TENTANDO RETOMAR A VIDA

Crônicas

Alberto Rostand Lanverly - Presidente da Academia Alagoana de Letras

Outro dia encontrei Jesualdo para tomarmos um chopp e entre uma conversa e outra, perguntei por sua esposa e sobrinha. Enquanto me falava que Generosa estava bem, retirou do bolso um envelope e pediu que lesse em voz alta. Depois comentaríamos o conteúdo. No documento manuscrito encontrei a seguinte mensagem de Germínia:

Querido Tio Jesualdo, resolvi lhe escrever essa cartinha, para relembrar os tempos de infância, quando ainda não existia telefone com facilidade. Passei algum tempo sem dar notícias pois tive que me esconder logo após os golpes que apliquei clonando telefones, inclusive o seu, para tentar ganhar algum dinheiro sem muito esforço. Recebi voz de pris…
[07:17, 18/07/2021] Rostand Lanverly: TENTANDO RETOMAR A VIDA

Alberto Rostand Lanverly
Presidente da Academia Alagoana de Letras

Outro dia encontrei Jesualdo para tomarmos um chopp e entre uma conversa e outra, perguntei por sua esposa e sobrinha. Enquanto me falava que Generosa estava bem, retirou do bolso um envelope e pediu que lesse em voz alta. Depois comentaríamos o conteúdo. No documento manuscrito encontrei a seguinte mensagem de Germínia:

Querido Tio Jesualdo, resolvi lhe escrever essa cartinha, para relembrar os tempos de infância, quando ainda não existia telefone com facilidade. Passei algum tempo sem dar notícias pois tive que me esconder logo após os golpes que apliquei clonando telefones, inclusive o seu, para tentar ganhar algum dinheiro sem muito esforço. Recebi voz de prisão de uma autoridade, mas paguei quatro reais de fiança e fui libertada, contudo fui proibida de usar aparelhos celulares, e assim o fiz.

Aqui vão as notícias. Mudei para Delmiro Gouveia e resolvi vender por somente um real, nos cruzamentos da cidade, água bem geladinha tirada da torneira, como se fosse mineral. Foi fácil. Em bares e restaurantes, coletei garrafinhas usadas, lavava, enchia e colocava em um isopor com gelo e ia para a rua. Ninguém desconfiava, uma beleza.

Com o calor do sertão ganhei um trocado. Até porque explorei também o mercado de Paulo Afonso, pois era só atravessar a ponte e estava na Bahia. As pessoas nem gravavam a minha fisionomia.

Com o apurado que juntei resolvi mudar para um ramo mais rentável, comprei uma Kombi velha, pintei com cores alegres e comecei a negociar com vacinas para COVID, de preferência aquela que só carece de uma única dose.

Mandei plotar um banner com os dizeres: “Cruz Vermelha – Se vacine aqui – Façam fila”. Adquiri centenas de seringas, inúmeros frasquinhos, nos quais coloquei soro fisiológico e saí visitando fazendas, sítios e arruados remotos das cidades do sertão.

Parava o comboio da salvação em um ponto central do lugarejo, estendia a faixa, ligava uma caixa de som para fazer propaganda. Parecia mais o filme Bye Bye Brasil de Cacá Diegues. Em cinco minutos era um mundaréu de gente, sem preocupação com a idade dos fregueses. De mamando a caducando, chegou recebia a picada da agulha.

Eu mesmo aplicava o elixir salvador, cobrando apenas dez reais de cada cliente. Em noventa dias de trabalho árduo, creio haver salvo mais de vinte mil pessoas, as quais inclusive recebiam cartão de vacinação por mim mesmo preparado. Um show, até que a polícia ficou sabendo. Fui mais perseguida do que Lampião na caatinga. Fugi somente com o apurado, abandonando inclusive o veículo.

Agora estou em uma vila nos arredores de Caicó, no Rio Grande do Norte, esperando acalmar a situação, para depois retomar a vida. Quero passar uns tempos em Miami, nos Estados Unidos, pois quando estive em Xingó vendendo água, conheci um americano que se apaixonou por mim. Já pensou a sua sobrinha ganhando em dólar?

Vou ficar por aqui. Dou trabalho mas te amo. Saiba que aplico alguns golpes, mas não bebo, não fumo, nem sou adepta das drogas. Beijos em todos, da sua Germínia.

Ao terminar a leitura, olhei para Jesualdo que também, me encarou. Balançamos negativamente a cabeça e voltamos ao chopp.

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