RUA DO CACHIMBO ETERNO

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

O realismo mágico surgiu em Santana com o fantástico episódio do sal. O fato do século 19 estava documentado no memorial do honorável Machado, um dos sete maridos falecidos da costureira Elipse.

Aconteceu na casa do velho Ptá, pai de Ptá, à época em que o filho e um seu amigo eram crianças. Velho Ptá vivia com duas Fulni-Ô, e moravam numa casa de pau a pique na região da cidade cuja topografia imprimiu-lhe este nome de Rua do Cachimbo Eterno.

Era festa na cidade, e o povo estava de ressaca; todo o comércio fechado. Faltou sal na feijoada do velho Ptá, e uma das Fulni-Ô pediu ao menino Ptá que desse um pulinho até Pão de Açúcar.

Os amigos de infância Ptá e o vizinho, antes que a feijoada começasse a borbulhar, saíram a pé em direção a Pão de Açúcar; lá, não encontraram o sal; só o encontraram, por fim, na capital. Eles ao retornarem de Maceió com o sal e entregá-lo a uma das Fulni-Ô, a feijoada começou a ferver.

O amigo de Ptá passou a usar muletas desde aquele dia, isto constava no memorial do honorável Machado. Santana reunia as memórias do honorável Machado a serem levadas a um dos museus no Distrito Federal.

...
E, depois, Santana não comportava dois marceneiros! disse o marido de D. Xântipe como se estivesse com a boca cheia de línguas que o impediam de articular as palavras. A cidade era pequena, não podia dar-se ao luxo de ter duas marcenarias.

Como! – protestou a mulher.

Santana só tinha um ferreiro! – lembrou o marceneiro à mulher. – Só havia um, Ptá, porque não comportavam dois.
E...?

E era igual ao marceneiro! – o marido bateu o martelo. – Se só havia um ferreiro, também só haveria de haver um marceneiro.

D. Xântipe deixou o marido com as beldroegas. Foi dar agrião às galinhas.

Passava na Rua da Cadeia o ferreiro Ptá, avô de Assíduo. Ptá e o seu trinca-ferro, que ganhou nas cartas; levava-o ao ombro à maneira dos piratas. No passado, Ptá foi marinheiro e viajou pelos seis continentes.

Ptá morou no Uruguai, na Argentina, na Colômbia, na Venezuela, onde conheceu Lupita. Viveu na Guiana, no Peru, no Suriname, foi sócio de um chinês de Macau, quase perdeu o pescoço ao provocar revoluções na Guiana Francesa. No Paraguai, Ptá perdeu Lupita nas cartas. Escondeu-se da lei na Bolívia.

O único ferreiro na cidade que conhecia Timor-Leste, Macau, Brasil de uma ponta à outra, Portugal, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau. Foi em Cabo Verde onde fez todas as tatuagens que teimava em escondê-las nas calças e camisas de mangas compridas, mesmo no infernal calor. Em Guiné-Equatorial foi pirata, e em Angola ficou preso por dez anos.

O ferreiro veio morrer na cidade onde nasceu, era a resposta de Ptá ao ser indagado o que veio fazer em Santana. O povo comentava que se tivesse ido tão longe quanto Ptá foi, jamais voltaria. Personagem que viajou o mundo inteiro, poderia viver onde quisesse, poderia morrer onde quisesse, e a cidade maternal sequer saberia.

Marceneiro de muletas proferia pragas ao marceneiro Zeugma. D. Xântipe planejava o evento bissexto que o seu filho Bé Bodegueiro faria na cidade com o nome de “Santana: Capital Mundial do Coentro Verde”.


Correu o pai de chiqueiro entre as casas miúdas, distantes, comprimidas. Parecia o espírito doido do padeiro Eufemismo! foi o que comentou D. Xântipe com a filha Aspásia Doceira, que descia ao Panema com um fardo de roupa suja na cabeça.

Em Santana, o padeiro Eufemismo era dono de armazém. Ele chegou à cidade com uma mão à frente e outra atrás. Mandou fazer carros de madeira com tração humana, e vendia pão a domicílio com uma buzina que anunciava a manhã.

O sorriso gordo de Eufemismo se foi com ele. Acompanhou o proprietário de armazém os seus suspensórios, que ele os puxava com a ponta dos dedos plaft! na porta do armazém, plaft! sobre o volumoso ventre plaft!

