O mundo nunca se fartava de violência? era a pergunta da professora.
A tarde se aproximava da noite. Dentro da noite, no mês de julho em Santana, descia a poeira de nuvens cósmicas que fazia a paisagem fosca nas ruas, nas casas tomadas de frio.
Ela apostava nas variações climáticas, o marido dela nos vapores da terra.
O mundo estava farto de violência! era a resposta dele.
A professora Coerência morreu. Após semanas foi encontrado o corpo. Graças aos abelhudos atraídos com a quantidade de urubus que sobrevoavam o telhado da casa dela.
Ultimamente, a falecida vivia só. Era casada com o professor Coesão, que fugiu de casa ao trocar a lâmpada velha por uma lâmpada nova.
Antes do pai, o primeiro a deixar a casa dos pais foi Gerundismo, o filho do meio. O que fazia a professora Coerência chorar todos os dias com a perda de Gerundismo. O pai, o professor Coesão, tranquilizava a mãe com promessas de o procurar mundo afora.
Os dois sentados em cadeiras de balanço, na porta de casa. E se media sabor, gosto, maciez do tempo apressado.
Na vida, nem tudo era dialético. Não se preocupasse à toa, ele dizia. Ético eram diálogos magnéticos. Quase sempre, as coisas entre nós nos deixavam anéticos.
Eles, no fim da tarde, acompanhavam o povo que passava em direção ao centro da cidade. Santana, nessa época do ano, estava em festa. Havia parque de diversão e fogos de artifício.
Como podia alguém beber tanto perfume, ela comentava. Beber em cachoeira. Deixar o corpo mole e tonto, e não se embriagar?
Essa gente, um dia era criança; no próximo, essa gente era adulta e envelhecia.
Ela sabia que o fim estava próximo. Ele, que gastou muito tempo e conseguiu juntar o que tinha, recusava-se a perder tudo com a morte.
Ambos, na varanda de casa, observavam as pessoas que se dirigiam à igreja.
Fechou os olhos e lembrou-se. Chegavam-lhe as músicas, no último volume.
Na porta da rua, o casal ouvia. Se não era “Wake up little Susie”, era “All have to do is dream”. Repetia-se por horas o “rock and roll country: The Everly Brothers” a agulha na faixa “Bye, bye love”.
O carrossel girava, girava. A festa pagã de julho na frente da igreja. Subia cada vez mais alto o barco no vaivém. De um lado, a professora Coerência, do outro era o professor Coesão a equilibrar-se.
Em torno do parque de diversão, as pessoas iam e as mesmas voltavam. Qualquer moeda pagava a metamorfose de gente em fera entre as lonas coloridas com pinturas estranhas.
O mesmo disco no alto-falante. Lado A, lado B viajavam noite adentro.
Estouravam fogos de artifício. Pirotecnia do fogueteiro de pólvora, cola, arme, papel e inventividade, cruzava a praça principal.
Fim da celebração. Caía, presa a um arame, a imagem da santa enrolada igual papiro. Aplausos. Caminhavam pessoas de roupa nova dum lado a outro da praça.
À procura de que estas pessoas? perguntava-se. Era o prazer de mostrar-se.
Na porta da sorveteria, casais sentados. Nas mesas, diferentes sorvetes.
No bar, a Pitu já havia levado alguém ao chão.
Não se esquecesse, enquanto apontava o alvo, fechasse um e deixasse o outro olho bem aberto. Uma setinha de metal presa a um chumaço colorido era disparada por pressão, e errava outra vez o alvo.
Ela passou a vida toda agachada ao lado da cadeira: catava feijão. Escolhia o que era de comer-se e o que era de jogar-se fora da concha da mão, onde escolhia.
A noite era de chuva. A escola era um prédio alto, cheio de janelas e castigos. As provas cheias de surpresas e notas baixas.
Aproximavam-se as novenas de senhora Santana. Ela e ele em cadeiras de balanço. Ambos viajavam sem sair da frente de casa.
Devia ter ficado sozinho! ele disse.
