Essa realidade cinzenta da paisagem sertaneja forjou homens teimosos. É justamente tal pirraça que nos fez resilientes, ou seja, capazes de superar os óbices que vão surgindo ou os que naturalmente ocorrem no curso da vida. Penso que é nessa interação obstaculosa homem-natureza que se constitui homens engenhosos e criativos, de palavra, “se falei não volto atrás, mesmo que me lasque”; destemidos, ainda que com muito medo sob controle; nosso sim é sim, nosso não é não. Ainda que sejamos cheios de manhas e apreciadores de água que passarim num bebe e de um arrasta-pé arretado, numa sala de reboco...
Fernando Soares Campos, autor de “Fronteiras da Realidade ̶ Contos para meditar e rir... ou chorar”, meu conterrâneo, alagoano de Santana do Ipanema, cidade conhecida como “Terra de escritores”, escreve muito bem, com estilo próprio, o que, na atualidade, poucos escritores revelam. Não, não é exagero. Sua capacidade criativa-inventiva é incontestável, admitida pela grande maioria dos seus leitores. É um Ivan Lessa (**) do Sertão. Herdeiro de uma tradição de contadores de histórias que se perdeu em tempos imemoriais, mas que fora transplantado da Península Ibérica pelos colonizadores que aqui chegaram. Ele os ouviu de seus ancestrais. Sua escrita é reta e ligeira.
No correr de suas linhas apresenta-se, ao mesmo tempo, como continuísta e iconoclasta dos muitos mitos que buscam explicar alguma coisa na existência sofrível da humanidade, tendo como suporte a literatura. O novo, em sua produção literária, é aquilo que, dando-lhes uma outra cara (viva e alegre ou triste), ele cria e recria. É um grande falseador do real. Não que seja ele um mentiroso como aquele que disse ter visto os dragões da independência, lá do planalto, cuspirem fogo. Não, nada disso. Ele inventa, acrescenta e se assenta no real, distanciando-se apenas um pouco daquele. Porque escreve como se contavam as velhas estórias convincentes pelas bocas dos grandes contadores de história sertanejos.
Fernando Campos é um representante da espécie naquilo que diz respeito à grande capacidade humana, no meu entender, no que consiste o seu poder de criação, de invenção; o fingir tão completamente. Sua narrativa flui, ora surpreendendo o leitor com suas versões de estórias já conhecidas e contadas na tradição ocidental, ora nos envolvendo nas estatísticas comprovadas das conversas dos diversos ofícios desenvolvidos por trabalhadores que de tudo sabem um pouco e muito mais. A novidade é que ele as atualiza. Ele escuta ou ausculta personagens do cotidiano: barbeiros, donos de bodegas, gays, prostitutas e, acredito, até alguns desses elementos que se autointitulam conservadores, direitistas...
Lendo o Fronteiras da Realidade, me reportei para um tempo em que meus avós contavam estórias de Trancoso com tanta beleza de detalhes e segurança que se tornavam criveis, talvez por serem eles mais vividos e educados pela pedra; por isso lhes asseguravam algo assim como o argumento de autoridade no assunto.
Quem conta um conto... Obrigado, amigo, por nos brindar com seus escritos.
(*) José Guimarães: Professor na empresa Governo do Estado do Ceará, nasceu em Santana do Ipanema (AL), em 09 de março de 1961; foi alfabetizado no Sagrada Família, instituição mantida por irmãs de congregação religiosa, holandesas, fez o Curso Primário no Grupo Escolar Padre Francisco Correia, frequentou a Escola Estadual Professor Mileno Ferreira da Silva; foi seminarista em Maceió, cursou licenciatura em Filosofia e Letras; lecionou na EE Júlia Alves Pessoa.
(**) Ivan Lessa (1935-2012), Filho do escritor Orígenes Lessa e da jornalista e cronista Elsie Lessa, foi uma espécie de ovelha negra da crônica brasileira. Chamava-se, ao todo, Ivan Pinheiro Themudo Lessa. ... Não era formado em nada, trabalhou por curto tempo em agências de publicidade, ganhou a vida como um saltimbanco do texto.
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