Pra onde eu vou depois do golpe sobre o golpe?!

Artigo

Por Fernando Soares Campos(*)

Em junho de 2014, quando eu ainda morava no Rio de Janeiro, estive em minha terra natal, Santana do Ipanema, no Sertão de Alagoas. Conversar com a minha mãe era o principal objetivo de minhas visitas ao meu paradisíaco jardim da infância, que também foi o deleitante inferninho da minha adolescência. Ela já se aproximava dos 90 anos. Àquela altura do campeonato, mamãe já não tinha condições de fazer uma longa viagem, como em outras ocasiões em que ela foi ao Rio e Juiz de Fora (morei aí por um curto período). Certa ocasião fomos a Aparecida, foi sua primeira visita à monumental basílica.  

Ao chegar em Santana, geralmente eu ficava uns dois dias sem nem mesmo sair de casa. Eu e minha mãe sentávamos à mesa, fazíamos as refeições juntos e conversávamos mais do que comíamos. E o melhor: ríamos bastante.

Em um daqueles momentos falei das ameaças de golpe de estado que pairavam sobre o nosso país. Ela ouviu tudo atentamente e no final me perguntou:

‒ E o que você pretende fazer, caso isso aconteça?

De início falei que não tinha ideia sobre qual atitude tomar. Em seguida expus alguns detalhes da conjuntura política do Brasil naquele momento:

‒ Mamãe, veja bem, se o nosso governo for golpeado e a presidenta Dilma for deposta, é muito provável que alguns governos de países vizinhos também sejam atingidos, sofram os mesmos ataques e, finalmente, capitulem. Eles vão tentar arrastar a Bolívia, o Equador e a Venezuela. Principalmente esses. Esse é o objetivo dos golpistas, daqui e de outras plagas, todos a serviço do imperialismo norte-americano e europeu.

‒ Acho que entendi - disse ela -, mas o que eu quero saber é o que você pretende fazer se isso acontecer.

‒ Bem, conhecendo os canalhas que pretendem perpetrar esse golpe e os cretinos que insuflam a população nesse sentido, se isso acontecer, creio que aqui na América do Sul só restarão alguns recantos seguros para pessoas como eu.

 E que lugares são esses?

‒ Antes, eu quero saber se a senhora se lembra de que em 1966, aos 16 anos de idade, depois de já ter turistado pelo Brasil de norte a sul, decidi que iria me juntar aos Tupamaros no Uruguai. Isso baseado nas poucas notícias que eu tinha sobre a guerrilha por lá. Lembra-se?

‒ E dá pra esquecer essas coisas, aquelas tuas aventuras? Leeembro ‒ falou assim mesmo, bem arrastado ‒. Você saiu com o filho do mestre Abel. Como era mesmo o nome dele?

‒ Arley

‒ Sim, era ele mesmo. Mas, se não me engano, ele voltou do Carié, dizendo que ia pegar umas coisas e deixou você lá esperando. Daquela vez, deu tempo de seu pai pegar você antes de se perder no meio do mundo, como das outras vezes. (E naquele momento já diziam que ela estava sofrendo de Alzheimer.)

‒ Pois é, daquela vez não deu, mas agora, uns cinquenta anos depois, se o nosso governo cair por força de um golpe, só me resta refúgio seguro em territórios controlados pelas guerrilhas em atividade aqui perto de nós. Não adianta tentar refúgio em países europeus, mesmo contando com muitas amizades por lá.

‒ E ainda existem essas coisas?

‒ Que coisas? Refugiados de guerra?! Ah, tem muitos! O Brasil mesmo está cheio deles.

‒ Não... Eu tou falando disso aí... é... Como é que é mesmo que você falou?

‒ Guerrilha?

‒ Sim, isso mesmo. Ainda existe essas coisas?

‒ Sim, existem.

‒ Mas eu não vejo isso na televisão. Quer dizer, não vejo nada disso por aqui por perto. Só ouço falar que estão acontecendo coisas assim lá pros lados daquele povo... é... Como é mesmo o nome?

‒ Árabes, palestinos, muçulmanos... É isso que a senhora quer dizer?

‒ É, é isso mesmo. Só ouço falar de guerra com esses aí.

‒ Existem outras guerras rolando pelo mundo afora, outros povos estão em guerra, muito mais do que a senhora imagina. Mas, para casos como o meu, acho que os mais adequados seriam os grupos que lutam aqui perto de nós.

‒ Mas me diga uma coisa, meu filho, você ainda tem idade pra pegar um mosquetão e sair por aí dando tiro pra tudo o quanto é lado?

‒ Esse é que é o problema! Nos últimos anos, nessa reta de chegada, eu me acomodei muito e perdi a maleabilidade, estou ficando mais duro do que marroque...

Ela cortou:

‒ Marroque?! (risos) Você usa certas palavras que eu já nem imaginava que ainda se usava... (mais risos).

‒ É verdade, gosto dessas palavras. Mas esse é o problema, estou entrevando, sedentarismo, muita acomodação...

