agregados dos coronéis, partidários fanáticos de agremiações. Todos parentes e aderentes.
Familiaridade em qualquer lugar. Primos e primas, namorados, tios e tias, cunhadas, adiante cunhados que se cumprimentavam, combinava-se o café em família, avós e pais, comerciantes, os militares, fazendeiros, desafetos. Lambe-lambe perambulava nas feiras, cachaceiros.
A rua oferecia lupanar às escondidas. Psiu! avisava o Psiu. Ali embaixo.
Garrafas de aguardente, batedores de carteira, comemorações durante o dia de feira bêbada de fome, outros bêbados de lascívia. Os saberes, os sabores povoavam os frequentadores das feiras.
Urubus sobrevoavam o sertão. Lítotes palitava os dentes. E a rua coberta de feira. Crimes tinham origem na feira, disse o jornalista Lítotes em sua coluna no semanário O Liberdade de Expressão. Crimes de morte matada, de homicídio por encomenda, crimes por amor e desamor.
Muitas mortes eram causadas pelo sucesso, porque não havia intenção de matar; ocorreu por caso fortuito ou força maior. Convencidos os familiares da vítima de que a morte foi sucesso, não havia culpa sobre a morte.
Um sertanejo era caracterizado por seu interesse à feira, o jornalista disse. Na feita, palitava os dentes, o sertanejo ganhava vida. Ei-la feira onde as casas escondiam os telhados, as ruas escondias as calçadas, os adultos escondiam as crianças.
O maior homem do mundo caminhava nas ruas de Santana. Atravessava a feira. Lítotes assistia a feira do hotel. O maior homem do mundo prometeu ao povo mostrar onde se escondia o menor homem do mundo, e agitava uma caixa de fósforos. O povo esperava em volta o maior homem do mundo expor o menor homem do mundo. Ele jurava por Santana tirá-lo da caixa de fósforos. Cantores, cegos, mendigos nas ruas.
A vida na cidade era passagem, este foi o comentário do pernambucano na mesa do café da manhã. No hotel onde estava o jornalista Lítotes, os aromas da cozinha embriagavam os hóspedes por toda a eternidade.
O hotel pertencia à família do Dr. Cicrano. Próximo ao templo de Santana, onde padre Velho trabalhava, e próximo ao solar do Dr. Cicrano onde era feito O Liberdade de Expressão.
Os sorrisos sem dentes, os apertos de mãos, tapinhas nas costas, alguns olás e os bons-dias, como iam, como vinham, as mulheres apressadas, homens parados na rua jogavam conversa fora. Crianças carregavam coisas na cabeça, os boizinhos e o carro de barro de louça que encantavam os meninos, todas as mobílias da casa em barro de louça que encantavam as meninas, o comércio, o embolador, e o homem que falava com frascos de remédios atraía a atenção do povo em torno de si. O músico que tocava realejo, rabeca, o vendedor de carne e tantas verdureiras com variedades de temperos, que foram amigas da finada D. Xântipe e do finado marceneiro de muletas, que morreram queimados vivos.
A feira no sertão. Este acordo tácito era cumprido de geração em geração.
O triângulo da mulher cega com a sua voz de rabeca anunciava a chegada do fim do mundo com os ataques ferozes do Cangaceiro do Rei:
O coração da feira sangrava outra vez, mamãe.
O espírito da feira não suportava a dor na alma.
Ó mãe, mesmo se a vida fosse logo abreviada,
O rei dos homens não impedia uma vida assim?
O triângulo falava na feira, mãe. Mamãe viesse.
Sentada no fundo das águas ao lado de papai.
Sem demora viesse e visse o labafero na feira:
Fratricídio, parricídio, matricídio, infanticídios.
Mãe, nunca perguntasse o porquê. Só viesse.
As almas de cabras se acabavam no inferno.
E os corpos de cabras serviriam de alimento?
Urubus comeram carnes e cães roíam ossos.
Era o desejo do céu sobre as nossas cabeças.
O Cangaceiro do Rei não trabalhava sozinho,
Carregava sempre com ele a legião de cabras.
