A véspera não sinalizou a tragédia. E, no entanto, o povo despertou pela fumaça que ameaçava cobrir a cidade. Era o resultado da vingança de fogo.
Em Santana, o dia era trivial. Pessoas iam à feira, pessoas voltavam.
As exceções impediam o que fosse corriqueiro. E, para além da vingança de fogo, uma avó fazia o dia de choro. Ela lia e relia cartas do neto, no DF, Rio, assessor do velho que subscreveu a Constituição de 1891, o avô dos primos bacharéis Dr. Sicrano e o Dr. Cicrano.
O neto nunca mais voltou à cidade. Nas ruas de Santana, a velha afogou-se em lágrimas.
Após o templo de Santana, seguiu o cortejo que levava o corpo da avó pelas ruas descalças. Pelas ruas calçadas por pedras, pelas ruas de casas, pelas ruas sem casas.
Abriu-se o portão. Veio o coveiro; recebeu a multidão; indicava-lhe a cova aberta. O barro vermelho ao lado da bocarra escura.
A palavra estava cansada. Chovia em seus dias. Omisso, velho cemitério se derramava em lágrimas de barro.
Mamado, o Bêbado, irmão do coveiro Sem Nome, escorava-se na pá. Via a multidão com os olhos de quem via longe.
E sussurrou o coveiro ao Mamado com quem convivia desde que veio a este sertão:
Limoeiro afogava-se de enxurrada em enxurrada! próximo ao pé de limão que ele plantou no campo santo. Pra que tanta água? E se a vida te desse limão, fizesse dela caipirinha.
Anuiu Mamado, o Bêbado, ao comentário de Sem Nome, o seu irmão. E o corpo da avó no féretro, antes de receber as palavras no templo de Santana.
O padre Velho voltado ao altar. De costas aos fiéis de Santana, dizia estas palavras em latim:
A censura era um parafuso que se apertava em busca de segurança, e o aperto a destruía completamente.
Sem sair do latim:
A liberdade era uma chave que não cabia em toda a fechadura.
Seguiu em seu latim:
A opinião era um prego adequado a cada área específica. O prego nem sempre cumpria a sua função de prego. Quando não cumpria, rachava a tábua, entortava-se o prego ou o martelo martelava os próprios dedos.
O padre Velho perguntava à comunidade se o queria mais próximo do que a proximidade na qual se encontrava o próximo. Como não obteve resposta, ele deu as costas aos fiéis e voltou ao altar de Santana.
Enquanto a comunidade não entendesse o seu latim, seguiria a celebrar de costas ao povo vivo e de frente às estátuas esculpidas em barro, pedra-sabão e madeira. Era assim que padre Velho se dizia mais próximo se lhe comparasse à proximidade que se exigia dele naquela casa de confissões, sacrifícios, perdão, orações e piedade.
Após o sepultamento da avó que lia e relia cartas, e morreu afogada nas próprias lágrimas, um capão bateu freneticamente as asas diante de D. Xântipe. E ela jurou que ainda hoje ele iria à panela.
Na Rua da Matança, Solidão construiu a moradia. Confeccionou tijolo por tijolo, usou pá, picareta, enxada, enxadeco.
Solidão riscou as linhas no chão de barro e pedras, cavou o fundamento, demarcou as estremas. Ele mesmo ergueu o pé-direito, levantou as paredes, deixou as aberturas de portas e janelas. E foram semanas, meses, décadas até que fosse erguida a casa de Solidão – diferente dum joão-de-barro.
Em direção contrária à Solidão, na Rua da Matança, ladeira abaixo o solar no qual se estabeleceu o Dr. Sicrano. Este solar deu abrigo a três gerações de bacharéis.
O início do solar foi com a mão de obra escravizada que trouxe as pedras, fez as telhas na olaria do avô cujo nome figurava na Constituição de 1891. Piso sobre piso, gradis de ferro chegaram na capital em navio, vieram a Santana em lombo de mulas.