Sozinho? ela duvidou. Como assim!
Talvez por causa dessa decisão definitiva de Gerundismo em deixar a casa dos pais. Coisa que deixou de existir, pois os filhos ficavam na casa dos pais, e iam ficando por período cada vez mais elástico. Envelhecia com os pais como se fossem inválidos, como se não tivessem vida própria, como se eles não quisessem ter vida própria nem independência, e trocavam a democracia pela tutela do pai e a mão de ferro da mãe professora Coerência, que sempre foi opressora.
Não devia ter-me casado! ele voltou ao assunto.
Tava arrependido? a professora esticou a corda, levou o professor às cordas.
Se tivesse ficado só...! professor Coesão não se intimidou ao ser encostado na parede pela Coerência com quem era casado desde a época de Santa Maria, Pinta e Niña. Se estivesse só, repetiu, envelhecia esquecido.
Só?!
Em paz.
Por quê?
Nasci só, não foi? Foi!
Sem ninguém pra te fazer um chá?
Sem ninguém pra me fazer um chá.
Ela parou. Mudou o argumento de parágrafo com a habilidade de ceramista na roda de oleiro:
Antonico, o meu cunhado, teu irmão, se jogou pra São Paulo à contragosto dos pais, meus sogros; não demorou, foi vomitado do Sul. As taxas de juros cuidaram do Antonico. Ao chegar em São Paulo, teu irmão viu a realidade que desindustrializou e privatizou: fim do emprego em metalúrgica, e viu que era verdade: as montadoras de automóveis fecharam. Voltou Antonico à vida em Santana com o rabo entre as pernas!
Levantou-se da cama o professor Coesão. Deixou a professora Coerência, que não parava de argumentar que boa romaria faz quem em sua casa está em paz.
Tu sabes! – a professora Coerência sabia comunicar-se.
Eu?
Não demorou, foi a vez dos rompantes de Totonho, filho de Antonico. Totonho, nosso sobrinho e afilhado, atirou-se pra ser devorado também por São Paulo. Que ia fazer em São Paulo, meu filho? Atrás de trabalhar, sabia-se lá em quê! Quis ser patrão de si mesmo, e foi. Este era outro que a realidade lhe chutou o traseiro, e foi gol de placa.
Vivia o pai do professor Coesão nas mesas de sinuca, em Santana. Copo de cerveja esquentava na borda da mesa, giz no taco, e dizia fazer dinheiro.
E escrevi um livro
Com duas braças
Com tantas folhas vencidas
Voo das páginas lidas tanto
Avoava a gastura
Era o povo que lia
Imagética a escola dialógica
Letras puras dias de farturas
E era um livro desses
Com braças de altura! – cantarolava a professora Coerência nos corredores do velho casarão. Este que prometeu abrigar um hospital em Santana, e optou em ser quartel na caça ao cangaceirismo, quando a cidade provocou a fúria vingativa de Lampião. E virou o prédio Ginásio Santana, à época na qual existia ginásio no sistema de ensino, substituído no ensino-aprendizagem por Anos Finais.
E um livro assim foi escrito
Com duas fortes braçadas.
Certo dia, a professora Coerência acordou sem encontrar mais ninguém na casa. Ao ficar só, a professora trouxe um gato à cama, e evitava quase sempre dormir sozinha.
Eles constituíram família em Santana, ela dizia à outra professora. Apesar dos filhos que tiveram, ninguém restou na casa de dois pisos dos professores Coesão e Coerência.
Hiperônimo, filho mais velho do casal Coerência e Coesão, não demorou a meter-se no mundo. Seguiu os passos do pai.
Inferência, filha caçula, depois que deixou a cidade, concluiu que nunca mais voltaria a Santana. Ligava, era verdade; pedia à mãe créditos no celular, pedia Pix, e depois se calava, esquecia-se da mãe, do pai, dos irmãos. A professora Coerência tolerava. Fazer o quê! ela dizia. Quando estava em casa, Inferência vivia trancada no quarto.