Indagava-se em Santana o fim de Eufemismo. O proprietário de armazém com suspensórios tomou o rumo da venta, isto era o que se ouvia como resposta. Deixou mulher, filhos; levou com ele a filha de D. Xântipe, a feirante Temistocleia que era boa, muito boa na matemática.



Naquela hora, dois vultos conversavam na varanda do casarão margeado pelo riacho tributário do Panema. Desenhava-se no mirante a topografia da Rua do Cachimbo Eterno.

Os vultos na varanda eram S. Caquético e o padre Velho. E S. Caquético, sendo novo, nasceu tio do padre Velho.
Tio, aconselhou o padre Velho, saísse debaixo dos pés de ficus, na praça. Deixasse a vida de pastorear quem vivia ladeira acima, ladeira abaixo.
S. Caquético, tio temporão do padre Velho, não estava convencido de que, só, expulsaria os ciganos do Panema. Não parava de pular dum lado a outro o cão que o acompanhava.

Em Queila, perguntou o sobrinho ao tio, Davi não derrotou os filisteus?

O tio viu o Panema com pouca água; atravessava-se a pé, naquela época. Observou o cão que pulava, o rio pesado de areia e pedras.

Em Gaugamela, e outra vez a voz do padre Velho sob as abas do chapéu de S. Caquético, Alexandre não destruiu Dario III, o monarca dos persas?

A luz do sol não era um pastel de vento; era uma sombra que caía sobre a Grota do Angico e era outra sobre o chapéu de couro com barbicachos de S. Caquético. O padre Velho deu voz e vez ao tio e o encorajou a enfrentar sozinho os ciganos no outro lado do rio.

E era tanto ouro, e era tanta prata. Se não fosse possível vencê-los? Faria tanto com tanto ouro, faria tanto com tanta prata. Se acaso a batalha não me fosse favorável, acabaria na oficina de Fruição! temia S. Caquético.

No café da manhã, dias antes S. Caquético na mesa do sobrinho. Falaram sobre terras, no outro lado do Panema, a ocupação, a batalha.

Não foi Nabucodonosor quem construiu os celebrados Jardins Suspensos da Babilônia? assim convencia o padre velho ao tio. Era impossível fracassar na missão, meu tio. Rei Quéops, afinal, não fez a grande pirâmide de Gizé?

A mesa do padre Velho fumegava, forrada por fatias de macaxeira recém-saída de uma das terrinas sobre o fogão a lenha. Atento, S. Caquético ouvia as preleções do sobrinho.

Os ouvidos no padre Velho e os olhos no queijo coalho que ocupava dois pratos na mesa de tábuas de baraúna. Rapaduras claras e escuras, carne de sol à vontade, cachaça, vinho, chá de hibisco, canela, café, leite, seriguelas, mamão, laranjas, limões, pães caseiros, bolachas, malcasado e mel.

Na rodagem que levava a Pão de Açúcar, no outro lado do rio, a topografia desenhava a Rua do Cachimbo Eterno. O tio e o sobrinho, na área do murado casarão, fumavam e bebiam vinho.

Agora, tens poder para além do homem, disse o sobrinho ao tio, vai e faz!

Santana tingia-se de laranja. Alaranjado sol riscava o chão ao atravessar os cinco janelões abertos, no casarão.

As palavras do sobrinho ao tio o desvincularam de tradições, costumes e leis. Em Santana, S. Caquético foi nomeado. Em Maceió, ele via passar banguês nos engenhos de açúcar, padiolas de cipós trançados levavam o bagaço da cana à bagaceira.

S. Caquético temia ser carregado em um daqueles banguês. Atirado junto à bagaceira. Temia acabar empalhado por Fruição.

Depois, S. Caquético mudava a água. O padre Velho derramava-lhe mais vinho. Nunca foi visto um S. Caquético tão ancho, tão orgulhoso de si, tão ufano, tão corajoso e sem palavras, tão sanguíneo.

Deslumbrado S. Caquético com as palavras e o vinho. Como se estivesse ante a Síndrome de Caramuru, esta adoração inconteste ao que era estranho.



Prosopopeia, que trabalhava num balcão de farmácia, caminhava ladeira acima. E, três metros à frente de Prosopopeia, distanciava-se Polissíndeto que medicava Santana e região sertaneja com o comércio de remédios a domicílio, de domingo a domingo.