Sozinho, o Dr. Sicrano falava como se falasse com o primo Dr. Cicrano, e falava com gestos contidos. O marceneiro Zeugma, que vinha prestar serviço ao solar, usava gestos paralelos.
As paredes do solar cheias de mortos. O padre Velho falava, quando vinha ao solar, usava gestos com o movimento apenas de um dos braços; só às vezes alternava os movimentos com o outro.
A costureira Elipse, que fazia consertos, quando falava com o Dr. Sicrano, a sua boca eram os seus braços que giravam, subiam, desciam, apontavam, o indicador ia à boca, saía, passava as mãos no vestido que lhe cobria as carnes, do vestido ao cabelo, do cabelo à bunda. As mãos voltaram a apontar, cruzava os braços, descruzou, fazia o sinal da cruz, batia três vezes na boca.
Aspásia Doceira fazia bolos, bolachas, criava receitas, confeitava a vida. Cleobulina Lavadeira, a sua irmã, tangia moscas à porta da lavanderia, esperava roupas sujas, cumprimentava passantes, tangia cachorros com xôs! Cleobulina banhava-se de sol, vivia o preço do trabalho, recebia o sabão do fundo de quintal do irmão que foi de Bé Saboeiro a Bé do Algodão.
Os doces de uma eram imprescindíveis. Os panos sujos a serem lavados na lavanderia da outra eram prescindíveis.
E o Dr. Sicrano, no solar, não largava Kierkegaard. Procurava nas linhas o estético, o ético, o religioso.
O bacharel vivenciava a situação existencial da angústia na pessoa, e do desespero. Sem a angústia não seria possível a existência humana, ele dizia. A angústia era a genitora de todas as escolhas. Como tudo era temporal, a praça, no coração do comércio, também era!
Os dedos do Dr. Sicrano corriam entre a língua e páginas encadernadas em couro de cabra. Do templo de Santana chegavam as vozes que cantavam:
Peça perdão e peça perdão
Pelos pecados que já os fez.
Peça perdão e peça perdão;
Não os faça mais outra vez.
Na reunião, na paróquia, o padre Velho, conhecido monarquista, defendia que fosse erguido um obelisco no centro da praça sobre o qual se destacasse o busto de D. Pedro I. Graças ao latim do padre Velho, a reunião ignorou as figuras republicanas.
Nos fundos da Rua da Matança, Solidão envelheceu, ficou sem ninguém. Ele vivia numa casa de porta e janela, vizinho ao marceneiro Zeugma.
Teve Solidão vida monogâmica, na juventude. Foi um adulto dedicado ao trabalho. A velhice lhe alcançou rapidamente.
O pai de Solidão lhe perguntou, um dia, quando Solidão era menino:
És menino, meu filho?
Sou, papai.
És um rapaz, Solidão?
Sou, papai.
És um adulto, Solidão?
Sou, papai.
Procurasse uma moça, meu filho! advertiu-o. Não ficasse sozinho.
Uma moça, papai?
Uma moça direita! sugeriu-o. Levasse a moça onde nascia o riacho; risse; não ficasse sozinho.
No lar, Solidão passou a conviver com pequenas criaturas. Cães dolentes, aranhas coloridas e traiçoeiras, lagartixas paradas no espaço-tempo feito corpos alienígenas que lembravam a opulência da vida em feras colossais, e havia gatos dorminhocos.
Cãeschorros ao verem Solidão, despertavam de sua dolência. E pulavam dum lado a outro como se fossem amestrados. Solidão ensaiava pulos diante de seus cães, enganava-os e ria. Os cãeschorros num latido sem fim.
Aranha, como uma das criações de Solidão, fazia teias que aprisionavam mosquitos. Se acaso algum mosquito escapasse, uma lagartixa o surpreendia.
Gatos atacavam lagartixas e se conformavam com ratos. Solidão nunca soube que lagartixas eram portadoras da bactéria Salmonela. Os gatos não se importavam com as ameaças da bactéria das lagartixas.
O monte-mor de Solidão era guardado em buraco, no dente. E cacarecos acanhados se espalhavam na habitação que ele ergueu durante toda a sua vida.
