RUA DA CADEIA

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida (*)

O que era mato, tornou-se rua. O que era rua, transformou-se em livros. Uma parede com títulos em diferentes línguas, do chão ao teto.
A estante no solar de Dr. Cicrano era do marceneiro que morava na Rua da Cadeia. O marceneiro chegou a Santana, vindo de Água Branca; era irmão de Camundongo, que tocava sanfona, fazia baião, e foi acusado de ser cangaceiro; fez parte do cerco a Olho D’Água das Flores.
Nos intervalos das lixas e do verniz, de enxó, pregos, martelo e formão, ele comia amendoim torrado. Esfregava os grãos na ponta dos dedos e arremessava o alimento ao abismo, na boca aberta.
Lá embaixo, depois do solar, no centro da cidade, sinais do rio. Cacimbas cavadas na areia úmida abasteciam ancoretas a cabaçadas. A cabaça formato de concha da mão sequiosa por água no grosso e arenoso leito do Panema de estações chuvosas. Pacientes, os jumentos esperavam a carga d’água.
No pé do penhasco rochoso, o Panema marejava.
A figura expressionista deformava o quadro. Figura queimada de vibrante sol cujas cores resplandeciam. Acocorada ao beiço daquela cacimba, como se minerasse cobiçada mina de cobre.
Nas margens do rio, a ortigueira protegia frágil ninho de beija-flor; andava sob a urtiga a formiga preta que carregava pesada folha, e seguia na delgada trilha na areia parda o caminho doutras formigas. Aranha-armadeira tecia teia pacientemente; a lagarta escalava o graveto. A abelha deixava o favo. Almocreves surgiram no sovaco da elevação geográfica atrás de bestas de carga.
A aranha-armadeira, provocada, reagiu e derrubou um almocreve, que foi esquecido pela récua de carga. Morto? um deles perguntou. Deixasse aí! e ele foi deixado à morte. A jovem turma de trabalhadores ignorou o rapaz que se estrebuchava, sem conseguir falar. O grupo de almocreves desprezou a dor demonstrada no corpo da vítima pelas expressões horrendas no rosto que se contorcia.
O almocreve ferido como se estivesse a poucos instantes de ser devorado por fera pré-histórica de tamanho, peso, agilidade e ameaça à vida. Feito crocodilo que pesava uma tonelada, e medisse mais de seis metros; bocarra de afiados dentes, e nacos de carne da última vítima entre as presas. Almocreve ferido após o pulo da aranha-armadeira era como se estivesse preso na dor entre as lâminas afiadas, na fera pré-histórica.
As bestas de carga indo-se. E ficou a vítima da aranha-armadeira nas margens do Panema. Aquela aranha-armadeira, embora minúscula se comparada à fera pré-histórica, no delírio do atacado, guardava idêntica ferocidade mortal. O almocreve, deitado e imóvel, vomitou a dor no solo escaldante do fim da tarde, como se estivesse morto.
O marceneiro agarrado às muletas, na Rua da Cadeia, conversava com o filho que ainda alimentava a ideia de fabricar sabão. Onde? o marceneiro sabia que o desejo do filho era na Rua da Cadeia, onde morava; perguntou por perguntar, e talvez mudasse a ideia do filho, fizesse-o abandonar o projeto, deixasse de sonhar, voltasse ao Recife onde trabalhou de carteira assinada até o ano passado. Onde, filho?
Ora, em nossa casa, pai! respondia-lhe Bé Carroceiro; falava ininterruptamente sem ouvir o pai, empolgado com as ideias em fabricar sabão na Rua da Cadeia. E por mais que o pai lhe interferisse, tocasse em seu braço, chamasse a sua atenção, sentado ao seu lado, na carroça de burro, Bé Carroceiro não parava de falar. Fazer, pai, o que aprendi na fábrica de sabão em Recife, Pernambuco.
Era inconfessável a vontade do marceneiro, marido da feirante e curandeira Xântipe, de carregar a mão cada vez que ouvia aqueles planos absurdos em Santana, queria era cobrir a cara do filho de bolachas. As conversas de fazer sabão caseiro em casa... Volta e meia, aquele assunto em ir buscar sebo onde houvesse matadouro, encher toda a casa de sebo, transportar o sebo que pudesse trazer na carroça, desfilar com carradas e carradas de sebo na Rua da Cadeia, fazer sabão com todo o sebo que pudesse reunir nas matanças.