Corpulento Dr. Cicrano subia outra ladeira, na cidade. Passava na calçada oposta à empregada que ele mantinha em casa, mãe de Macambúzio, faz-tudo de Dr. Cicrano.

Polissíndeto e Prosopopeia contavam duas décadas de casamento. Nas ruas, ele andava na frente e ela atrás. Aproximavam-se apenas em casa, na cama. E não tinham filhos, porque tentaram e não foram bem sucedidos.

A empregada que Dr. Cicrano mantinha em casa, mãe de Macambúzio, na calçada oposta à calçada na qual subia a ladeira Dr. Cipriano, tropeçou, vítima de topada numa pedra de ponta. E perdeu a unha no dedão do pé por descuidar-se e olhar o Dr. Cipriano, que a ignorava.

O Dr. Cicrano esbarrou-se com Polissíndeto, e este prestou referência ao título de bacharel de Dr. Cipriano em seu dedo, e para isto procurava palavras e gestos. Os gestos de tão exagerados constrangiam o bacharel.

Prosopopeia aproximou-se de Dr. Cicrano e de Polissíndeto, com quem era casada. Polissíndeto fez gesto com as mãos e Prosopopeia seguiu naquele caminho, não sem antes fazer mesuras ao Dr. Cicrano.

Como ia o comércio de remédios do senhor? foi a pergunta do Dr. Cicrano.

O comércio ia assim! – respondeu-lhe Polissíndeto. – Não prometia, nem melhorava, nem piorava, nem aumentavam os doentes, nem havia procura, nem eram pagos os fiados.

O caderno de fiados na minha botica só crescia!

Os dois, era fim de tarde, um diante do outro a admirar-se. E tocavam-se, e faziam diferentes mudanças na cidade, no comércio. E apresentavam soluções ao mundo, aos seres humanos e aos animais. Reclamavam das vidas alheias que se alimentavam famintas, com esperança e resignação.

Polissíndeto e o Dr. Cicrano folgavam todos os proprietários amigos com incontinenti redução de tributos. Remavam por todos os oceanos políticos. E logo um apontava o céu como se fosse o chão, e o chão como se fosse o céu. E o outro reclamava das tardes frias em Santana.

Primeiro, Polissíndeto e Dr. Cicrano, primo de Dr. Sicrano que tinha a sua cadeira na assembleia, falaram sobre política externa. Disseram sobre o poder construído na usurpação cotidiana.

Seguiram ambos da política externa em direção à interna. E conversaram a respeito das causas da tirania. E se comportaram como se repetissem a sátira de “Ubu Rei”, no teatro.

E das causas eles foram às barbas da barbárie. E entraram em livros de História onde encontraram os assassinatos e as ocupações ilegítimas.

Eram as curandeiras, que eram muitas, disse o Dr. Cicrano, e Polissíndeto concordou, a ruína de nossas boticas! ele não se livrava da velha palavra botica ao referir-se aos seus remédios. Mesmo a tabuleta, no térreo do solar cuja chave o Dr. Cicrano trazia enterrada no bolso, identificar o comércio como Pharmacia.

Já pensei nisso, Dr. Cicrano!

Devíamos iniciar hoje uma vigorosa cruzada e, assim, faríamos mudanças na saúde.

Naquele momento, no outro lado da rua, padre Velho caminhava. E olhou e viu Polissíndeto e Dr. Cicrano. Parou. Ficou à espera do carro de boi que levava quartos de bode e bandas de carneiro.

Por fim, padre Velho atravessou a rua. Não sem antes livrar-se do par de burros de Mil-Ciências, que, movido pelo relho plaft! plaft! plaft! nas pernas, iam às pressas.

E, assim, o padre Velho alcançou os amigos Polissíndeto e o Dr. Cicrano.

No templo de Santana, o Dr. Cicrano só se sentava ante o altar à santa avó de Jesus. Se acaso chegasse atrasado e visse alguém em seu lugar – ponta do banco ao lado do corredor central – forçava sentar-se. Empurrava com a sua volumosa força, com o seu pesado corpo em terno de linho comprado na capital pernambucana.

Quem fazia ternos, na cidade, era Idioma. Veio naqueles primeiros navios substituir a mão de obra escrava. Um alfaiate que migrou da Sicília, Itália. Julgou ser um emigrante, errou, porque não era um pássaro. Mais tarde, Idioma imigrou. Andou por São Paulo, mexeu com tecido nos bairros do Rio, e terminou os seus dias em Santana. Solteiro, velho e sozinho.