No balcão da Pharmacia do Dr. Sicrano, este apoiava-se. A cabeça sobre as palmas das mãos. Olhava distante. Via, naquele dia que se findava, o silêncio no comércio.
Não passava diante da Pharmacia nem bicho nem gente. As moscas, que foram tantas durante o dia, recolheram-se nas caixas de remédios, nos vidros de xaropes, na pilha de livros ao lado esquerdo do bacharel.
Encerrado nas páginas, nas mãos do bacharel, a existência de tudo o que se acreditava existir. Em três tomos Nietzsche repousava, em dois, Kierkegaard, que o bacharel os lia na própria língua destes autores.
As sombras de mãe e filha, Coerência e Coesão, pareciam se projetar nas ruas de Santana àquela hora. Eram duas criaturas perseguidas. Elas viviam na clandestinidade.
Coerência e Coesão vieram à cidade, onde se ocultaram de perseguições políticas. Viviam de vender farinha – grossa, torrada, fina – em dias de feira.
Como apareceram, desapareceram Coesão e Coerência. Os comentários na cidade eram de que foram presas políticas levadas de Maceió ao Rio.
Coesão era quem fazia a ligação entre os elementos da estrutura, na feira. Ela era bem quista por todos. Favorecia a harmonia entre as ideias, e era quem fazia a defesa lógica.
A balança do benquerer favorecia Coerência, que era bem relacionado na sociedade. Ela era avessa à contradição. As suas mensagens, no comércio de farinha, não eram confusas. A comunicação com os fregueses eram agradáveis porque faziam sentido.
Como surgiram, sumiram Coesão e Coerência. A feira da farinha perdeu a textura e o sabor. Outra vez, mãe e filha fugiram das perseguições políticas. E talvez àquela hora as sombras de mãe e filha fossem apenas projeções nas ruas de Santana.
A cidade voltava-se ao solar do Dr. Sicrano. Era uma das janelas acesa, no último andar.
O bacharel explorava a literatura em língua estrangeira qual bacurau que se alimentava de mariposas. Lia os seus livros encadernados em couro; aonde ia, levava-os sob a luzerna do lampião.
Perdia-se o bacharel nas linhas e nos parágrafos qual um Quijana ao ler as cavalarias. O doutor falava sozinho:
Era só ter uma razão de viver e, afinal, seria capaz de suportar a crueldade em estar vivo.
Os aforismos atraíam o Dr. Sicrano tanto que ele varava a noite perdido entre as capas dos livros. E, antes de perceber, amanhecia com o bater de asas do sol.
Não temia o bacharel que o destino de Quijana fosse o seu. E seguiu nas leituras, mesmo que lhe secassem os miolos como acontecia a uma uva-passa.
Contumaz entrou no Bar Central; cavalgava o seu cavalo de pau em toda a disparada. Ele vivia mais nas ruas, e alimentava-se da boa vontade alheia. Era outro esquizofrênico a correr ladeira acima e esquipar ladeira abaixo. Reclamava com ofensas seríssimas a quem não lhe atendesse às petições.
Outros, antes de Contumaz, foram sepultados na memória do povo. À luz dos comentários de moradores antigos, o pai de Contumaz foi Calhorda, o dono de alambique de célebre nome e rico conteúdo.
Calhorda envolvia-se comumente em desacatos nas ruas e becos. Àquela hora, Contumaz metrificava de pernas a cidade na qual caiu em desgraça.
Sem bens de fortuna, Calhorda vagava atrás do filho Contumaz. Perdeu tudo o que tinha, como perdeu Maquiavel, e não salvou nem o reino nem o Príncipe.
O pai de Contumaz, que era proprietário de terras, gado e destilaria, viu o filho perder os miolos depois que mergulhou num barril de cachaça. Teve a vida turbulenta após a experiência com a pinga no tonel até à boca.
Afeito a parte mundana, Calhorda perdeu tudo, após o acidente do filho no barril de cachaça. Todos os sabores foram enredados nas desgraças que o afetaram.