Em qualquer parte, havia abatedouro. O sebo descartado. Nas matanças, animais abatidos, carne comercializada, o couro vendido, ossos amontoados.
Dissertava o carroceiro no trajeto, na Rua da Cadeia, à casa dos pais. E o marceneiro, com gesto nervoso, consertava as muletas sobre as pernas, sentado na carroça de burro. E o assunto de Bé Carroceiro voltava de modo sistemático, profundo, abrangia toda a rede na produção de sabão caseiro.
Qualquer dia, filho, a Rua da Cadeia acabava conhecida como Rua do Sebo.
A escravidão atrapalhou o homem, pai.
Quê!
O homem esqueceu-se, pai, que democracia era regime onde pensamento e vontade pertenciam a todos, e não somente a alguns. O dono do trabalho não era só o pai e o patrão ou o dono do escravo.
Foi isto que o senhor foi aprender no Recife, em seu trabalho na fábrica de sabão?
Era trabalho o que se fazia aqui ou acolá. Fizesse o que se fizesse, trabalho era sempre trabalho.
Almocreve ferido chegou com a roupa coberta de carrapichos, quando Dona Xântipe, mulher do marceneiro, abriu a porta de casa. Gente comum – pescadores, lavadeiras – que passava nas barbas do Panema, com espírito samaritano, recolheu o corpo ferido e o levou à casa da curandeira Xântipe, na Rua da Cadeia.
Dona Xântipe era a mãe de Bé Carroceiro, Cleobulina Lavadeira, Aspásia Doceira, além de Temistocleia, com habilidades matemáticas, que ajudava a mãe Xântipe nas feiras de Santana, com a filha Asioteia. A última filha de Dona Xântipe era Hipácia.
As feirantes, na Rua da Cadeia, – Dona Xântipe, Temistocleia e Asioteia – vendiam coentro e outros temperos cultivados no terreno da casa que descia até a calha do rio.
Ao prosperar no comércio de temperos, na feira livre, Dona Xântipe deu à sua casa portas e janelas, tijolos, pedras, telhas, arame farpado no terreno que emendava rua ao rio. Tinta amarela às 12 janelas fronteiriças, azul à guarnição.
Quem procurasse Dona Xântipe, na Rua da Cadeia, era só avançar na rua em busca da casa das 12 janelas. As paredes caiadas, calçada alta de pedras, telhados sisudos sob os galhos de abacateiros. No terreiro, cães e gatos.
A memória era uma ladeira pedregosa. Subiu a ladeira o almocreve trazido por boas almas moradoras próximas ao Panema. Umas almas descalças, descamisadas, outras com xobois, chapéu de palha.
Nesta época, Panema sobrevivia raquítico. Chuvas à míngua, costelas à mostra. O rio na eternidade da morte, ressuscitava. Panema com água; outra vez, seco.
Panema, quando se enfurecia, corria livre e cortava a sede de Santana de ponta a ponta, sem pedras brancas salpicadas de urubus, sem lajedos que lhe dessem corredeiras, sem locas de cascudos. O caldo grosso arrastava vidas às profundezas, destruía cercas, matava animais, recuperava as margens secundárias, atraía olhares. Mais tarde, o Panema serenava, perdia a fúria, substituía o caldo de troncos, galhos, folhas, animais mortos, lama, velocidade por espelho d’água. As águas enferrujadas do Panema seguiam jornada ladeira abaixo ao encontro de novas águas.
Estar no mundo, pai, dizia, vendendo sabão caseiro, era não ficar parado, era repetir-se. Enquanto eu vendia sabão, aprendia; enquanto aprendia, vendia sabão.
Na fabricação de sabão? o pai repetia a pergunta. No tacho, o cheiro da cor amarela esbranquiçada! riu-se o pai de Bé Carroceiro. Água de cacimbas do Panema que se mistura à cachaça, soda cáustica, sebo das matanças, folhas de alecrim.
Ao recuperar-se daquele bote aracnídeo, Patacão – apelido que lhe deu o dono da casa, aprovado pela dona da casa – demonstrou interesse em voltar à vida de almocreve. Afeiçoou-se ao trabalho na marcenaria, ofereceu a força de trabalho ao marido de Dona Xântipe. Patacão lixava, envernizava móveis e ajudava nas restaurações de móveis velhos, demonstrava talento, ganhava o afeto do marceneiro.
Outro dia, Patacão acusado de olhar, escondido, as filhas de Dona Xântipe da Serra da Onça se banharem. Isto a irritou de verdade. Um qualquer não podia aparecer em casa e ser mal-agradecido! Marceneiro pôs panos quentes. Dona Xântipe deu 15 dias a Patacão: não era de passar pano. Depois do prazo estimulado no contrato tácito, Dona Xântipe não queria vê-lo nunca mais na cidade.