Não parava nunca o trilintintim no triângulo da mulher cega com a sua voz de rabeca. Anunciava a chegada do fim do mundo.
No refeitório do hotel, o jornalista Lítotes, em uma cadeira de palhinha, lia, com perna cruzada, o Jornal do Commercio. O cangaceiro Conveniência, o jornal trazia matéria, que era o Cangaceiro do Rei, atacou três cidades no Rio Grande do Norte, duas no Piauí, cinco na Bahia, seis em Sergipe, ele e o bando cruzaram a nado o São Francisco, o bando sumiu no sertão de Alagoas.
Na cozinha do hotel trabalhavam Delírio e Dopamina em excesso. Lítotes fumava fumo de rolo no cachimbo de barro.
Delírio e Dopamina em excesso, não paravam. A onipresença planetária da dupla na cozinha e na copa do hotel, pois a função era oferecer aos hóspedes incontinenti satisfação, ou isto ou a rua com uma mão na frente e outra atrás. 
Rua era sinônimo de vila, de povoado, de lugarejo, de vilarejo, de adjunto de casas, de sede, de cidade, escrevia o padre Velho porque se regozijava com marcadores linguísticos. Com as suas injunções, o padre preenchia colunas no jornal do Dr. Cicrano. Explicava igual nas homilias o passo a passo.
O sertanejo era atraído pela rua, era atraído pela feira feito a abelha pelas flores. O colorido nas feiras engrandecia o sertão. Cada sertanejo era, antes de tudo, amante das feiras.
Bancas tomavam as ruas de improviso e, irregularmente, logo todo o lugar era feira. Saía o povo da roça, ia à rua; saía do sítio, da fazenda, de casa. Era a beleza da feira.
O avô dos primos Dr. Sicrano e Dr. Cicrano foi o primeiro a instituir a feira em Santana, a cidade sabia. A sua fortuna em terras, carnes e grãos precedia a sua assinatura à Constituição de 1891.
Na frente do hotel da família do Dr. Cicrano foi instituída a feira. Livre por ser único dia em que todos tinham a liberdade em circular. Eram comercializados alimentos, artesanatos, produtos agropecuários, manufaturados, extrativistas.
O Liberdade de Expressão, no centésimo número, trouxe as imagens da feira livre em Santana. Três linhas após o título da matéria (Feira Livre no Sertão) a síntese que respondia o que, onde, como, quem, quando, por quê. Nós seres humanos oscilamos entre consciência e desrazão, escreveu o padre Velho.
Não conseguíamos viver sozinhos! o padre Velho reclamou ao seu amigo Polissíndeto. Solidão provocava patologias.
Polissíndeto repetiu o substantivo feminino patologia. Na manhã de feira, no refeitório do hotel o padre Velho folheava O Liberdade de Expressão.
No hotel, a ordem do patrão e da patroa era a de que os desejos dos hóspedes fossem imediatamente correspondidos. O hotel funcionava graças a Dopamina, faz-tudo, que conduzia Delírio, o cozinheiro.
Dopamina era barata ao hotel, que permutava o seu trabalho por casa, comida e roupa lavada. A casa era um quartinho insalubre nos fundos do hotel – onde Pornografia, filha de Dopamina, nunca se fartava –, a roupa lavada no rio (Panema permitia) junto às roupas dos hóspedes, e a comia era o que sobrasse.
Precariedade, contratada sob as mesmas cláusulas de Dopamina, fazia a limpeza, Delírio na cozinha e Dopamina outra faz-tudo. O trio seguia ritmo diário.
Padre Velho merendava no hotel. O clérigo cumprimentava Recompensa, que ocupava o caixa, e Cotidiano responsável pela recepção. Epifania, uma das filhas do Dr. Sicrano, respondia pelo hotel de Maceió, o seu domicílio. Ela vinha esporadicamente a Santana, e exigia que a cada semana o malote seguisse na Xepa à capital com o capital do período.
Na feira, desocupados criavam apelidos. Auau! gritava um. Auau! e seguia o grito do sujeito oculto. Auau! Auau era a mãe! Eletricidade! explodiam gritos. A resposta voltava em vilipêndios à mãe de quem gritou Eletricidade.