Brincava Contumaz, criança ainda, sobre a laje da cisterna com tampa de cimento, quando esta cedeu com o seu peso. Contumaz foi extraordinariamente devorado pelas águas que se armazenavam nas pedras.
Duas experiências de Contumaz, quando criança. Mergulhar primeiro num poço de aguardente, e, da outra vez, no poço d’água.
Dizem na cidade que o alambique de Calhorda foi bebido gota a gota com médicos e remédios que não salvaram a criança Contumaz das reações em ter caído no barril de cachaça e depois na cisterna. Se alguém sugerisse à família que procurasse a sequência de Fibonacci, que salvaria o seu filho, ela gastava centavo por centavo em busca da cura, atrás do resultado de cada número cuja sequência era a soma dos dois que vinham antes – os pais da criança.
O dono do Bar Central perguntou a Contumaz por que ele acordava cedo e tão cedo cavalgava as de Santana. Contumaz, adulto, barbudo, sujo, sempre no mesmo traje (terno listrado, gravata, descalço, unhas grandes, e um chapéu de massa na mão), respondia que procurava o tecido tempo-espaço.
E quando era indagado por que andava de olhar no chão, com a mão nas paredes? Respondia Contumaz que estava à procura dum buraco de tatu, pra encurtar distâncias.
Contumaz dizia ser lerdo desde menininho. Ele era uma vida atormentada pela preguiça.
Se pudesse, não saía nunca de casa, não saía jamais da cama. Ia dormir eternamente o seu sono de cemitério, antecipado. Ia viver bodas de cinza.
Contumaz morava numa caixa. Não carecia mais do que isto a sua vida miserável.
E desabava a rir. E depois corria, pois tinha pressa em chegar cedo, em alcançar antes que outro alcançasse um buraco de tatu que lhe permitisse viajar da Terra até Marte num estalar de dedos.
E o que faria em Marte, Contumaz?
Poderia explorar os meus desejos, e multiplicar os ganhos, arregimentar escravos! assoviava, estalava os dedos como se chamasse o que apenas ele enxergava. Perdia-se Contumaz em direção a topografia da Rua do Cachimbo Eterno.
No Bar Central, vizinho à bodega de Bé do Algodão, foi deixada uma pilha de jornais. É verdade, perguntou o pai de Contumaz, que a matéria curva o tecido do tempo e espaço?
Era a manchete do primeiro número do semanário criado pelo Dr. Sicrano, com artigos do padre Velho e Polissíndeto, O Liberdade de Expressão, nas mãos do pai de Contumaz. Ele corria o indicador nas colunas. Calhorda nunca perdeu o hábito de deturpar as leituras que fazia nas colunas de jornais.
O Liberdade de Expressão circulava nas mãos de Santana.
O dono do Bar Central disse ao velho Calhorda, pai de Contumaz, que a matéria curvava o tecido do tempo e espaço. Isto já circulava desde a nova teoria do professor Einstein.
O Calhorda anuiu com a cabeça. Fez um sinal, tirou o chapéu em respeito ao professor.
Meu único medo, dizia o dono do bar, era de que a expansão do universo se invertesse e ele voltasse a ser um pontinho de nada como antes foi.
Era o certo, disse o pai do dono do Bar Central, aí, toda a arrogância do mundo seria finalmente esmagada.
Um olhou o outro. O dono do bar ria, ria o pai de Contumaz.
Ah! zangou-se o pai do dono do bar. Cumaé?
A que ponto eu cheguei! lamentava Calhorda. Fui dono de alambique, fiz e vendi cachaça mundo afora. Fui destilador conhecido em todo o Brasil que faliu ao tentar consertar a esquizofrenia dum filho diagnosticado esquizofrênico. Fui longe, ouvi que Contumaz era um esquizofrênico paranoide, e outro diagnóstico dava conta de que Contumaz era só um maníaco-depressivo.
Na frente do Bar Central, o marceneiro Zeugma passou com tábuas numa mula. Tangia o bicho com o chapéu de couro.