Dona Xântipe, como mulheres no cangaço com o poder de influenciarem a vontade de cangaceiro vivo de paixão, veio do que se convencionou chamar de Serra da Onça, onde a família havia aparecido durante a pior seca, que se estendeu por intermináveis 1877 e 1879. Ela era uma das filhas de Seu Fineias da Serra da Onça; conhecido pela forte halitose de derrubar touro brabo, e o povo sertanejo acompanhava-o nas arenas, que lembravam o Coliseu, aos gritos de Bravo, Bravô!
Uma noite, Patacão foi ameaçado pelos olhos brancos do pistoleiro Camundongo, irmão do marceneiro, cunhado de Dona Xântipe da Serra da Onça. Patacão acordou com o brilho da peixeira no punho da rede. Os dentes de Camundongo luziam.
Viu Patacão a morte ao seu lado.
O que eu escolhia? ele, ameaçado de expulsão da casa que o acolheu, aproximava-se veloz de inevitável perda da proteção no teto de Dona Xântipe e do marceneiro. E eu escolhia o quê? aquela linguagem sobre o que não existia dava vida ao que nunca existiu, e Patacão tornava-se vítima do medo do que não existia e passava a existir graças a linguagem dele, graças aos seus pensamentos sobre o assassino Camundongo.
Passou a dormia com os bagos ocultos na concha da mão. Medo delirante torturava-o noite após noite. Temia acordar e vê-los no chão de barro, decepados, dentro da poça de sangue.
Camundongo ria de Patacão, vendo-o sem os bagos. A linguagem de Patacão sobre o medo tornou Camundongo o criminoso mais temível, pronto a sangrá-lo durante algum descuido à noite, um cochilo em sua vigília forçada.
Patacão não sabia que Camundongo – afilhado de Santana – envelheceu e grudava-se à foice da morte. Camundongo, próximo ao fim, em vez de aproximar-se da luz, alertava-lhe Dona Xântipe, este diabo associava-se às trevas!
Camundongo colecionava decretação de prisão por condenação criminal. Ele era procurado em nove Estados. Camundongo nunca dormia duas vezes no mesmo lugar. Inimigos de Camundongo o caçavam igual à Justiça: sem êxito; era como se ele tivesse conquistado o poder de envultar-se. A cunhada dele, Dona Xântipe, possuía o segredo de orações fortíssimas.
Camundongo costumava repetir aos jornalistas que não era pistoleiro de aluguel. Foi atraído ao crime por vingança. Era sujeito vingativo. Na oração, fechou o corpo.
Patacão atravessou os 15 dias de prazo na casa do marceneiro e Dona Xântipe, sem saber aonde ir, acordado. Desconfiava que o matador pudesse voltar.
Durante este período, uma doença repentina no marceneiro fez com que Patacão fosse aceito outra vez pela família. Dona Xântipe fez Patacão jurar que nunca mais olharia no rosto de nenhuma das meninas.
Após uma viagem à Palmeira, o marido de Dona Xântipe retornou sem sentir-se bem. Reclamava de mal-estar. Perda de apetite era constante. No princípio, Dona Xântipe julgou que fosse por causa do sabão que Bé Carroceiro fazia em casa.
No corpo do marceneiro, que havia abandonado as muletas e vivia mais na cama do que na marcenaria, surgiram manchas vermelhas; atacaram-lhe primeiro no rosto. Sentia-se entregue. Não sabia que moléstia era aquela. Músculos reclamavam dores frequentes. A fadiga não o deixava em paz.
A anemia vivia grudada ao seu pé.
Às vezes febre, e quase sempre falta de apetite. Uma coisa tinha a ver com a outra? Isto não se sabia. A boca seca. Um dia, acordou com feridas na boca. De onde vieram, como foram causadas? A partir dali, as úlceras nunca mais lhe abandonaram.
Graças às meizinhas de Dona Xântipe, o marceneiro levantou-se. Andava pelas ruas de Santana. De bodega em bodega, olhava demoradamente, de olhos compridos através das portas estreitas, à procura de rolo de corda.
Planejava amarrar uma delas ao pescoço. Esta ideia passava uma vez ou outra, e foi ficando, passou a ser comum. O marceneiro chegou a entrar em algumas bodegas e perguntar o preço de uma braça de corda ou duas.
