A procissão de Corpus Christi passava na rua do grupo escolar?

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

Voltando ao Bebedor. Gabine, havia uma semana, era perseguido por mil fantasmas. Fim de outra tarde e ele, com o pavor de ontem e de anteontem, deixou o grupo escolar.

Corpus Christi podia ser festejado em maio ou junho. Naquele ano, comemorava-se no mês de maio. Em festa a igreja em Santana, e os fiéis organizavam os preparativos às vésperas da celebração.

Gabine, acompanhando o voo assustado do azulão, voltava ao Bebedor. Via galinha-do-mato fugindo do gavião-do-banhado. Ele margeava aquelas águas escuras, no Panema. Roncava cheio o rio com o ronco característico de mil fantasmas.

Alguns buscavam nas marcenarias resíduo de madeira – ruas de Santana decoradas com cepilho, no dia da procissão – outras pessoas arrecadando doações no comércio de tinta e nas casas de materiais de construção e ferragens. Era uma forma memorável de acolhida ao Corpus Christi que lembrava a passagem de Jesus sobre as ruas coloridas por mantos e ramos.

Com voz arrastada, o professor Pleonasmo ameaçava a classe de Gabine. Ameaças por semanas em invadir a sala de aula com o poderoso exército das classes de palavras. Alunos, temerosos com a guerra próxima, queriam distância daquele dia da prova chegando com a velocidade do cometa Halley.

A festa de Páscoa havia acontecido há 60 dias. E 60 dias depois, Santana enfeitava-se à procissão de Corpus Christi.

Professor Pleonasmo repetia, aula a aula, como ideia fixa, falando sobre as classes de palavras. Substantivo era isto, compreende, e não aquilo. Não admitia que não soubesse identificar um artigo. Verbo, compreende, tão usado, e ainda hoje o aluno errava o tempo. O adjetivo, compreende, tão comum nas falas, e o aluno sequer conseguia identificá-lo. Pronome todos o conheciam, compreende, desde o primeiro dia no grupo escolar e, hoje, se perguntasse acaso o que era o pronome, ela não sabia, não sabia ele. O advérbio era sem comentários! Conjunção era outro bicho de sete cabeças? E o numeral, compreende, não havia um aluno aqui que soubesse. Aqui, compreende, o aluno ignorava as preposições simples, quando ao falar quase sempre se usava: por, até, com, desde, contra, em, entre, sem, sobre, após, sob, trás, a, de, ante, para, perante. E a interjeição, compreende, esta deixei fora da prova do mês de maio! – disse o professor Pleonasmo aos alunos, no grupo escolar.

No galpão do salão paroquial, dia a dia o vaivém de voluntários preparando cartazes; desenhavam-se letras com as frases que seriam usadas na decoração da cidade. Estendia-se a faixa “Vinho era meu sangue, pão meu corpo”. Santana enfeitava as janelas das casas com tapetes e jarros de flores.

Aula após aula, o amedrontamento da prova do professor Pleonasmo superando a sombra da palmatória na parede da grade do grupo escolar. Palmatória era prima da boa reguada e sobrinha do beliscão! resmungava Jan Comenius, o diretor do grupo.

Na igreja, os fiéis comentavam que Corpus Christi era a preservação da memória da Quinta-Feira Santa. Aquela quinta-feira, na Última Ceia, véspera da crucificação de Jesus.

As pás dos moinhos giravam fazendo Santana anoitecer. Ao cair da noite, temendo a prova que se aproximava, Gabine perdia-se nas folhas cansadas da gramática. E rogava ao Sol que ele nunca voltasse. Na pena grega de Dionísio, o Trácio, a Arte da Gramática desde o ano 100 a. C. chegou ao sertão e alastrou-se à histórica, normativa, internalizada, comparativa e descritiva.

Noite após noite, Gabine recusava-se a enfrentar outro dia. Só a marcha do exército, ele ouvia. Atormentado por repetições ameaçadoras da chegada implacável do exército das classes gramaticais do professor Pleonasmo, no grupo escolar.

O Sacramento da Eucaristia sempre foi celebrado em Santana desde a época do padre Francisco José Correia de Albuquerque. Houve um tempo, no tempo de 1757, como em 1757 outros nasceram na pequena Penedo daquele tempo. Quieto, naquelas margens do São Francisco, no silêncio do velho canto, em outro tempo era o ano de 1787, e as águas do São Francisco trouxeram o padre nascido em Penedo à Ribeira. Em sua viagem de Penedo ao sertão, Francisco Correia com o nome de rio, com rio com o nome de santo.
E moradores, no Bebedor, cansados, adormeceram cedo. Nada brilhava exceto a Lua de quando em vez sobre as águas do Panema onde banhava-se a mãe-d’água, que Gabine ouvia falar e acreditava tê-la visto algumas vezes.

Não que a liturgia fosse cantada em latim, como se cantava em Santana à época do padre Francisco Correia. Tapetes de cepilho decorados ocupavam ruas onde a procissão passava entoando hinos piedosos e de louvor.

Podia-se fatiar a escuridão à lâmina de peixeira, quando o luar recebia o abraço de nuvens. Na rede próxima à janela de onde se avistava o Panema, Gabine ouvia o estibungar da mãe-d’água. No Panema, da canoa a linha ziguezagueou no ar; depois fez blum! O anzol sumiu anelando círculos contínuos. Cedo, na cozinha, a mãe de Gabine preparava a massa de cuscuz e cantarolava a canção que aprendeu com a Tia – Cuidado, pescador, cuidado pra mãe-d’água não se zangar! Quem na madrugada pescava, corria o risco de se deparar com fogo-corredor, a mula sem cabeça ou mãe-d’água. Nas águas, o peixe fisgado lutava bravamente pela vida, e o pescador pelo alimento.