Outra voz: Juribeba! ecoava a reação crivada por vilipêndios contra a mãe de quem gritou Juribeba. Saboneteira! berrava-se nas portas dos bares, homens inúteis e sem compromisso com a verdade. Explodiam gargalhadas, e repetiam os apelidos.
Novos berros nas portas dos armazéns: Brilhantina! reação noutra chuva de impropérios. Volta Gorda! Volta Gorda era a mãe! Noite Sem Lua! Noite Sem Lua foi aquela que te pariu e aquele que te amassou.
Comida era vendida em toldas. Quem tinha fome e dinheiro sentava-se diante da barraca num banco rústico e era-lhe servido prato com nacos enormes de carne, feijão-de-corda, coentro, cebolinha, cominho, arroz, farinha, cebola.
Escambo à vontade, na feira. Pessoas negociavam pessoas. O Liberdade de Expressão, o Jornal do Ser Tão e o Jornal do Commercio tinham que porem, porém, um fim no cangaceirismo do cangaceiro Conveniência, o Cangaceiro do Rei.
Foi tanto latim do padre Velho que, não demorou, Santana estava falando: Futurum incertum est, finis semper prope est!
A cidade não parava de repetir o que ouviu em sonho...
...E lhe apareceu em forma de canção. 
A idade o havia atingido, ó amigo Polissíndeto! o jornalista Lítotes disse.
Futurum incertum est, finis semper prope est!
As lembranças se foram carregadas pelas forças dos vendavais, ó amigo Polissíndeto. Era o seu aniversário e o acompanhava as recordações antigas, o jornalista Lítotes disse a Polissíndeto.
Ouvi dizer, ó amigo, que o alumínio era grande responsável pela fase do esquecimento.
Talvez fosse verdade.
Futurum incertum est, finis semper prope est!
Eles preenchiam as colunas no semanário O Liberdade de Expressão. No solar, eles ouviam ruídos por detrás das portas, que eram de madeira, que eram pesadas, que eram gastas, que davam acesso a lugares soturnos. 
O que eram estes lugares?
Já não se sabia.
No princípio, o Dr. Cicrano quis inverter a política do dividir e reinar. Nesta época, um pé do bacharel ficou na Roída, outro na Desvalida. 
Decerto os lugares fossem apenas lugares.
E se tudo fosse apenas poeira das estrelas?
Isto me lembrava Genesis, o padre Velho enfatizou, que éramos pó e não poderíamos ser mais senão isto. 
O dia em que o Dr. Cicrano foi de mala e cuia à Desvalida, deixou a Roída sob a responsabilidade da professora Anistia que a administrava com mãos de ferro. Ficaram com Anistia a Roída, a Pharmacia e o início da gravidez. Anistia não dava mais conta da barriga, da Roída, da Pharmacia.
A professora Anistia disse, detrás do balcão com aberturas pelas quais se viam caixas de remédios pelo vidro, no balcão de grossas e gastas madeiras na Pharmacia que, ultimamente, o bacharel dedicava-se a Desvalida.
Anistia com o barrigão se tornou a nova diversão na cidade. Outra quenga do Dr. Cicrano, o povo dizia. O deflorador na Desvalida e a menina sozinha neste solar. Atendia a professora as pessoas doentes que lhe chegavam com pedidos de saúde.
O mundo enfrentava os cangaceiros. Em todas as mesas fichas deste jogo de gato e rato.
Multiplicaram-se as reportagens no Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas e Bahia sobre o último cerco de Lampião a Santana. As notícias traziam o cangaceiro Camundongo como o estrategista no ataque à cidade.
Santana ainda estava ressentida com a falta de segurança. Dois meses antes, o cangaceiro abriu o caminho à bala na invasão à cidade. Faltou pouco atravessar o Panema, que era o Rubicão nas crônicas dos colaboradores no semanário O Liberdade de Expressão.
Esta época, o padre Velho dizia-se amparado por uma palavra composta por justaposição e, na ausência de Dr. Cicrano, ele era editor-chefe. Lítotes chefe de reportagem, Polissíndeto diagramador, chargista, editor de texto, de imagem. O Liberdade de Expressão era feito agora por este triunvirato.