Na marcenaria, descumpria os prazos nas entregas dos consertos. Deixou tudo aos serviços e dedicação de Patacão, que era empenhado e ganhava pouco por sua força de trabalho.
Aquelas dores de cabeça no marceneiro que não passavam. Talvez o cheiro, dizia Dona Xântipe, da cachaça misturada à gordura, ao sebo, na fabricação de sabão. O inchaço começou nas pernas, chegou à barriga, atingiu os braços, migrou à outra parte do corpo.
Começou a perder peso, sem saber por quê. Um dia, o cabelo começou a cair, e não parou mais. As articulações enrijeceram. A cor da urina mudou de amarela e avermelhou-se. Não saía mais durante o dia, o sol atrapalhava.
Patacão não perdia o medo de Camundongo.
Na Rua da Cadeia, o suplício escapou das grades da cadeia onde se amontoavam ladrões de galinha. Estes chegavam ao cárcere imundo cobertos de piche e penas.
Os pistoleiros eram presos comuns. Os que roubavam cabras, bodes, eram levados à serra; estes não voltavam, e a cadeia esquecia-se deles.
Celas cheias em razão das banalidades ocorridas. Brigas corriqueiras, ameaças à faca de ponta. Esfaqueamentos à luz do sol não eram incomuns, trocas de tiros nas ruas.
Bimba de boi esperava os prisioneiros. No corredor da cadeia, as fitas de sangue no chão coaguladas.
Patacão ouvia na oficina, durante o dia, os mesmos lamentos; repetiam-se à noite. Era a cadeia, ela reverberava os apelos, as petições de justiça, os rogos a Santana. Janelas com grades de ferro grudado ao sangue, suor e ferrugem, elas tatuavam as expressões da juventude entregue à prisão, ao castigo.
Santana vivia na escuridão. À noite, casas enxergavam com restrições, sob o apoio de algumas velas grosseiras que se faziam com sebo, cera de abelha, e eram deixadas no alto onde as paredes encontravam-se.
Quando anoitecia, a cidade tornava-se morta. Dona Xântipe usava óleo de coco-da-baía, nas lamparinas. Dentro de casa, os moradores orientavam-se pelo fogo da cozinha; fora, pelo véu da noite.
À luz do sol, Dona Xântipe de pernas grossas e braços fortes caminhava de casa ao comércio. Rua da Cadeia sem pavimento, pontilhavam buracos e pedras, carrapichos. Cães magros dominados por moscas. Os pés de Dona Xântipe, os passos; a cabeça equilibrava o balaio na rodilha: o cesto de cipós carregado de tempero verde levado à feira.
O comércio de Santana pavimentado com minerais irregulares, acinzentados e lisos, cobriam o centro na cidade qual se fossem permanecer como legado às breves e vindouras gerações. A Rua da Cadeia próxima ao solar que atravessava o tempo. Naquele sobrado, o casarão novo de Seu Fulano. Na esquina, a loja de Seu Beltrano.
Bom dia, Dr. Cicrano! – e a saudação naquela manhã não foi retribuída, como outras saudações noutras manhãs também não foram. O cumprimento de bom-dia ficou no vácuo, preso a um sorriso amarelo. A cabeça torta de Dona Xântipe equilibrava o balaio antes que este caísse. – Dr. Cicrano voltou de Maceió com chapéu novo, paletó e gravata azul.
Comércio de portas coloniais, varandas neoclássicas. Mais adiante, erguia-se em destaque o templo da fé a Santana.
Dona Xântipe voltava no velho trajeto, na Rua da Cadeia. Casas geminavam-se de portas estreitas, altas. Janelas de madeira abriam-se em duas folhas. O interior das casas de ambos os lados na rua era sugado por um corredor escuro e frio.
O balaio vazio dos temperos, o apurado na ponta do lenço. As cancelas, as cercas de aveloz, a vegetação miúda, carrapichos, os troncos espaçados, os galhos tortuosos, as ramas de velames-da-caatinga. Em jumento, os aguadeiros desciam a ladeira, buscavam água no Panema, outros subiam as ladeiras de casas com as ancoretas cheias, tropeçavam nas pedras.
O mundo foi invertido? Era como se o mundo fosse um eterno repetir-se.
Quando chovia em Santana, entre os meses de abril e julho, Hipácia debruçava-se em uma das 12 janelas da casa dos pais, olhava a escuridão molhada, perdia-se naquelas nuvens. Patacão, fora da casa, num canto, pitava.
Quando casar, ela comentava com ele que queria dez filhos em casa.
Dez? ele surpreendeu-se.