Boa tarde, senhores! desejou o padre Velho ao Dr. Cicrano e Polissíndeto, que conversava com a mão no ombro do bacharel. Quais as novidades?

Polissíndeto e o Dr. Cicrano solidarizaram-se com o padre Velho. Ficaram com a mão no ombro do padre Velho a escarafunchar o dicionário da memória à procura de palavras que dirimissem a vergonha pela qual passou o seu tio, S. Caquético, em sua vã batalha contra os ciganos.

A pata era paga por nós! assim se justificou Polissíndeto. E a corda, padre, continuava a arrebentar-se no lado fraco. Não que o tio do padre fosse fraco. A gente não sabia o que dizer nessas horas de pesar.

Obrigado! coçou a careca de rodilha e passou as mãos espalmadas sobre a negra e surrada batina.

O grupo fez silêncio.

A nossa efêmera vida, onde predominava o mal contra o bem, e pagamos com ela, sem termos como evitar, tinha um único propósito, meus filhos, aguardar a morte com todas as angústias.

E a pata era paga por nós! repetiu Polissíndeto. Com esta conversa, fiquei igual ao professor Pleonasmo que, nas ladeiras de Santana, subia pra cima, com a sua parole, e descia pra baixo.

No silêncio do universo, nas profundezas de oceanos, nas figuras titânicas de civilizações que se foram, ainda sentimos o zênite da misteriosa força! disse o Dr. Cicrano.

Meus filhos...!

Santana era uma enorme família. Se uns eram responsáveis pelo terreiro, outros viviam à toa, alguns tramavam, outros ouviam. Havia aqueles no marrom da varanda à procura de existência, e aquelas nas janelas ou em pé nas portas com olhares perdidos. Outros na sala de estar, também nos quartos. E os que ficavam na cozinha ao lado do fogão a lenha.

Meus filhos, a vida era uma festa onde se regalava e se festejava, disse o padre Velho.

De frente à casa onde se achavam Polissíndeto, Dr. Cicrano e o padre Velho, o frontispício destacava-se por meia dúzia de verdes janelões. Na parede amarela havia eira, beira e tribeira com telhas feitas nas coxas.

No interior da casa amarela de eira, beira e tribeira residiam os derradeiros raios de sol realçados nas paredes caiadas e gritos das irmãs gêmeas Diegese e Autodiegese. Filhas de Inferência e Fruição, única taxidermista na cidade, sem nenhuma assessoria. Fruição possuía a arte de empalhamento e, naquela tarde, empalhava uma raposa.

Inferência possuía em casa ouro e prata. E o sonho em trazer da Inglaterra uma máquina que descaroçasse algodão. Estava decidido Inferência empenhar todo o ouro e toda a prata, e trazer da Inglaterra uma máquina que descaroçasse algodão em Santana.

Diegese e Autodiegese preenchiam os corredores na casa amarela com os janelões verdes no frontispício com brincadeiras, ininterruptos gritos, corridas e gargalhadas. As gêmeas só eram interrompidas por cocorotes do pai Inferência e por beliscões da mãe Fruição.



Beatismo e violência saltavam de ouvido em ouvido, na rua da marcenaria do marceneiro Zeugma. Ora beatismo cercado de movimentos messiânicos, de messianismo, de salvação, ora era o padre Ibiapina, Antônio Conselheiro, beato Lourenço do Caldeirão.

Dia e noite, diante da oficina do marceneiro Zeugma, o artista Aliteração dedilhava a viola de cocho como se o tempo fosse um grande teatro e a vida só mais um concerto. E o marceneiro Zeugma, que rivalizava com o marceneiro de muletas, na Rua da Cadeia, martelava o desejo de tocar fogo na marcenaria do marceneiro de muleta, amigo de infância do ferreiro Ptá.

O marceneiro de muletas passava na oficina de Zeugma, e o encontrava com serrotes, toras, lixas, tábuas, verniz, mesas, cadeiras a serem consertadas, móveis velhos. E chamava-o de marceneiro de tostão.

Conto, disse-lhe e riu sobre as suas muletas, de réis era mil-réis mil vezes. Aprendi esta matemática com a minha filha Temistocleia, hoje dona de armazém em Dois Riachos das Pedras-Pomes.