De quando em vez, o tempo ouvia um mugir; blemblém respondia-lhe um chocalho. O sino marcava bão... bão... nos dias antecedendo a procissão de Corpus Christi.
Naquelas noites longas, Gabine imóvel na rede. Próximo à madrugada, e o sono não vinha. Gabine olhava fixo o teto escuro que abrigava morcegos, nos caibros. As arestas, na casa de tipa, serviam de esconderijo aos insetos. E, às vezes, a Lua espiava-o entre os pedacinhos de giz no quadro negro do céu.

Na procissão de Corpus Christi, o sacerdote levava o Santíssimo Sacramento. Estas imagens do povo, hinos cantados nas ruas com tapetes de cepilho, janelas decoradas, fiéis acompanhando o padre sob o pálio, estavam presentes na insônia de Gabine em busca de milagre que o livrasse daquele dia do pavoroso exército das classes de palavras.
Céu era visto através das frestas, no telhado. Não, não, não tinha medo! este era o mantra a ser rogado a Jesus que livrasse Gabine dos castigos, na prova do professor Pleonasmo.

Ao lado de Gabine, o habitual ranger dos punhos na rede presa às cordas amarradas na forquilha no encontro das paredes. No chão de barro, a aranha-caranguejeira desviava-se das pernas do Pai dormindo com a Mãe na enferrujada esteira de vime. Panema rouco murmurou durante toda a noite.

Por muito tempo lutando com a sorte, Gabine lutava contra a insônia, fechava os olhos, parecia dormir. Levava-o a lugares distantes com um sono leve. Logo, ele navegava em sono profundo. O sono lhe conduzia a um mundo diferente, onde o movimento rápido dos olhos iluminava memórias.

Nas ruas de Santana, a procissão de Corpus Christi. Gabite rogando por milagres. A prova aproximava-se, as questões na prova fazendo-lhe ameaças terríveis.
Despencavam do céu os serrotes que circundavam Santana. Aproximavam-se uns dos outros como se caminhassem, dançaram quadrilha; logo desmanchavam-se como torrões de açúcar mascavo sobre o Panema.

As elevações de 200, 500 metros de altitude derramavam-se sobre o rio e faziam acordar bagres, mororós, carapebas, tainhas, xeréus, curimãs e camurins. Os penhascos, ao invés de se desmoronarem sobre a casa de taipa, sobre a rede tecida em tear, derretiam-se sobre o Panema e engordavam as águas.

Luz do meio-dia, sob o Sol tição, Gabine voltava ao grupo escolar. Outra tarde quente diante do temor da guerra do exército das classes de palavras do professor Pleonasmo. O dia da prova vinha a galope e o exército implacável das classes de palavras a jato – e esta locução adverbial era o que mais lhe atormentava.

Enigmático, entrava em sala de aula o professor Pleonasmo feito a pesada gramática normativa. O exército implacável das classes de palavras acompanhava-o, isto era visível em seu misterioso aspecto, carregado de livros, canetas e blocos de anotações.

Apenas o recreio devolveu a Gabine instantes felizes da infância, no grupo escolar.

As brincadeiras com a turma de colegas, as competições com outras salas de aula, as correrias, festejados alaridos entre as crianças no pátio cercado por janelas e portas de olho no correr das horas no relógio de parede, os jogos de bola de meia. A ensurdecedora sirene dava o sinal encerrando as brincadeiras.

Todos obrigados a retornarem às salas de aula. Estava encerrada, violentamente, a felicidade experimentada durante o recreio.

Alunos suados e cansados, presos ao silêncio imposto na vigorosa ordem da direção de Jan Comenius, anotavam nos cadernos as lições do professor Pleonasmo. O giz branco entre os dedos na mão do professor registrava conteúdos com a letra miúda ocupando todo o quadro negro.

Qual era o sujeito nessa frase? perguntava a pesada gramática normativa aos alunos ainda sob o efeito dos alaridos, no recreio. Identificassem logo o predicado. Onde estava o verbo?

Dia da prova aproximava-se veloz como voo de carcará sobre uma pomba. A reação dos alunos era a imobilidade musculoesquelética.

O medo das provas de Pleonasmo era de fatiar o coração no prato de sarapatel. Na sala, ouvia-se os preparativos para o Dia de Corpus Christi. Vozes falavam que o vinho era o sangue, e o pão era o corpo.

Na aula, a sombra da palmatória impunha o silêncio. Esta sempre respaldada por beliscões e reguadas. Mãe-d’água com certeza era contra o pavor da palmatória como meio de convencimento à obediência.

No Paraíso também tinha prova? uma colega de Gabine comentou à outra colega ao deixar o grupo escolar às vésperas da prova a ser aplicada na próxima semana depois do feriado de Corpus Christi. Atravessaram a rua movimentada por carroças de burro e carros de boi.

Casarões santanenses solenes do final do século 19 viam fiéis passarem seguindo o símbolo do Corpo de Cristo. A procissão de Corpus Christi tomou a Rua do Sebo em direção ao Bebedor.

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