Personagens ocupavam ruas. Nas calçadas, os narradores cochilavam em preguiçosas de palhinha. O tempo era de chuva. O espaço aprisionava o calor que se desprendia do verão. O enredo não saía do assunto do povo àquela hora do dia. Era o conflito o resultado no último jogo.
Dentro do silêncio, portas na matriz da paróquia à espera do povo. Do Bebedor, a multidão, em direção ao centro, agitava palmeiras de ouricuri e cantava hinos.
O povo murmurava o ar com palmeiras agitadas, e atraía gente. Começava com sussurro o canto, nas ruas.
Casas mouriscas de paredes tênues; ruas de casas descascadas, cantava a multidão, janelas de tábuas, postigos nas cores de folhas secas, penas de pássaros, ruas de pedras lascadas. Os sóis-crustáceos tão próximos, distantes lençóis de nuvens d’água. E o Dia de São José foi ontem.
As mulheres com seus véus sob os quais saíam os cantos que entoavam falando sobre o dia a dia, na cidade. Em rostos vincados de tempo, uma das mãos a prender o véu, antes que lhe tirado fosse pelo vento que soprava da calha do rio cheio, criando causas nos caixões-d’água. E a outra mão, erguida, balançava a palmeira verde e delgada. Como uma crônica, os hinos falavam em textos curtos, todos compreendiam, em linguagem simples do cotidiano, quase nenhuma personagem, o caráter a respeito das situações no semiárido alagoano, e fatos pitorescos.
Nesgas de sombras em ruas de casas baixas e telhados escuros. Ruas de quebra-potes com brandões em pontos distantes. Ruas de passarinhos, de gaiolas ornando paredes, finas paredes sem pele nas ruas descalças.
Aproximava-se a multidão. Distanciava-se.
Praças de cactos, praças de mandacarus-reis. Barulhentos becos. Ruas de crianças correndo; meninas a pularem cordas. Roupas estendidas nas ruas dançavam com o vento, mudavam as cores sob o sol. Acidentes geográficos em todo o percurso do velho Panema, fogos-corredores apagados no Cachimbo Eterno.
O grupo – crianças adiante, mulheres cantoras, e homens com o chapéu de palha à mão – vencia as distâncias.
Em lombo de burro, o guia. Ante do povo, às ruas de paralelepípedos metamorfoseadas em tapete ébrio e breu.
O compacto grupo passava na frente das casas. Azul a parede frontal, janelas verdes com duas folhas, amarelo a contorná-las, a porta de madeira. Conchas barrocas, e pedaços de azulejos coloridos, casas miúdas grudadas umas às outras, e detalhes decoravam fachadas. Paredes à base de cipós, troncos de marmeleiros, telhas de olaria, e paredes de barro molhado. As habitações de janelas e portas fechadas, saíam à rua seus moradores. Ficavam as moradias de portas e janelas abertas, e restava o silêncio em lares vazios.
Mulheres cobriam-se de véu salmão, roxo véu, outros brancos, vinhos e violetas. As características arquitetônicas no barroco em Alagoas encontravam-se nas ruas; casa azul-marinho, azul-turquesa, janelas beges, e moldura bordô, porta cáqui, sob o telhado os frisos laranjas, e calçada lilás de base marrom, sob as janelas o destaque mostarda.
Acordava o silêncio abrigado no primeiro prédio de Santana, caído e mal-assombrado. O grupo passava cantando hinos, na procissão. Multidão, agitando ramos de ouricuri, vencia praças, arquitetura do tempo da monarquia, bares, lojas de tecidos, de móveis, de artigos de couro, de ferragens, farmácias, prédios públicos.
As vozes das mulheres puxavam o canto. Pés vindos distantes. Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Cabo Verde, Guiné-Equatorial. Passava a multidão na rua do sobrado, na rua do comércio.
Cortava a cidade o Panema com água veloz. Ontem, lavadeiras tocando pano nas pedras rajadas. Panema sem água, Panema sem peixes. Hoje, Panema corria, e estibugos em seu beiço ferruginoso. As tarrafas jogadas, na ponta da linha o anzol.
E, na cabeceira da ponte, não luzerna, o lampejo da vela de mamona vagando em cabaça nas águas trêmulas e escuras procurava mais um náufrago criança, que tentou, à contragosto dos pais e avós, recuperar papa-capim, curió e o galo-de-campina. As lavadeiras batendo seus desgostos, forrando as lavadeiras às gramíneas roupas e insossos retalhos de vidas.
Ruas caminhando pés em paletó de casimira. Na multidão, o canto de mulheres e homens prosseguiam. E, nas paredes, as gaiolas, que aprisionavam passarinhos cantores, abriram-se-lhes as portinholas, e desfizeram-se os alçapões, libertaram-se, e voltavam à roça, às plantações, sobrevoaram o Panema.
Quem vivia nas janelas, vigiando dia e noite, abandonou seu posto e pôs-se a cantar o canto que a multidão do Bebedor trazia. Me entregasse um ramo! pedia-se. E os braços erguidos com palmeiras de ouricuri multiplicaram-se.
Caminhavam as saias bordadas, as camisas de brim. Os braços erguidos viam-se de longe, ouvia-se o canto do povo. E o sol refletia-se nos terços brilhantes, que nas mãos pendiam em diferentes cores, refletia-se nos brincos, colares, alianças e crucifixos de prata.
Viu uma criança os pais e os avós acompanhando a multidão do Bebedor.
Em cada habitação na qual o grupo passava defronte com seu canto, as portas, as janelas de repente abriram-se. Nas paredes das casas, gaiolas, que ornavam papa-capins-de-coleira, curiós, galos-de-campina, suas talas rompidas com a força das asas e dos cantos.
Súbita, correu a criança atrás do tesouro. Rufaram as asas dos curiós, galos-de-campina, papa-capins-de-coleira comprados na Feira do Passarinho. Aonde ias? perguntou a avó. Voltasse! pediu o avô. Em vão, gritava o pai que voltasse, mãe rogou que a criança não fosse. Atrás da riqueza corria a criança. De par em par, subiram os passarinhos ao céu, rapidamente atirou-se a criança nas águas que, lentamente, tomavam as margens do Panema.
O céu cheio de nuvens carregadas. As vozes das Marias tomando as ruas centrais, as vozes dos Josés próximas à igreja. Os ramos de ouricuris tomavam as praças, todo o povo de Santana ocupando a igreja.
No Domingo de Ramos, ouviam-se hosanas. Salva-nos! rogava a família da criança.
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