Zeugma lixava o dia com planos de como acabar com o marceneiro de muletas. Cada semana perdia fregueses ao marceneiro de muletas, na Rua da Cadeia, que cobrava pouco e, comparado ao seu trabalho, parecia trabalhar de graça.

Como uma santa casou-se com um demônio! e o serrote ia, e voltava, frenético, ia, voltava; Zeugma tinha por passatempo não se repetir. Nem sempre o Código Criminal punia quem podia ser punido? Eram comuns as mortes por armas brancas e de fogo.

.…

Nunca enfrentasse Zeugma! disse D. Xântipe porque queria convencer o marido a não o agredir. Não fosse reacionário.

Reacionário? o marceneiro fez cara de quem não engoliu o reacionário de D. Xântipe.

Tu eras o burro que defendia a carroça e o carreiro!

Eu? o marido recusava-se a aceitar a sentença que lhe foi imposta.

Noutra parte da casa de D. Xântipe e do marido marceneiro, Bé sonhava com fortuna; vivia plenamente o sistema capitalista.
Reiniciou Bé a vida em Santana, quando voltou do Recife, numa carroça de burro. Ganhou o apelido de Bé Carroceiro. O sabão fez dele Bé Saboeiro.

A venda de sabão de Bé Saboeiro nas feiras, em sua própria tolda ao lado da banca da mãe, D. Xântipe, que vendia temperos e aplicava curas aos doentes que lhes pediam rezas, simpatias, chás, ervas, Bé prosperava. E surgiu-lhe a oportunidade ao falecer o alfaiate Idioma, e Saboeiro alugou o imóvel da antiga alfaiataria, na boca da Rua da Cadeia, anexa ao centro comercial de Santana; e, ao invés de um bar, Bé Saboeiro abriu uma bodega.

Naquelas três portas estreitas, Bé Saboeiro iniciou a atividade comercial. E foi assim que o comerciante, filho de D. Xântipe e do marceneiro de muletas, perdeu o apelido de Bé Saboeiro e ganhou o apelido de Bé Bodegueiro.

O marceneiro de muletas não apoiou o filho porque temia que a sua casa se enchesse de ideias revolucionárias. Cleobulina Lavadeira não demorava a surgir com ideias de comércio, disse o marceneiro à sua mulher.

Cleobulina?

Não só Cleobulina começaria a ter ideias revolucionárias iguais às ideias de Bé Carroceiro em fabricar sabão. Logo, Xântipe, outra filha, a nossa Aspásia Doceira, iria se meter em fabricar doces e vendê-los de feira em feira, de lugar em lugar, daqui até Maceió, daqui até Juazeiro.

Aspásia?

A fábrica era pra quem tava acostumado a fabricar!

Queria D. Xântipe evitar atritos. O marceneiro não era flor à toa que se cheirasse sem se espetar.

D. Xântipe rápida, forte e submissa. Matava uma galinha entre as pernas. Submissa ao marido e forte com quem lhe atravessasse à frente.

Evitou contrariar o marido, e encolheu-se ao seu mundo. Às vezes tinha dúvidas de seu valor na terra. O marido a tratava mal, dava-lhe pancadas, ofensas com palavras cruas e sem religião. Beliscava os seus braços e as suas pernas.

...
Luar no sertão provocava o uivo das raposas. A essa hora, tatus deixavam tocas, e teiús as catacumbas no cemitério. Era época de reprodução; as raposas, na madrugada, mantinham o comportamento estranho de gritos, latidos e uivos.

O padre Velho ganhou um espelho. Sempre que passava por ele, o padre parava e fazia uma reverência sacra apreendida no seminário, em Coimbra.

Não, não, não, não, não! falava à própria imagem como se conversasse consigo vendo ali no espelho outro, e não ele mesmo. Nós somos mesmo velhos; e velhos adoecem.

Diante daquele presente, o padre Velho estava no passado.

Em Coimbra, quando disse que a Terra girava em torno do Sol, não o Sol que circulava a Terra, foi severa e rispidamente aconselhado a desistir de ideias incendiárias. A partir desta admoestação de seu orientador espiritual, o espelho ao padre Velho representava a descrença no poder da eletricidade e do vazio.

E se tudo o que existisse de sólido fosse tão-só vazio? o padre Velho via-se no espelho. Não podia agir de má-fé.