Apólogo, um dos filhos da professora Coerência e do professor Coesão, havia se afastado do município ainda na época do serviço militar.
Hipônimo, outro dos filhos do casal, foi ser garçom em São Paulo, e apareceu nos noticiários policiais como assaltante de bancos. O assunto correu em Santana.
Epílogo, filho dos professores separados, foi morar sozinho em Aracaju. Vendia redes, na praia.
Anáfora, foi estudar língua estrangeira, porque desejava ser feliz. Pensava nos lugares desejados e inalcançáveis. Último cartão-postal que chegou no endereço dos pais, em Santana, veio de Salzburgo.
Os gêmeos Apóstrofe e Apóstrofo abriram um bar em Cacimbinhas. Viviam de sonhos com o turismo em torno do futebol feminino.
Catáfora, que morava numa cidade do Norte, onde chegou e chamava a todos de queridos, voltou a Maceió. Por causa do uso indiscriminado de queridos, por pouco não acabou em maus lençóis. Um tempo depois, desceu a Salvador. Mudou-se; vivia de vender uiui de mercado a mercado, em BH. E ela foi vista esses dias nas águas de enchente, agarrada a uma caixa de tomates, como mostrou a reportagem.
Diacrônico, um dos filhos mais novos de Coerência e Coesão, era dentista no Recife, desde que concluiu a faculdade de Odontologia. Outros santanenses diziam encontrar-se às vezes com ele em Boa Viagem.
Quatro das filhas dos professores Coesão e Coerência não se separavam nem quando iam ao banheiro. Sinonímia era a mais sapeca, Hiperonímia a serelepe de tão impulsiva e fraca de saúde, como se soubesse que viveria pouco, era a mais protegida pelo grupo. Depois havia Antonímia, tímida, talvez por ser a mais feia entre elas. Por fim, Hiponímia, que era sonhadora e inventiva. E, uma manhã, aquele quarteto deixou Santana, foi a pé a Juazeiro onde recomeçaram nova etapa com a inauguração duma igreja.
O professor Coesão, depois de velho, começou a bicar fora de casa, puxar uma asa e bateu voo. Foi reclamar de medidas de exceção que motivaram o desligamento dele com a professora Coerência, acusada de ter adotado regime autoritário.
Homófona quis ficar com os pais em Santana. Desistiu. A filha ralhava com eles por que não ficaram na roça, lugar do qual nunca deveriam ter saído. Trocou a vida com os pais por aventura transitória em Belém. Passou a trabalhar com perfumes no Mercado Ver-o-Peso.
E nenhum dos filhos do casal Coesão e Coerência ficou em casa, quando ficou só a professora Coerência. Talvez esta geração fosse aquela que romperia o acordo tácito de cuidar dos pais; as próximas não se preocupariam, seria cada qual por si.
O orgulho da professora Conveniência demonstrava-se ferido sempre que se tocava no assunto dela ter ficado sozinha naquela casa de dois pisos. Abandonada pelo professor Coesão, a professora se saía com a narrativa de que o marido se foi porque não tinha papas na língua, e em toda a parte as câmeras registravam minúcias dos comentários que ele fazia, em seguida eram espelhados nas redes em busca de “views”. Nem ela nem ele aprovavam que o sistema ganhasse visualizações e fosse monetizado, segundo os algoritmos.
A professora Coerência comentava sempre com as amigas sobre o professor Coesão ter ganhado dois cães, numa certa época do casamento. Um, ele chamou de Senso Comum e outro Senso Crítico. Este morreu de raiva, aquele não. O professor, apesar da febre dos “pets”, os animais de estimação não lhe atraíam.
Conversar com o professor Coesão era a certeza de que no assunto não ficaria faltando pedaço, tampouco falta de entendimento. Ele sabia conversar.
No travesseiro, o casal de professores, cujo piso mal e mal mantinha as finanças da família, reclamava de ter levado à risca Gênesis 1,28. E vivíamos assim. Aqui, de uns tempos desses pra cá, a professora disse ao professor, nunca mais veio nenhum dos nossos, não esperava que viessem também os netos.
