Excelentíssimo Coronel J. Fernandes Tavares,
Eu, o sapateiro da região, Quincas, sou um homem de nenhuma leitura e que não sabe juntar as letras de formar palavras. Vim o mais rápido que pude no escritor de cartas da cidade, Neco Aristides, para esclarecer o acontecido dos últimos dias. Mas fique despreocupado, coronel, o dizer da carta é meu, só o vocabulário que é do meu amigo Neco. Acho que ele de tão familiarizado com a pena, já a tem como parte do próprio corpo.
Soube hoje pela manhã da confusão do julgamento através do Quinhão Bajula, pessoa esta, que é devoto de um imenso respeito pelo coronel e familiares, e a que tanto faz por vocês, Tavares, sobre o único pagamento de vê-los soltarem alegrias ou elogios ao nome dele. Bajula estava organizando os preparativos da festa para comemorar a sua vitória em nossa causa, quando apareceu na sapataria perguntando se eu teria pelo menos a decência de mandá-lo os parabéns. Mas é lógico que não vou fazer uma desfeita dessas com o coronelzinho.
O senhor pode não acreditar, como é de direito de todo Tavares, mas eu acho que não tenho culpa que me pese nos ombros, quando me refiro a este caso. Juro pela sua santa mãe, Maria Tavares, como não cometi grandioso delito; só não juro pela minha porque o assunto em questão é assunto sério, assunto importante, de ‘causo arriscoso’, se é que me entende. Essas aporrinhações só começaram por conta do menino de recados do Joca. Aquele moleque só é menino de recados no nome, pois como é do conhecimento de todos nós, ele, além de doido, é mudo. Não soube explicar de quem era os sapatos, e como eu não sei entender bilhetes, nem língua de mudo, vendo como se portou com o pacote, despachei-lo. E assim, deu-se este furdunço com tamanhas proporções. O culpado é ele, coronel. Reveja as suas acusações contra a minha pessoa, se não for incômodo. Caso mude de ideia e precise de testemunha para abrir processo contra o menino do Joca, pode contar com este humilde sapateiro. Mas ponha a mão por mim, por favor. O senhor como é a autoridade de mais mando na cidade, tem todo direito de fazer o que der na telha para lavar a honra. Soube também que está processando o leiteiro por conta dos maus serviços prestados. O coronel está certíssimo, e eu sou de acordo com o processo. Onde já se viu um leiteiro, que na obrigação do dever deixe faltar leite para a mamadeira das crianças, e ainda para os ‘Tavarinhos’, filhos do senhor. Não tiro os seu direito.
Como vê, tenho o maior respeito pela sua pessoa. Medo eu não tenho, porque o coronel não é bicho, é até jeitoso nas feições. E também porque aprendi que nessa vida um homem não deve ter medo de outro. Espero que o senhor entenda. E para não esquecer, junto com a carta estou mandando os sapatos e o bilhete que vieram no embrulho. Os sapatos devidamente reformados e o bilhete sem nenhum vinco no papel que venha atrapalhar a leitura. Agradeço a gentileza do coronel em ler esta carta e dou novamente as minhas sinceras desculpas pelo ocorrido e demora na escritura de minha defesa na parte que me cabe nessa história. Coronel, um bom dia e até mais ver.
Quincas, O sapateiro
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