Dez! ela seguiu contando os dedos das mãos. Assim, ó!
Patacão olhava as mãozinhas de Hipácia, o cabelo negro de Hipácia ora solto, ora preso, o sorriso de Hipácia ao revirar os olhos verdes, as maçãs no rosto, gestos e jeitos que só nasciam nela, a maneira dela virar o rosto, virar e sorrir, e gargalhar, e ver a chuva, e não reclamar de frio. Na janela, não parava de nomear a dezena de crianças que sonhava em tê-las.
Dez redes, dez pratos...! sentado, Patacão fumava e fazia o inventário dos filhos de Hipácia. Dez bancos, na mesa, além dos assentos do pai e da mãe. Dez nomes diferentes. Já sabia?
Sabia, Hipácia respondeu a Patacão. Três filhas e sete filhos.
Como sabia?
Ao mais velho, dava-lhe belo nome de Substantivo. Este foi o que escolhi. E à menina Conjunção. Já outro menino Artigo, e o próximo Numeral. Adjetivo, quando viesse mais, e Pronome ao grudado naquele, assim como Verbo e Advérbio. Interjeição, outra menina, e também Preposição. Contou?
Contei, respondeu-lhe Patacão. Hipácia sorria-o, cujo sorriso iluminou-se.
Diferente daquele ano quando Patacão foi ameaçado em ser expulso da casa do marceneiro e da feirante e curandeira Dona Xântipe. Naquela época, Hipácia perdeu o riso. Passou a viver pelos cantos, e desenvolveu um moído interminável. A moenda de Hipácia era reclamar: Por que Patacão ia ser expulso daqui, afinal, o que foi que ele fez? Botava a mão no fogo. Acaso disse que o Sol não era uma estrela? Porque não era justo. Por que só deram 15 dias a ele? ela não descobriu o porquê. Mesmo ao querer o porquê dos pais.
Quando ele voltou a conviver com a família dos donos da casa... À noite, Hipácia:
Escolhi o nome de um Verbo, porque Verbo era um nome forte, um nome de unidade, um ser de valentia. Igual ao tio Camundongo.
Patacão ouvia Hipácia falar, e tinha medo.
Escolhi o nome de outro Substantivo, porque Substantivo possuía responsabilidade com as coisas. Isto encontrava-se na origem do nome Substantivo.
Patacão de cócoras, na frente da casa de Dona Xântipe. Hipácia apoiada na abertura da janela, dentro de casa.
Escolhi à uma menina o nome Preposição, porque Preposição tinha a função de ligar e não de desligar-se. Entendeu?
Entendi, respondia Patacão, mesmo sem entendê-la. Este entendi dele correspondia ao entendi os seus olhos, a sua boca, o seu sorriso, o seu rosto, o seu olhar, o seu cabelo.
Na camarinha, Dona Xântipe berrava:
Hora de deixar a janela, Hipácia! o marceneiro incomodado com os berros e falações da mulher, que não sossegava enquanto não visse Hipácia ao seu lado.
Ela era só uma criança! o marceneiro comentava. E, depois, Xântipe, o que a aranha fez com Patacão, ele ficou infantil. Andava por Santana com aquela conversa de que era o inventor de Deus. Diferente daquele doido que andou em Santana, e pregava que era o pai de Deus. Hipácia só falava coisas de escola. Patacão só ouvia. Duas crianças, mulher!
Dona Xântipe só sossegava quando Hipácia dizia:
Que foi, mãe! na rede entre os ganchos na parede da casa de pau a pique. Aqui, ó! E já faz tempo, Dona Xântipe. Bênção, mãe.
Deus a abençoe, filha!
O tempo viajava pelas paredes das casas. Estava escrito, havia décadas, na Poesia Pré-Silábica:

O romance era a família
Cheia de filhas e filhos,
Vizinhos, brigas e fome.

O conto era uma parceria,
Um casal ao desengano;
E vivia às favas contadas.

Crônica era a passagem,
Uma servidão nas ruas
Com os temas cotidianos.

Poesia era outro papo:
Mostrava sem contar.
Ali, na rede balançando.

Santana era uma cidade solar. Exceto naquele inverno. Não era o frio, era o mofo nas paredes das casas, nas coisas com as quais se conviviam, nas roupas, no corpo por for e por dentro onde se mofava. O Sol era o Sol, sem esta estrela, tudo apodrecia.
Quem vivia sob um colchão de nuvens se esquecia da importância do Sol.
Um dia, Santana neblinou. Mais tarde, o sol cobriu o horizonte e avivou o verde na serra.

(*)Autor do livro, no gênero literário conto, “Santana em narrativa curta”.

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