Vamos escrever um inventário sobre isso? propôs o professor à professora.
Em nossas vidas, ela dizia, tudo passava como um clarão feito cortes, na “Internet”.
O bate-papo entre eles varava a madrugada. Santana em absoluto silêncio. Às vezes, muito raramente, ronco de motociclista cortava a conversa dos professores na escuridão do quarto.
O ruim de envelhecer era acompanhar a morte dos nossos! ele dizia, inquieto.
Um dia, aconteceria isso comigo também!
Acontecia? ele queria saber dela.
Acontecia, ela reforçava, porque ninguém virava lajedo.
Você cercava-se de gente e, num piscar, estava sozinho.
Só vaso ruim não se quebrava!
Antes do quarto, o casal esteve na porta e via as pessoas indo e voltando. Eram longas as tardes, as tardes eram perfumadas. Quando, na avenida, o tempo bebia por entre as gretas o dia a dia. Muitos perfumes se espalhavam pela casa.
Coesão costumava intercalar as conversas com expressões como outrossim, desde já, portanto, diante desse quadro, além disso, antes de tudo o que foi dito, em vista disso, em suma, enquanto isso, logo após, com o fim de. E todos compreendiam facilmente o professor Coesão.
Pessoas que não moravam na cidade, não conheciam a professora Coerência. Esta foi quem deu o pontapé na poesia na escola.
Ela defendia uma escola de poesia. Quis realizar em Santana o 1º Festival Literário de Sonetos.
Em suas aulas, o lema da professora Coerência era divulgado em cartazes nos corredores da escola. “Motive-se, geração de leitores e de escritores, porque longe se vai quando se sabe”. A responsabilidade da professora era na construção do currículo e não apenas no planejamento da aula.
Era dela a popular “hashtag” soneto. A professora defendia a volta da forma fixa na poesia com o 1º Festival Literário de Sonetos, em Santana.
A professora furou a bolha. E, com a professora Coerência, tornou-se tendência escrever sonetos. Por semanas nas redes, “trend” não foi outro – como se costumava dizer nesta linguagem.
Em casa, Coesão era quem interligava a família. Sem a presença dele, não havia entrelaçamento.
Era ele quem dava sequência ao bate-papo no café da manhã, no almoço, no jantar. Coesão sabia o momento exato da transição das ideias, aqui em casa, durante o futebol na tevê, a telenovela.
Quase não havia harmonia sem a presença do professor Coesão. Era ele quem fazia todo o sentido em casa. Existia muita gente sem lógica, não era o caso dele, pois Coesão era um cara lógico.
Mesmo quando havia alguma omissão durante o bate-papo, Coesão estava ali e remia as velhas ideias com novas palavras. A verdade era que a casa sem Coesão empobreceu, as paredes ficaram úmidas como se chorassem.
Em toda a parte, via-se Coesão, disse a professora ao espelho no quarto. Só foi ele sair de casa que foi perdida toda e qualquer conexão com a realidade.
As melhores amigas da professora Coerência eram a professora Semântica, a merendeira Sintática, a diretora Pragmática, e a vizinha Estilística, que ganhava a vida com artesanatos de motivos semiáridos. Estilística juntou-se a um poeta e se foi de muda fazer artesanatos de motivos semiáridos em Olho D’Água das Flores. E havia amigas inseparáveis da época do Ginásio Santana; estas eram Genética e Temática, esta morava no Rio, aquela faleceu o ano passado.
Apesar daqueles mais de 46.000, comeu-se tempo até perceber-se a morte da professora Coerência. A polícia prometia aos noticiários investigar a causa da morte.
E a agulha sulcava a faixa, no lado B, que repetia “Bye, bye love”. Era a voz de intérprete local que estreava, impedido pela gravadora em usar o nome de batismo.
Assim era e assim foi. Mais uma casa vazia na cidade. Professor Coesão havia partido e a profa. Coerência estava morta.
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