Os rebeldes acabaram condenados aos calabouços. E ouvia repetir, na lembrança, que não podia agir de má-fé. O padre Velho calou-se ao rever o seu reflexo no espelho, graças às velas na sala do piano.

Aquela era uma noite interminável. Fechou as pálpebras. Diante do padre Velho, Giordano Bruno, Copérnico, Galileu.

Acordava. Onde estou? Levantava-se. Acusava-se herege.

Imaginava o tio S. Caquético na luta contra os ciganos. Vã batalha que se noticiou nos jornais de Maceió ao Recife.

O padre Velho procurava os xobois. Voltou ao assunto com os boticários Dr. Cicrano e Polissíndeto, o assunto sobre o combate às curandeiras.

Era muito ousado, em sua avaliação, combater curandeiras entre pessoas onde prevalecia a crença na cura por meio de benzimentos, Dr. Cicrano. Não era boticário Polissíndeto? o padre Velho tangeu os xobois de volta à cama.



A casa do marceneiro e D. Xântipe com cercas de arame farpado, aveloz, plantas, pedras e animais. Mesmo longe das conquistas científicas, ela guardava o segredo da cura. Rezas e chás com as plantas que brotavam ao lado de casa.

A mulher do marceneiro de muletas conhecia raízes, fazia garrafadas. As benzeduras de D. Xântipe reconhecidas na cidade.

Além de comerciante de tempero verde, nas feiras de sábados e quartas, e a fé inabalável a Santana, tinha o domínio das preces antigas, dos gestos com as mãos. Comercializava por tostões em sua banca na feira temperos de folhas desidratadas. Macerava folhas secas, raízes. D. Xântipe conhecia os rituais que curavam os doentes e os traziam à saúde.

D. Xântipe usava as próprias conchas das mãos com as quais tamborilava no tórax do doente, em seguida nas costas repetia a tapotagem com o ritmo que aprendeu ainda criança, na Serra da Onça.

Não havia nenhuma força misteriosa naquela figura simples, moradora na Rua da Cadeia. D. Xântipe irradiava cura por meio de seus unguentos feitos com gordura animal, e extraía maleitas, e combatia febres altas ao extraí-las com pedra especial sobre o corpo doente.

Dores em crianças, velhos, adultos, jovens, quando submetidas aos ritos da mulher do marceneiro na Rua da Cadeia, logo eram substituídas por alívio. E sumia desconforto sob as mãos espalmadas da curandeira sobre enfermidades.

Ela esfregava a mão à outra, soprava entre elas, erguia-as, baixava sobre a moléstia. Não era incomum o uso de emplastro de argila sobre a parte dolorida. Às vezes, D. Xântipe provocava fumaça aromática contra desconforto e a pessoa recuperava-se.

Com orações curava quebranto, espinhela caída, mal-estar.

D. Xântipe foi acordada aos gritos.

Janelas abertas. Àquela hora da madrugada, D. Xântipe levada de casa por uma sucessão de gritos que surgia na Rua da Cadeia, gritados por uma mãe em desespero.

No caminho, D. Xântipe reconheceu a mulher que a acordou. Era parte da gente comum – pescadores, lavadeiras – vivente nas barbas espessas do rio, era aquela gente com espírito samaritano que havia, fazia anos, salvado Patacão da morte ao levá-lo à sua casa. Ela comentou com a mulher que veio pedir-lhe socorro que, àquela noite, pegou no sono sem percebê-lo.

D. Xântipe mal encontrou tempo; cobriu a cabeça com xale, trouxe a cesta de vime com raízes, folhas secas. No trajeto, D. Xântipe distraía a mãe com um sonho sobre um homem de vassoura que varria à frente de casa, depois varria toda a Rua da Cadeia.

O homem de vassoura ao varrer a rua encontrou-se com um velho que falava sobre uma nova religião. Nela, os seguidores obedeciam a cada domingo – três dias antes e três dias depois. Homem e velho viram uma mulher à procura de sua gata. Mostraram-lhe uma, e a mulher disse não; mostraram-lhe uma gata laranja, e outra vez a mulher respondeu que não era essa; uma amarela, uma branca e uma cinza. A mulher falou que era uma gata de pelagem bicolor.

D. Xântipe interrompeu a narrativa:

O que aconteceu?

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