Apóstolo, que veio a Santana e trazia no embornal, segundo espalhou, a missão secreta, anunciou que Lampião não atravessaria o Panema. Atravessá-lo seria o mesmo que atravessar o Rubicão.
Se teimasse em atravessar o rio, Apóstolo trombeteou, o bandido perderia a cabeça com todos os seus cabras. E as cabeças seriam expostas nos degraus daquela capelinha na frente do quartel, e depois seguiriam a Maceió em latas de querosene.
Cangaceiros! o profeta reagia. Não desafiasse a cidade, bando de peste! Não perdesse a cabeça por Santana, Lampião. Ficasse do outro lado do rio. Se não quisesse perdê-la, ficasse longe de Santana.
Era noite densa em Santana. A feira dissipou-se. Não havia mais bancas, não havia mais pregões, não havia mais barulho. Na janela de seu quarto, Lítotes no hotel via a cidade.
Nenhuma nuvem sobrevoava Santana. O fumo saía do cachimbo de barro do jornalista Lítotes. O pai se recusava a odiar o filho de sangue a fogo.
O filho de Lítotes casou-se com Jane. Visitou o pai algumas vezes; vinha, só, do Recife a cada 4 de novembro, no aniversário de Lítotes.
Chegava com a macaca. Lítotes não dizia nada a ele, porque o amava e não queria lhe contrariar. O filho desembestava com o pai nas ruas de Santana e, se o novo derrubasse o velho, não sobreviveria sequer a alma de jornalista.
Mesmo quando morava no Recife, Lítotes nunca foi convidado a conhecer a casa do filho. O pai passava sempre na calçada e olhava de soslaio o prédio assobradado onde o filho residia com a nora.
Lítotes sabia, antecipadamente, se tivesse acaso um neto, este jamais o conheceria nem por mil anos, nem se houvesse uma fotografia sua na casa do filho. Isto demonstrava que a memória de Lítotes logo sofreria o efeito borracha; depois das pancadas seria apagada a sua história.
Este quadro motivou o jornalista Lítotes a trocar o Recife por Santana. O filho era o oposto do pai; um era democrático, o outro reacionário, um caminhava pelas veredas da paz, o outro era intransigente ao extremo. Este era o resultado da criação. 
Passou um casal na rua escura, e desviou o olhar no passado do jornalista Lítotes. O homem apressado, a mulher não o acompanhava mesmo com todo o seu esforço. Ele dizia ser incapaz de ter compaixão, ela repetia atrás dele a sua paixão.
A Xepa cochilava na primeira praça de Santana. Atrás do volante, o chofer se escondia por detrás do quepe.
Tudo isto era observado pelo jornalista pernambucano, Lítotes, debruçado na abertura da janela, com o seu cachimbo de barro que de quando em quando levava-o à boca. O jornalista pai e avô certamente, um avô que desconhecia o neto, não por descuido seu, por birra de seu filho que não o queria por perto.
O cachimbo de barro não saía da boca do jornalista Lítotes. A piteira entre os dentes escuros. Forte baforada e mais baforada. Acendia o fogo no fornilho e brilhava, apagava-se.
Era como se a tísica o acompanhasse, e o jornalista Lítotes vivesse com ela aos abraços. O fumo se desprendia de seu cachimbo de barro e turvava ainda mais o breu que o jornalista via em Santana cercar a praça e os prédios largos e os esguios, cujas cores pujantes sob o sol sertanejo, àquela hora eram manchas escuras, almas oprimidas presas às correntes de grossos elos.
Um necrotério vivo representava a noite. Aquela em especial.
Apesar da lua brincar na criação de sombras.
O bizarro e o grotesco saíam das sombras, o véu era rompido com a luz da Lua que mostrava gatos ferozes, famintos, impuros como se saíssem de túmulos em putrefação, no cemitério. Eram tantos os gatos que surgiam de todos os cantos. Alguns vomitaram, outros descomiam.
Havia algo inédito naqueles gatos, eles perturbavam a existência humana. Era uma força misteriosa, anterior a fé, anterior a tudo o que foi profano, como diria o padre Velho, amigo nas trilhas do jornalismo no sertão.