Ficamos calados por um instante, creio que ela também parou lembrando-se de quando tinha mais habilidade física. Até que retomou a prosa.

‒ Ah, meu filho, acho que isso não é problema nenhum. A gente sempre encontra uma maneira de ajudar, seja lá no que for. Você sabe escrever direitinho, e essas pessoas que estão nas lutas sempre precisam de alguém que escreva cartas, bilhetes... Como nos tempos do cangaço. Os cangaceiros não sabiam escrever, sempre precisavam que alguém escrevesse cartas e bilhetes pros coronéis e pras lojas daqui de Santana, onde eles compravam as balas dos mosquetões. Você também deve saber cozinhar, desde criança que você não se aperta por causa de falta de comida, sempre ia na cozinha e fazia lá suas misturas. Eles podem precisar de gente que cozinhe.

‒ Cozinhar?! E a senhora acha que cozinhar é uma tarefa mais leve do que usar um fuzil?

‒ É verdade, cozinhar dá muito trabalho. Eu mesma não faço mais nada na cozinha.

‒ Sim, escrever pode ser uma forma de colaborar, participar, mas o pessoal das guerrilhas de hoje está em melhores condições de se comunicar do que os cangaceiros.

‒ Mas você ainda não me disse onde é que isso está acontecendo.

Peguei a garrafa térmica sobre a mesa e servi mais café pra nós dois. Ela parecia interessada em saber onde as guerrilhas estavam se desenvolvendo. Como eu havia falado de "grupos que lutam aqui perto de nós", creio que ela deve ter-se preocupado, imaginando que estivesse ocorrendo alguma revolta popular numa das serras que circundam o nosso município.

‒ A senhora já esteve no Sul, certo? Acho que até atravessou a fronteira com a Argentina, não foi?

‒ Sim, foi quando eu fui naquela excursão com Zilda e outras pessoas daqui. Até tivemos com você lá no Rio. Disso eu me lembro.

‒ Lembra?! Mas dizem que a senhora está caduca! Quer dizer, com Alzheimer...

‒ E é?! Dizem, é?! Então eu não me lembro mais, não!

Rimos muito.

‒ Bem, falando sério. Ali onde a senhora esteve, ou melhor, não muito longe dali, um pouco mais pra cá, no Paraguai, tem um movimento guerrilheiro muito atuante. Dizem que está avançando, conquistando territórios. Não tenho muitas informações sobre esse. Sei que na Colômbia existem outros exércitos guerrilheiros mais bem armados e experientes do que o EPP, o Exército do Povo Paraguaio.

‒ Oxente! E você não falou que era tipo cangaceiro?!

‒ Sim, é mais ou menos isso.

‒ Mas você acabou de dizer que é exército!

‒ Sim, exército popular, tropas treinadas como qualquer tropa, soldados como qualquer soldado. Só que em condições, de certa forma, precárias...

‒ É, os soldados daqui também se vestiam como cangaceiros. Mas acho que era só pra enganar o povo. Sua avó corria comigo nos braços quando alguém gritava dizendo que os cangaceiros tavam entrando em Olho d´Água. Mas não era cangaceiro, era a polícia imitando cangaceiro.

‒ Vamos fazer o seguinte. Fábio está chegando aí, outra hora a gente continua essa conversa, tá bem?

‒ Como você quiser, mas eu até que tou gostando do assunto.

O meu irmão Fábio chegou na copa e a gente estava tomando café. Os papos foram outros, e acabei voltando para o Rio e não concluí aquela prosa com a minha mãe.

Eu pretendia visitá-la novamente, retomar a conversa e saber de sua opinião sobre guerrilhas, mas ela faleceu em outubro do ano passado, aos 93 anos. Hoje seria até mais fácil estar com ela, pois desde novembro do ano passado estou morando no Sertão Alagoano, no Marruá, São José da Tapera, bem perto de onde ela morava. Estou construindo uma casa de chácara, onde pretendo viver nesta reta de chegada. Ou seria de partida?

Eu até já havia selecionado uns vídeos sobre guerrilhas que estão acontecendo aqui perto da gente. Hoje resolvi ver como andam esses movimentos guerrilheiros. Digitei pesquisa no Google sobre o "exército do povo paraguaio (epp)" para me atualizar sobre as insurreições na nossa América do Sul. Para minha surpresa, vejam no que dei de cara, publicado nas últimas horas:

Ex-vice-presidente do Paraguai é sequestrado, supostamente, pelo Exército do Povo Paraguaio

Paraguai pede ajuda para encontrar ex-vice-presidente sequestrado

Protestos exigem resposta sobre assassinato de crianças pelo Exército paraguaio

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Este artigo é uma adaptação do que escrevi e publicamos em 22.11.2014 no Portal Pravda, sob o título "Pra onde eu vou depois do golpe?!"

 
(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse  ̶  8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; e "Fronteiras da Realidade  ̶  contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.

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