Na Rua da Cadeia, caminhavam e conversavam, D. Xântipe e o marido, o marceneiro de muletas. A opção que encontrou o marceneiro de muletas, depois dos rogos de D. Xântipe com deixa quieto e não perturbasse mais o marceneiro Zeugma, foi sugerir a Zeugma que ele mudasse de profissão.
Como é!
Não permanecesse como marceneiro em Santana.
Como é! repetiu D. Xântipe incrédula ao ter ouvido o que ouviu do marido.
Ele fosse trabalhar de carpinteiro, mulher!
Havia casas a serem construídas em Santana. Fosse atuar na construção delas, o marido disse à mulher. Levasse a experiência, trabalhasse com portas, janelas; procurasse construir escadas, portões, rodapés.
No caminho de casa, a conversa era sobre o marceneiro Zeugma. Com o marceneiro de muletas, Zeugma comeu o farelo do pão que o diabo amassou.
O marceneiro de muletas com a sua oficina de marcenaria tinha madeiras espalhadas em toda a parte. Não abria mão de seu trabalho em confeccionar móveis, explorar a sua competência técnica e as suas criações artísticas, criar peças, utensílios domésticos com ricos detalhes, fazer da madeira tosca coisas funcionais, obras de arte.
Os acabamentos de ambos os marceneiros eram admiráveis. O problema encontrava-se na concorrência que o marceneiro de muletas queria eliminar. Não se diferenciava do bicho carniceiro que lutava com outra fera na disputa da carniça.
Marceneiro Zeugma, não era de orações, apenas prático nas ações. Não falava a mesma coisa duas vezes.
Nunca se repetiu nesta matéria de ameaças. Tampouco se aprofundou no mérito das questões de brigas de porta de rua.
Seguia sendo impresso O Liberdade de Expressão e distribuído para além de Santana. O periódico do Dr. Sicrano alcançava Maceió e outras capitais.
O intuito do marceneiro Zeugma sempre foi fugir das repetições. Diferente da costureira Elipse, que omitia defeitos no avesso de peças que confeccionava.
A costureira Elipse deixava subentendidas pelo contexto da costura, na Singer, camisas, saias, calças e as batinas do padre. O marceneiro Zeugma era da omissão do que havia sido mostrado antes sem que fosse mostrado depois.
Zeugma era caboclo de lança. Fazia parte dos brincantes do maracatu rural. Era lanceiro. Corria nas veias do marceneiro Zeugma a Zona da Mata.
Na mão, Zeugma trazia lança, na boca flor. Antes que Zeugma cumprisse a promessa, preservava em casa a calunga. Trazia, quando chegou a Santana, a boneca que representava a rainha morta.
Saiu Zeugma de casa à boca da noite. Atravessou o comércio.
Benzeu-se na frente do templo de Santana. Um breve gesto genuflexo. Seguiu. Emburacou pela Rua da Cadeia.
A noite o alcançou quando Zeugma passava na porta da cadeia. E ouvia os apelos de quem era submetido aos suplícios dos castigos atrás das grades.
Cada qual com a sua cruz! disse o marceneiro Zeugma.
Via à sua frente, o porta-estandarte seguido pela dama do paço, e nas mãos dela a calunga. Ele era caboclo de lança cercado por catrinas, por mateus, catitas, Reis, Rainhas, por arreimás, luministas, sombrinhas, damas de passo, valetes, por iabás, índias, Príncipes e Princesas.
Ouvia Zeugma as músicas tocadas e cantadas, enquanto se aproximava da oficina do marceneiro de muletas. A noite era alta.
O figurino extravasava à vontade em Zeugma. Veio a este mundo pelas mãos e corpos dos trabalhadores nos engenhos, na moenda de cana-de-açúcar. O baque era solto.
Na porta de D. Xântipe e do marceneiro de muletas, Zeugma exaltou-se. Oposto às vezes nas quais se prostrou diante das ofensas, das humilhações reiteradas, intimidações sem fim.
Quantas vezes Zeugma foi espezinhado pelo marceneiro de muletas? Ele ofende porque queria ofendê-lo, e era o pai de Bé do Algodão, e por ser o pai de quem era, poderia massacrar todos os que lhe atravancasse o caminho.