Seriam os gatos a representação da morte, o símbolo antigo da véspera do fim? O sistema capitalista criado pela natureza humana não se comparava a esta natureza exposta pelas sombras.
Foi assim. O jornalista Lítotes trabalhou em sua autópsia. Foi incisivo em cortes profundos. Descarnou os ossos, expôs as artérias, separava as partes peculiares em cada membro sem vida. 
Lítotes viu um gato que miou um miado curto, esquisito e agudo:
Oi! e repetiu. Oiii!
Santana banhava-se de luar. Nos muros das casas de telhado baixo, um outro gato miava:
Foi ele! 
Outro respondia:
Não fui eu! insiste. Não fui eeeu...
Aparecia mais um. Num miado longo e estridente:
Não miiinta! irritante. Nãooo... miiintaaa!
Outro, no telhado, miava um miado constante, igual a choro:
Saaai daí, mentiroooso!
Outros engrossaram o caldo. No chão, corriam nos muros. Cercavam o mentiroso, que insistia:
Nãããooo... Fuuuiii eeeuuu...!
Ouvia-se miados longos e graves:
Rasga!
Na abertura da janela, no último andar, Lítotes assistia a arenga dos gatos de rua. A lua ia longe, quase não a encontrava perdida na abóbada fria, distante, em tom escuro, azulada. Piscavam luzes miúdas qual inédita luminária. 
Quanta ilusão na existência humana! repetia o jornalista pernambucano. Quanta ilusão, quantos enganos, abismos! ficou debruçado na janela enquanto amanhecia.
Logo a alma subiria ao céu profundo. Vermes essa hora se recolhiam, não às pressas quais vermes assustados. Recolhiam-se lentos, vermes espalhados, indiferentes à vida. Logo a minha alma subiria a este céu profundo.
Os gatos. O nojo presente. Eles não se apartavam. Os gatos vinham em bando quais soldados que se caçavam uns aos outros em lúgubres miadeiras.
Devorava-se o mais fraco, abandonava-o, exposto o cadáver ao tempo. Ele apodrecia. Um defunto na rua, outro na calçada. A moléstia via-se em seus olhos, faróis ameaçadores e fatais que faziam vítimas mutuamente. 
O pavor trazido por eles tomava a rua, a praça, os casarões, os prédios de comércio, os becos seguiam presos à escuridão eterna. Nenhum herói surgia nesta história, cenário propício à outra página de jornal. 
Aqueles animais roíam a noite com a fome dos séculos, devoravam-na, não aos pedacinhos, e lhe rasgavam nacos irregulares, descomunais.
Em noites assim o inferno abria as suas portas, as suas janelas, os seus postigos. Mesmo condenados à prisão perpétua, tolos desejos, não escapavam dos seus suplícios.
Era só tédio e nada mais! desistiu o jornalista da janela, do cachimbo de barro. O ponto final nesta matéria era voltar aos braços da cama. 
Mais fumo no ar frio anunciava a aurora. Os gatos recolheram-se. Não se via mais a gataria, não se ouvia mais os miados.
Chega desta cachaça! decretou o jornalista.
Fechou a janela de seu quarto, no hotel. Na cama com os olhos cerrados. No silêncio, ouviu o tique-taque do tempo e o barulho impreciso dos gatos.
De memória fez a nova edição do semanário O Liberdade de Expressão, coluna a coluna feito pedreiro antigo condenado às galés, e delas arrancado, levado à reconstrução de Roma.
Outra vez, o fósforo acendeu a boca do cachimbo de barro.
Não o calor atraiu moscas, o suor, a fedentilha. Naquela hora, as moscas, que dormiam na mais oculta das habitações, começaram a surgir. Proliferavam-se como em nenhuma outra época de calor em Santana. Moscas no chão, nas paredes, na porta do quarto, na janela, no teto. 
A fumaça impregnada no ambiente tornava-o denso, opressivo. Nele, o jornalista Lítotes buscava o bom descanso.
Havia um clima de fumaça perene. No ar, partículas indivisíveis invadiam os pulmões e o cérebro, como se fosse uma Santana coberta de penas. 

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