O sol iluminando, e acendendo as cores das coisas. O céu, infinitamente azul, as folhas das árvores esplendorosamente verde, o passarinho cantando docemente, muito além do fio de alta tensão. Pense nossa história como se ouvisse música. Uma bela canção, chamada vida. Como que embalados por uma melodia cotidiana, vamos contar dum tempo, especial. Início dos anos sessenta na cidade de Santana do Ipanema. É preciso que recordemos que à época, estávamos a apenas uma dezena e meia de anos, do término da Segunda Guerra Mundial. O mundo se recuperava fisicamente, dos horrores da guerra. Recuperava-se ainda mais, emocionalmente. Talvez por conta disso, as pessoas estivessem ainda mais sensíveis, mais humanas. Depois duma tragédia. As coisas adquirem novo sentido, novo significado. Santana, era parte desse mundo ressurgido das cinzas.
Um oceano inteirinho, milhares de quilômetros de espaço aéreo, centenas de quilômetros de estradas de rodagem e outro tanto de pistas asfaltadas, separava os sertões das Alagoas donde ocorreram os fronts de combates, os pelotões em ordem de batalha, as trincheiras, dos combates sangrentos. No entanto tudo isto estava muito presente, em nós. Como nuvem sombria, pairava sobre as mentes, sobre as ações. Ainda que cem décadas se passassem, não seriam suficientes para cicatrizar, as feridas de uma guerra mundial. Ainda mais que vivíamos, a espelho do resto do mundo, sob um sistema totalitário, o regime militar.
A escola copiava o sistema vigente. A farda, a disciplina, o amor a pátria. Cantar o hino nacional antes de adentrar as aulas. Ter respeito aos símbolos nacionais, a bandeira, o brasão da república. Todo soldado era símbolo de dedicação, honradez e disciplina. Na semana da pátria um militar era convidado à escola para instruir os estudantes como deviam se comportar por ocasião do desfile cívico. Nas casas vivia-se o modelo patriarcal de viver. O pai era a figura central da família, a ele se devia todo respeito. A mãe era símbolo de amor, de dedicação a sua prole. A mulher ao se casar, no mais das vezes renunciava de qualquer ideal puramente seu, para dedicar-se exclusivamente a família.
A vida é bela, se nobres são os ideais. Tecnologia de ponta era máquina de costura Singer, onde em casa, se fazia as roupas. Um rádio receptor anunciando o “Repórter Esso”. Uma geladeira arredondada nas curvas de puxador engraçado, com um pinguim capitaneando por cima. Televisão em preto e branco era pra poucos. O melhor programa para a tarde, era ir até a casa da vizinha, conversar, falar da saúde dos filhos, de uma receita de bolo, um remédio caseiro, pra tosse, óleo de rícino e mastruz com leite pros vermes, banho de Samba Caitá pra cicatrizar mais rápido as brotoejas e o sarampo. Rever cartas à muito guardadas, amarradas com fita de filó, cheirando a Colônia de Alfazema. A vitrola ABC “a voz de ouro”, tocando Dalva de Oliveira.
“Vê estão voltando as flores
Vê nesta manhã tão linda
Vê o sol iluminando
Vê há esperança ainda”
Sobre a cristaleira a compota com doce de goiaba em calda, semeado de cravos da Índia. Peças de porcelana esmaltada com desenhos que lembram a aristocrática corte francesa de Luiz XV. Na parede o retrato do pai a cryon. Biscuit na copa e a “Santa Ceia” na cozinha. Um cena bucólica da caça a raposa ao estilo inglês. O álbum de fotografias com capa dura, plastificada, com gravura de um buquê de rosas vermelhas sobre um lenço violeta. Ao ser aberto acabava deixando cair uma foto velha desbotada, em preto e branco, picotada nas bordas, largada das cantoneiras. Uma bela moça com cabelo em coque olhava sabe Deus pra onde, talvez pro futuro, pois sorria. No verso escrito a lápis grafite: “Cara irmã! Guarde esta lembrança que lhe dou com muito carinho. Daquela que muito te ama! Ass. Maura 12.12.63”. Noutras fotos várias moças pousam num lugar público, uma praça talvez. Vestido tubinho, um lenço entrelaçado no queixo, óculos de grandes lentes escuras, bolsa de mão a tiracolo, laquê no cabelo. Lembravam Jacqueline Kennedy, ao fundo um aero willys conversível, rabo de peixe .
Uma lata de biscoitos lembrança do natal passado, contendo sucrilhos caprichosamente feito de nata e manteiga, sobre a mesa. Os homens iam ao passeio matinal vestindo calças justas, de tecido, camisa tergal e volta-ao-mundo, no cabelo muita brilhantina pra imitar Elvis Presley. Papai ficava na cadeira de palhinha, folheando a revista Seleções de Reader’s Digest, o Almanaque da Fé, a Revista “O Cruzeiro”, sempre lia em alta voz, a coluna do Davi Nasser. As propagandas eram desenhos e mostravam pessoas felizes com suas famílias: Toddy, Arrozina e Maizena, sabonete Phebo Life Buoy, Creme Dental Kolynos, as pílulas da vida do Dr. Scholl, pomada Minâncora e Biotônico Fontoura. E o mundo, do pós-guerra se dividira em dois blocos, o Brasil ficou do lado dos norteamericanos. O presidente John Fitzgerald Kennedy combatia duramente o governo de Fidel Castro, na Ilha de Cuba, porque era comunista. Comunismo chegou pra nós como símbolo de anarquia. Seus simpatizantes eram perseguidos com mão de ferro. Versos considerados subversivos eram recitados às escondidas nos porões das reuniões secretas dos dissidentes políticos:
“Cuba sy! Cuba sy!
As fileiras americanas
Fidel Castro é comunista
Até disse que Batista
Matou vinte mil cubanos!”
A casa de Felício era vizinho a Bodega de Seu Ozéias. A gente estudava no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Um dia chamou-nos para mostrar mais um de seus inventos. Pois ele se considerava um cientista. Apelidavam-no cientista maluco. Era apenas um menino. Numa sala escura, fez passar o feixe de luz de uma lanterna através de um orifício numa caixa de sapatos, onde previamente havia inserido uma lâmpada de bulbo, cheia d’água. Interpondo um pedaço de película cinematográfica à luz e ao bulbo, projetou sobre a parede uma imagem gigantesca! Eureca! Felício reinventou o cinema.
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