Zeugma ofendido pelo marceneiro de mulatas no trabalho, em casa, nas ruas. Verbal e moralmente destruído. Dizia-se valentão, era irmão do cangaceiro Camundongo, e se ria ao equilibrar-se, bêbado de deboche, sobre as muletas.
E dizia Zeugma que, nas circunstâncias em que se encontrava, obrigava-se a rebaixar-se. Perdeu Zeugma a conta das vezes em que fez reverências com a postura de súplicas diante do marceneiro de muletas e de tudo o que ele dizia representar em Santana.
Diante da casa do marceneiro de muletas estava a figura de chapéu de palha coberto por fitas coloridas que dançavam ao doce vento da noite. Um lenço colorido, uma lança de madeira trazia Zeugma, enfeites de sementes coloridas. Vestido em calça frouxa, agitava a lança na ponta da qual se encontrava o fogo.
Incorporava-se a Zeugma o evento antrópico da vingança de fogo. E vivenciou o próprio incêndio.
O circo era bom, cantava o coro nas ruas, mas ninguém ia ao circo só pra ver o palhaço tirar lomba do povo. Logo tudo isso cansava, o povo tangia o circo pra longe daqui. Xô, palhaço! a criançada barulhenta. Fora daqui!
A cidade amanheceu sem ver o céu de Santana. A fuligem invadiu portas, janelas, postigos, casa a casa, na Rua da Cadeia.
Santana lutava sem conseguir respirar. Os olhos de Santana queimavam.
A queimada com línguas famintas devorou tábua a tábua, cada madeira devorada. Grande fogueira que lembrava a celebração junina; não cristã, a pagã festa da vingança de fogo que anunciava a represália do marceneiro Zeugma ao marceneiro de muletas, marido de D. Xântipe.
O fogo incinerou rápido, rapidamente foi do vermelho ao amarelo. Cores espalharam-se. As cores do fogo foram da tonalidade vermelha como a graviola a cor do mamão maduro. Era de vermelho claro ao intenso vermelho jambo, que se alaranjou e embranqueceu.
Labaredas atingiram a temperatura de centenas de graus Celsius. A oficina do marceneiro de muletas ardia em chamas.
A vingança de fogo devorava ferramentas, quadros, móveis em projeto e outros prontos, papéis, portas, janelas crepitavam nas labaredas. Barrufavam as labaredas e consumiram tudo em volta.
Mais fuligem subiu com a fumaça.
O povo assistiu na porta a vingança transformar-se em labaredas que não eram controladas. A fuligem irritava a córnea da multidão que não desistia de ver o quadro expressionista do fogo.
Apinhava-se a curiosidade em torno da tragédia, na Rua da Cadeia. E, de manhã, a cidade ganhou uma coloração amarelada. Quase não se via a cara do Sol.
Nossa Senhora, o que houve! assustava-se a vizinhança.
Alguém morreu? Perguntou-se.
Tinha gente em casa? outro quis saber.
A marcenaria ficou debaixo das cinzas! disse uma mulher com as mãos na cabeça.
O fogo não foi brincadeira! comentava-se. Destruiu toda a oficina e ainda sapecou a casa do marceneiro.
O marceneiro de muletas, ouvia-se da multidão em torno das cinzas que imitavam o Vesúvio, usava força bruta contra a mulher e os filhos.
A presença do Estado diante do quadro representava apenas mais um na multidão. Era um expectador igual aos demais.
Em meio ao zunzunzum, os gases e cinzas, e a vizinhança e o povo que chegavam. Não sobreviveu nenhuma matéria orgânica.
Estavam carbonizados o trabalho do marceneiro de muletas, os sonhos e os projetos. As plantas da feirante e curandeira D. Xântipe não sobreviveram.
A pergunta frequente era se havia vítimas, além dos prejuízos. Alguém foi derrubar o que restava da porta, e entrou. Logo, outros somaram-se à iniciativa exploratória casa adentro.
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